sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O que é um bom filme?

Lisandro Nogueira


Imediatamente, com alguma poesia, diria que um bom filme é aquele que traz imediata gratificação. É aquele que emociona, faz chorar, rir e encanta a falta de sentido do mundo. Todos nós sabemos, lá no fundo dos nossos sentimentos, porque gostamos de um filme: uma cena sem grande importância mas muito engraçada, a expressão triste de um personagem [o olhar perdido de Gelsomina em La estrada – 1954 - de Fellini], um diálogo no qual encontramos respostas para questões muito íntimas ou mesmo o ódio!!
Alguns filmes nos libertam de desejos mórbidos e nos lançam na gratificação estranha da vingança ou mesmo no prazer vicário de gozar com a dor alheia [Hit mostrou isso em I Confess e Festim diabólico].

Há mesmo o prazer domesticado em ver Marylin Moroe, a loira burra, majestosa e gostosa, fazendo de conta que vai dar bola para nosso olhar carente e prenhe de vontade sem fim. Quantas vezes vimos a mesma cena de Anne Baxter, em Os dez mandamentos (1956), franjinha adorável, pele branca e pouca sensualidade? Mas sempre brotava uma estranha e irresistível vontade de ser o seu Ramsés eterno. Esse desejo não tinha muito cabimento. Mas, ali, no escuro, fazia todo o sentido. Naquele momento foi o melhor “filme que vi na vida”.

Por outro lado, o melhor filme pode ser aquele que aparentemente esquecemos imediatamente ao sair da sessão. Anos depois, subitamente, ele volta trazendo um diálogo e algumas imagens. O Fantasma da liberdade (1974), de Buñuel, foi negado imediatamente por mim em 1982. Eu não via sentido naquela sucessão de imagens. Não havia motivos para imagens tão desconexas. Bené de Castro, do Cineclube Antônio das Mortes, como um mestre, me disse de forma suave e breve: filmes assim ainda voltam na nossa cabeça!!!.

Muito tempo depois me via querendo rever O fantasma de Buñuel. Somente em 1993, numa mostra que realizamos no Cine Cultura, sempre com debates, o revi e saí correndo para ligar para Bené. Devo muito a Bené, Lourival Belém e Ricardo Musse. Eles, com uma sabedoria de cineclubistas inteligentes e estudiosos, sempre deixavam respostas no ar. Jamais perdi a lição: o grande filme é aquele que provoca indagações, suscita emoções e nos coloca em contato direto com as dores e prazeres do mundo – principalmente através do mundo da estética.

Daí nasceu o sentimento de querer “qualificar a emoção”. Helena Antunes apareceu nos debates na Sala do Crea (1985-1987). Exibíamos filmes brasileiros, alemães, franceses, italianos e americanos. Moça sagaz, hoje em Londres, quase sempre estranhava o choro das mulheres com os beijos de novela.

Os beijos de novela realmente são fracos imageticamente. Para serem bons, eles devem trazer uma música interessante, um contexto não tão artificial e atores que extrapolam um pouquinho o “beijo técnico” [um beija o outro acima dos lábios]. Mas isso é raro em telenovela. Em O dono do mundo (1991), de Gilberto Braga, por exemplo, Angelo Lima e Letícia Sabatella proporcionaram um dos mais belos beijos para valer em telenovelas. As salas de estar tremeram em todo o Brasil e os lustres ficaram para lá e para cá enquanto Luiz Melodia cantava: “eu protegi seu nome por amor...”.

Helena não se contentava com as nossas sessões de sexta-feira que coincidiam com os últimos capítulos das novelas. Eram vazias. Resolveu criar um pequeno grupo de estudo. Em quatro meses o diagnóstico estava pronto: era necessário qualificar a nossa emoção. As novelas proporcionavam emoções boas, algumas vezes excelentes e prazerosas, mas eram fugazes. E, novela após novela, a emoção gratificava mas não dava suficiência para um gozo mais prolongado.

Vimos No tempo das diligências (1932), de J. Ford,e observamos [depois de decupado o filme, como ensina o prof. Jean-Claude Bernardet] a cena em que os personagens param numa estalagem para o almoço. Não há lugar na mesa para a prostituta Dallas. Mas J. Wayne, raramente elegante,arruma um lugar para ela. A câmera acompanha aquele movimento compartilhando o ato de justiça e focando o olhar afirmativo de Claire Davos. Belíssima cena, pois tudo estava ali: o cinema, a idéia de justiça, o gesto firme vislumbrando o amor e a idéia maravilhosa do lugar da democracia entre os grupos sociais.

Em outro faroeste, O homem que matou o facínora [um dos meus filmes preferidos, de 1962], de J. Ford, várias cenas ilustram a idéia de “qualificar a emoção”. Quando Ransom Stoddar (J. Stewart) chega na pequena cidade e vê o caixão de Tom Doniphon (J. Wayne), numa sala vazia e quase abandonada, todas as identificações e lembranças possíveis que podemos ter em relação a pessoas que, de uma forma ou de outra, nos ajudaram na vida vem à tona. Tom amava a mulher de Ransom. Mas o ajudou a fundar a democracia, o senso de justiça e soube, como ninguém, entender a importância da luta maior em nome de uma causa.

Em outra ocasião vimos Os incompreendidos (1959) de Truffaut. Duas cenas são intensas e revelam a melancolia do abandono e a perplexidade de estar desamparado e sem saída para a existência. Antoine, adolescente inquieto, é preso e levado na viatura para a prisão. A cena do seu olhar triste, momento de abandono absoluto, lágrimas que escorrem lentamente, ruas de Paris ao fundo, é forte demais para não admirar a capacidade do cinema para instalar em nós momentos tão monumentais de beleza estética. Naquele momento, todos nós sentimos a imensa solidão de nossas vidas e nos identificamos com ele. Mas não é apenas a sensação do abandono que nos toma o coração, mas o prazer de ver construído, através da ilusão cinematográfica, um sentimento tão doloroso que ganha outro significado com o aparato de luz, som e imagem. Da dor de existir surge uma beleza inexplicável.

Helena tinha razão em falar da qualificação da emoção. No final do filme de Truffaut, para ficar ainda mais claro o que isso significa, temos o plano-sequência (não há corte) em que Antonie foge do internato, sem direção, e termina sua correria à beira mar. Raros filmes conseguem retratar o desespero e o sofrimento de forma tão magnífica: a câmera corre ao lado de Antoine – ela não interfere, não explica, não suaviza. Observa simplesmente, como um anjo também desamparado, o não-lugar da existência. O close-up, usado a revelia pelo cinema ocidental, ganha aqui outra destinação. É especialmente belo e pode figurar ao lado de grandes pinturas e esculturas.

A idéia de qualificar a emoção é pertinente e não se estanca na frase que mobilizou o debate na mostra “O amor, a morte e as paixões”, em 2002, proferida pela profa. Silvia Borelli. Ao fazer um elogio rasgado do filme argentino O filho da noiva (2001), ela disse: “Nós sabemos na sala de cinema porque choramos”. Sem dúvida, não existe momento mais delicado e particular. Sabemos sim porque choramos. Mas quem “chora não mente”, já informava os velhos melodramas latinos dos anos 40 e 50.

Sabemos o quanto é possível mentir para nós mesmos quando choramos. O choro pode servir para enganar, ludibriar e reforçar em nós a autocompaixão. Uma das armas mais poderosas das vítimas nos melodramas clássicos e no telejornalismo é o choro. Diante dele nos calamos e afundamos no abismo junto com o personagem.

Se nos desviamos do encontro com alguma verdade através das lágrimas enganosas, é de se supor o quanto perdemos em termos de fruição estética quando, reiteradamente, ao longo da vida, nos prendemos apenas aos “beijos de novela”.

Qualificar a emoção não significa abandonar os sentimentos. Pelo contrário, significa não chorar com qualquer beijo de novela ou com cenas fáceis que ludribiam nossas emoções a flor da pele. É fazer do nosso olhar o olhar da câmera que acompanha Antoine em Os incompreendidos; é celebrar esteticamente junto com Griffith os milhares de planos realizados até chegar no close up consagrador de Lilian Gish em O lírio partido (1919); é chorar copiosamente com as duas crianças em fuga em Paisagem na neblina (1988) de Theo Angelopolus; é admirar com emoção a cena de despida das crianças com o pai pistoleiro, em Os imperdoáveis (1991) de Clint Westeaood .

Ou mesmo afundar na poltrona extasiado com os finais de Deus e o diabo na terra do sol - 1963 (para onde vão Rosa e Manuel naquela correria existencial?) e Ladrões de bicicleta (1948). Chorar é bom, chorar é preciso. Mas quem chora também mente. E mente para si mesmo. E qualificar a emoção esteticamente pode ser um bom procedimento para chorar e rir com sinceridade.

3 Comentários

Lauro António disse...

Muito bom texto, Lisandro. Um grande abraço

Lisandro Nogueira disse...

Obrigado!! Lauro. Os filmes revelam o mundo. Isso é bom. Um abraço, lisandro.

Anônimo disse...

Oi, professro Lisandro. Descobri por acaso, mas com grande contentamento, o seu blog. Ainda mais sendo esse o primeiro texto que li. Já sou audiência. Forte abraço, Aline.

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