Um político sindicalista recebe na madrugada a visita inesperada da esposa de um industriário. Ela está aflita com uma greve na indústria de seu marido, e precisa de ajuda. Ao recebê-la com uma cortesia que não esconde a diferença de posição entre os dois, o político oferece os sofás de sua sala com duas alternativas: "Você pode escolher se sentar à direita ou à esquerda." A esposa do industriário não vacila, e prontamente se senta no sofá da direita.

Potiche - Esposa-troféu, do jovem e respeitável diretor francês François Ozon, é um filme de óbvias sutilezas, como a desta cena protagonizada pelos personagens de Gérard Depardieu e Catherine Deneuve. Aparentemente, trata-se de um franco elogio à emancipação das mulheres no cenário político dos anos 1970, época em que se passa a narrativa. Mas em detalhes nada gratuitos, como o que define um lugar para que a protagonista se sente, Potiche delineia os tópicos centrais do seu comentário político.

Nesse passo, a comédia familiar que promete celebrar o feminismo revela-se um arremedo de caricaturas corrosivas sobre a maneira de posicionar os conflitos de classe no capitalismo das últimas décadas. Em outras palavras, conscientemente ou não, o novo filme de Ozon consegue ser mais perspicaz do que as próprias intenções declaradas pelo diretor.

Pontos de vista

Ainda que a câmera de Ozon persiga Deneuve do começo ao fim, fazendo da atriz a verdadeira mulher homenageada pelo filme, Potiche nos permite reencontrar uma pergunta que costuma estar presente apenas no melhor cinema narrativo. Até que ponto um filme se distancia ou adere ao ponto de vista de uma personagem? Quando a personagem é a que mais atrai a simpatia do espectador, como a senhora Pujol, vivida por Deneuve, responder a essa questão é um passo certo para identificar realizações de destaque em uma arte que sofre, cada vez mais, com a precariedade narrativa dos blockbusters.

Antes de ser um filme sobre o feminismo, Potiche é uma narrativa farsesca sobre a deterioração dos discursos contraideológicos e a sua substituição por novas formas de culto ao ego, bem no sentido do que ocorreu no Brasil durante os anos de governo Lula, até a vitória de Dilma Rousseff, nossa primeira presidente. Acreditar que o filme de Ozon defende o ponto de vista da senhora Pujol, uma mulher que conquista o sucesso na carreira política ao abandonar a suposta submissão da vida de dona de casa, seria ignorar o que justamente constitui a maior qualidade dessa narrativa: a constante desconstrução das aparências.

Na medida em que novas informações vão surgindo, Potiche nos obriga a reorganizar a imagem que criamos das personagens em cenas antecedentes. Toda evolução da narrativa se dá em nome desse processo de destruir e recriar imagens. O que poderia soar forçado (e certamente soaria, nas mãos de um diretor de pouco talento) resulta em uma provocação bem-humorada que complica o lugar do espectador, inclusive dos mais críticos. Quem entra no cinema disposto a se identificar com as perspectivas políticas representadas corre o risco de sair da sala enganado, convencido de que a vida é mesmo uma coisa bela, como canta a vitoriosa senhora Pujol no final da obra.

Ora, a vida cantada pela personagem não poderia ser nada bela. A não ser que consideremos belas as frágeis convicções de uma líder política que, por exemplo, não esconde o aborrecimento ao ficar diante de uma idosa trabalhadora de sua indústria. Um sentimento de aversão que vem da diferença de classes, e reforça a consciência burguesa de Pujol, denunciada pelo ponto de vista autônomo do filme em relação à personagem. Para a protagonista, o "outro" é um instrumento ou um fetiche que satisfaz as fantasias do seu ego, seja quando exibe as joias que comprou, com o lucro do trabalho alienado, seja quando se vê atiçada por um caminhoneiro, troféu particular que Pujol conquista por exercer bem o poder das mulheres no patriarcalismo - em seu marido encontramos a figura do machão que posa de forte em público, mas desmonta-se no espaço privado, dependente da mulher.

Duvidosa reconciliação

Que não se enganem as feministas espectadoras de Ozon. Toda forma de poder, se não muda a sociedade, contribui para torná-la mais desigual. A candidata Pujol, que se apresenta "sem partido" e a favor da "reconciliação", é um excelente retrato do pragmatismo infecundo que está na moda há décadas, encobrindo a luta de classes com uma "luta de gêneros" e convertendo a democracia em uma festa tão kitsch quanto os péssimos poemas que Pujol escreve, reproduzidos na música cantada ao final.

A personagem muda de lugar, sai da casa e vai para as ruas. Mas a sua essência continua. Uma esposa-troféu, fora da prateleira, não deixa de ser um mero objeto. Não é por acaso que a indústria, sob o comando de Pujol, alcança um novo patamar de produtividade. Sua administração "compreensiva" traz à tona os artifícios do capitalismo que se renovava na passagem para os anos 1980. O lema é fazer concessões pontuais para evitar a rebeldia. Fazer "concessões", porque é isso que o status quo precisa. Se, de início, temos a impressão de que Potiche faz um elogio liberal da pequena empresa, uma fala de Pujol ao lado da fotografia de seu pai, de quem ela herdou a fábrica, dissipa essa ilusão.

O filme de Ozon deixa em evidência a interpretação equivocada da ideia de emancipação, típica de uma época que volta o seu foco para as partes sociais sem levar em conta o todo. O que esperar de Pujol, esta personagem que entra na política como quem planeja um divórcio, já que é "vista com outros olhos" pelo marido? Com certeza, nada que seja realmente político. O problema, como mostra a evolução das redes de 1980 para cá, é cada vez menos a invisibilidade dos sujeitos, e cada vez mais o total desaparecimento deles; uma coisa é "ser visto", outra coisa é "ser sujeito". Se Ozon não pretendeu satirizar a própria simpatia do espectador diante da sua protagonista, é porque a sátira lhe fugiu ao controle e contaminou toda a representação - o que, por sinal, fez muito bem a Potiche .

Rodrigo Cássio é professor na Faculdade de Comunicação da UFG e doutorando em filosofia da arte pela UFMG