quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O melodrama e a qualificação do olhar no cinema

O olhar domesticado e a qualificação do olhar

Lisandro Nogueira

Os filmes Fatal (foto) e Sete vidas, em cartaz em Goiânia, têm em comum as convenções do melodrama. O velho gênero, em sua dinâmica e inquestionável capacidade de atualização e sedução, desde o século dezoito, enreda seus tentáculos nas narrativas, literárias, primeiro, e, depois, também cinematográficas. Ele organiza idéias e tipos de narração já cristalizados na cultura, com o objetivo de conquistar, em razão da comunicabilidade fácil, rápida e padronizada, a adesão maciça, já garantida.

Não por acaso, esses filmes conquistam imediatamente o público e, não raro, levam-no ao choro incontinenti. Para fazer uma espécie de contenção à força sedutora do melodrama, posso invocar o conceito de olhar domesticado (desde pequenos, assistimos a desenhos, filmes e seriados baseados no melodrama e na narrativa clássica do cinema), e é escasso o acesso a outras formas narrativas. Contudo, quando o propósito é entender a dinâmica e a capacidade de atualização e de permanência do melodrama no contexto narrativo contemporâneo, utilizar somente esse conceito (o olhar domesticado) não parece suficiente.

De fato, a cultura a que pertencemos tem tradição muito antiga na valorização da culpa, da vítima ("o mundo conspira contra mim"), o que reforça o ressentimento como moeda de troca nos afetos, amores e conflitos familiares. Boa parte do cinema brasileiro recente é composto de personagens ressentidos, que se utilizam da violência e da má consciência para conquistar espaço e estancar a mínima civilidade e reflexão – caso de Tropa de elite.

O ressentimento
O cinema americano, em geral, é mais sutil ao lidar com os recursos do melodrama e os personagens ressentidos. Na verdade, o ressentimento é menos aparente, recaindo a preferência sobre os personagens vitimados pelas circunstâncias. Naquela cultura, é óbvio, os personagens vitimados angariam mais simpatia do que os ressentidos. Estes, nos filmes americanos recentes, são logo edificados e enquadrados como psicopatas. Eles não alcançam o estatuto de "culpados ou vítimas", pois são logo patologizados, são doentes, e se revestem de uma roupagem atraente e simpática. Na trama, geralmente, esses personagens são vencidos e a estabilidade do grupo ou da sociedade se restaura – vide o Batman mais recente.

Desde Griffith (o criador da narrativa clássica – os filmes de começo, meio e fim que terminam com mensagens edificantes e apaziguadoras), o melodrama angariou um vasto público e seu poder de envolvimento e sedução assegurou sua atualização permanente. Até o próprio Griffith, nos anos 30 do século passado, foi descartado pela indústria do cinema, ao transparecer certa incapacidade para atualizar sua moral cristã, inadequada para aquele mundo moderno e efervescente.

Se foi a extraordinária capacidade de atualizar-se e de seduzir que alçou o melodrama a um patamar sólido, penso que o olhar domesticado é mesmo ainda limitado para completar o percurso analítico desse gênero na produção recente do cinema. Assim, a idéia de gosto, desenvolvida no âmbito dos estudos da estética, pode contribuir para pensar filmes melodramáticos como Sete vidas e Fatal, ou outros, também em exibição, como A troca e Marley e eu.
O gosto

Ted Cohen assinala que o termo gosto pode, por um lado, sugerir “a preferência por coisas melhores"; por outro, gosto pode sugerir "a capacidade de discernir entre vários elementos, de distingui-los". Ele se pergunta: "Deve-se ter um gosto melhor? Deve alguém querer ter um gosto melhor? É melhor ter um gosto melhor?". Penso que a última pergunta é crucial. Se atribuirmos a gosto um sentido simplório, vulgar, algo como "eu gosto desse filme porque gosto e gosto não se discute", não caminharemos para lugar algum. A partir desse ponto, o locutor desfiará um rosário de adjetivos para qualificar o "seu" gosto e o diálogo fica encerrado.

No entanto, se temos a pretensão de qualificar o olhar e avaliar com acuidade um filme, podemos, pelo menos, amenizar e limitar os poderes do olhar domesticado. Não o fazer de forma arrogante e impulsiva é um bom caminho para um cinéfilo interessado em não ficar trancafiado nas malhas de qualquer melodrama. Surge daí a oportunidade de compreender o melodrama e vislumbrá-lo em sua diversidade. Esta é, para mim, a primeira e prazerosa tarefa no processo de formação do espectador. Assistir a Sete vidas e Fatal, entre outros filmes, e procurar discernir o tom melodramático de cada um é um passo fundamental.

Sete vidas é um exemplo típico da permanência do olhar domesticado. A história de alguém que passa a vida tentando redimir sua culpa é um tema recorrente, bíblico, altamente emblemático da nossa humanidade. Mas o filme não problematiza, não coloca dúvidas na busca, incessante e redutora, do personagem. Ele procura fazer o bem de qualquer forma e a ação dramática, em vez de adensar sua composição, visando a uma melhor compreensão das tragédias da vida, vitimiza-o e induz no público os sentimentos de pena e compaixão. Daí, o lenço de papel resulta inútil. Somente o antigo e bom lenço de pano daria conta da torrente de lágrimas.

Sem o adensamento do personagem e com o enclausuramento do tema nas normas da estrutura clássica narrativa, o gosto caminha para o não aprimoramento. Afinal, o drama realiza a catarse e nos faz chorar. Essa forma de choro preenche um lugar essencial em nosso cotidiano. Ele nos faz lembrar da sensibilidade à flor da pele, purga momentaneamente a dureza peculiar das relações humanas e nos lança numa gratificação quase inquestionável.

Fatal é mais "sofisticado". O personagem central avança para a velhice, quando encontra uma moça jovem e bonita que pode, quem sabe, aplacar seus temores diante da precariedade da vida. A trilha sonora passa por Eric Satie, Bach e outros compositores sempre muito bons, concedendo ao espectador a sofisticação que ele supostamente merece. Os enquadramentos e os movimentos de câmera asseguram o distanciamento certo para nos poupar dos primeiros planos lacrimosos, comuns em Sete vidas.
Melodrama sofisticado

No primeiro filme, o gosto combina com a pessoa que faz brandir o bordão "gosto não se discute". Se há choro, compaixão e arrependimento, não há por que nutrir dúvidas. "O filme me fez bem, isso, sim, me interessa", afirma o cinéfilo. E, nesse caso, não há o que discutir e o olhar domesticado segue incólume. Em Fatal, a pseudo-sofisticação não dá lugar à compaixão imediata, pura e simples. A compaixão vem embalada com papel de presente laminado. É preciso desbastar o embrulho, o engodo, com certa firmeza, senão ele prossegue até o veredicto soberbo: "Esse é um filme de arte". Daí o consolo, decorrente não de uma compaixão compulsória, mas da comprovação do gosto "sofisticado".

Não tenho dúvida de que Fatal é um filme melhor que Sete vidas. Os atores comprovam isso, assim como o roteiro, repleto de citações apanhadas do bom livro de Phillip Roth (O animal agonizante). Mas ele camufla a planificação dos enquadramentos e movimentos de câmera tão comuns nos filmes denominados cults. Exemplo: o personagem está na janela do apartamento observando a chuva, num momento de introspecção, a câmera afasta-se lentamente, mostrando os móveis, os objetos e o noturno psíquico do ambiente. É uma cena clichê que se repete em outros momentos. Se o personagem não tem densidade, mas apenas aparência de compleição e profundidade, e mesmo assim somos confortados com a boa música, o bom ator e diálogos com inteligência, o gosto também demanda o não questionamento.

A pergunta de Ted Cohen permanece: "É melhor ter um gosto melhor?" Penso que sim. Para além do olhar domesticado, e para pensar alguns filmes diante da realização técnica impecável, da cultura enraizada da vitimização-compaixão e da pseudo-sofisticação, convido-os a fazer a comparação, não com os convencionados "filmes de arte" (Visconti, Bergman, entre outros), mas com filmes menos ou mais recentes e também assentados no melodrama. Afinal, há melodramas e melodramas. E, a fim de cultivar o discernimento e a busca pela qualificação do olhar, podemos cotejar esses filmes com os de outros diretores, como Mike Leigh, Rainer Fassbinder e Pedro Almodovar. Todos têm filmes já lançados em DVD.

Segredos e mentiras e O segredo de Vera Drake, de Leigh, e Lágrimas amargas de Petra Van Kan (foto abaixo) e Afinal, uma mulher de negócios, de Fassbinder e Ata-me! e Mulheres à beira de um ataque de nervos (foto do meio) são filmes com base no esquema melodramático, que se afastam da linhagem cult, falsamente sofisticada, mas confirmam a idéia de que podemos, sim, ter um gosto melhor.

Em vez do melodrama canônico, realizado com afinco por hollywoody, esses cineastas exploram as contradições e os excessos do gênero. Almodovar, por exemplo, ironiza a afetação over dos personagens histéricos; Mike dá um novo contorno ao sofrimento equalizando as emoções sem cair no sentimentalismo; e Fassibinder, no diálogo com o cinema americano dos anos 50, e para além da frágil crítica feminista do cinema, estabelece um novo lugar para a mulher no melodrama.

Não existe “o melodrama”. O que existe é uma imaginação melodramática que perpassa vários momentos da vida cultural do ocidente, que oscila entre a mediania da indústria do cinema e seus produtos (Sete vidas), os melodramas cults e “sofisticados” (Fatal) e os melodramas que ironizam, respeitam e dialogam com a história e complexidade do gênero.


* artigo publicado no jornal O Popular em 15 de janeiro de 2009.

9 Comentários

Anônimo disse...

Filmografia de Mike Leigh:

Nasc: 20/02/1943 (65 anos)
Cidade: Salford, Greater Manchester
País: Inglaterra, Reino Unido

Filmografia
Simplesmente Feliz (2008) (Longa-metragem)
O Segredo de Vera Drake (2004) (Longa-metragem)
Agora ou Nunca (2002) (Longa-metragem)
Topsy-Turvy - O Espetáculo (1999) (Longa-metragem)
Garotas de Futuro (1997)
Segredos e Mentiras (1996) (Longa-metragem)
Roteirista
Simplesmente Feliz (2008) (Longa-metragem)
O Segredo de Vera Drake (2004) (Longa-metragem)
Agora ou Nunca (2002) (Longa-metragem), Escrito por
Topsy-Turvy - O Espetáculo (1999) (Longa-metragem)
Garotas de Futuro (1997)
Segredos e Mentiras (1996) (Longa-metragem)
(pesquisa de Pedro Vinitz)

Anônimo disse...

Filmografia de Pedro Almodovar:

Como director/realizador
2006 - Volver (Volver, Esp.)
2004 - A Má Educação (La Mala Educación, Esp.)
2002 - Fale com Ela (Hable con Ella, Esp., Fra.)
1999 - Tudo Sobre Minha Mãe (Todo sobre mi madre, Esp., Fra.)
1997 - Carne Trêmula (Carne trémula, Esp., Fra.)
1995 - A Flor do Meu Segredo (La flor de mi secreto, Esp., Fra.)
1993 - Kika (Kika, Esp., Fra.)
1991 - De Salto Alto (Tacones lejanos, Esp., Fra.)
1990 - Ata-me! (¡Átame!, Esp.)
1988 - Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al borde de un ataque de nervios, Esp.)
1987 - A Lei do Desejo (La Ley del deseo, Esp.)
1986 - Matador (Matador, Esp.)
1985 - Tráiler para amantes de lo prohibido (media metragem para o programa da TVE c)
1984 - ¿Qué he hecho yo para merecer esto?
1983 - Maus Hábitos (Entre tinieblas, Esp.)
1982 - Labirinto de Paixões (Laberinto de pasiones, Esp.)
1980 - Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón
1978 - Folle... folle... fólleme Tim!
1977 - Sexo va, sexo viene
1976 - Muerte en la carretera
1976 - Sea caritativo
1975 - Blancor
1975 - La Caída de Sódoma
1975 - Homenaje
1975 - El Sueño, o la estrella
1974 - Dos putas, o historia de amor que termina en boda
(pesquisa de Pedro Vinitz - assistente do blog)

Rodrigo Viana disse...

Professor Lisandro Nogueira aderiu ao mundo digital. Gostei. Adorei os posts também.

João A Fantini disse...

Pessoalmente, prefiro o melodrama excessivo pela sua proximidade com a comédia. Grande artigo.

ps. por favor, retire esta verificação de palavras. Para mim soa defensivo e dá trabalho extra aos comentadores. Além de obrigar os de 'vista cansada' (como eu) a um esforço a mais.......

Lisandro Nogueira disse...

Olá Rodrigo Viana,
que bom!! Apareça sempre por aqui. Um abraço,
Lisandro

Anônimo disse...

Boa tarde!! João Fantini,
Vamos retirar esse verificador. aguarde!!
(Pedro Vinitz).

Anônimo disse...

Caro Lisandro,

estive sem tempo, por isso fiquei vários dias sem escrever, embora tenha lido quase todos os dias os acréscimos. Mas queria fazer um comentário não sobre seu artigo, que tem temas demais, para um comentário rápido como o meu, mas sim sobre a sua insistência (que, a meu ver, não se justifica)em discutir cinema sempre procurando um eixo na questão do melodrama. Vou resumir o que eu penso numa fórmula bem simples:

"O problema não é o ME lodrama
O problema é a ME rcadoria!"

Lisandro Nogueira disse...

Caro José Teixeira,
Penso sim que faz sentido discutir o cinema, principalmente o de estrutura clássica, pelo viés do melodrama. Afinal, ele e o gênero-suporte de quase todo o cinema ocidental. Obviamente que existem melodramas e melodramas. E tb. "mercadorias e mercadorias". Apareça sempre por aqui.

Anônimo disse...

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