quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

De David Griffith a Benjamin Button

Os EUA de David Griffith a Benjamin Button

Rodrigo Cássio

Em Intolerância (1916), de David Griffith, uma única imagem intercala toda a trama: a de uma criança recém-nascida, aos cuidados de uma mulher, sentada ao centro de uma grande sala. A imagem, que é repetida inúmeras vezes entre as quatro narrativas do filme, pode ser considerada uma metáfora tão expansiva, no cinema de Griffith, que ultrapassa a sua presença nessa obra particular.

A criança, em seus primeiros momentos de vida, associa-se melhor ao título do filme anterior de Griffith, O nascimento de uma nação (1915). O que nasceu, e deve ser amparado com o zelo de uma mãe cuidadosa, é a própria nação norte-americana.

O projeto ideológico de Griffith, tão incisivo quanto a sua disposição para solidificar certa concepção de cinema narrativo, percebia a intolerância de maneira bastante particular: intolerantes são os outros, os não-protestantes, os não-capitalistas, sempre equivocados ao se chocarem contra os valores fundamentais da Nação, cujo poderio e papel de regente do mundo estavam pré-destinados.

Nesse sentido, a reminiscência histórica de Intolerância (foto abaixo) é impressionante, a fim de justificar certa ideologia, pela qual os EUA são os portadores de uma força civilizadora ideal, capaz de “corrigir” os descaminhos daqueles que seguem à deriva.

Para Griffith, o problema não é propriamente a intolerância, mas os seus alvos, a maneira como ela se exerce. Perseguir e matar os negros, por exemplo, não é um ato intolerante, mas de bondade e de justiça, em nome do progresso. Logo, em O nascimento de uma nação, o clímax recai sobre a ação da Klu Klux Klan, apresentada como uma organização justiceira, que “limpa” a cultura branca da malvadeza dos negros.

Griffith foi o mais destacado iniciador de um tipo de cinema ideológico que, até certo ponto, caracteriza Hollywood entre os seus primeiros anos e o final da década de 1950. Depois da crise, em torno dos anos 1960, o cinema norte-americano precisou de algum tempo para retomar o grande fôlego. Conseguiu, e, hoje, o cinema mais visto no mundo ainda repercute Griffith, amparado e renovado pela chamada estética high concept. Contudo, as dissidências também se tornaram mais visíveis, herdeiras do Novo Cinema Americano ou do espírito de um Orson Welles, cineasta precursor de uma série de diretores – modernos –, que abandonaram o projeto griffithiano em prol de uma maior autocrítica, antes faltante. Os filmes dos Irmãos Coen, de grande respaldo atualmente, é um dos bons exemplos desse cinema.

O curioso caso de Benjamin Button (2008), de David Fincher, surge ao cabo dessa trajetória de Hollywood. A imagem de uma criança protegida por uma mulher cuidadosa, emblema de Intolerância, repete-se em um outro contexto. A criança é o próprio Benjamin Button, um bebê, ao final da vida (o seu curioso caso é ter nascido velho, e rejuvenescer com o tempo), nos braços da mulher idosa que teria sido sua amante. Numa leitura possível, Benjamin Button é o bebê de Griffith, nascido e envelhecido, deslocado do seu lugar original. Um bebê que não pode ter futuro, e que, portanto, não pode liderar um projeto civilizatório.

Essa alegoria reverte o bebê de Intolerância, na medida em que tece um paralelo entre a vida da personagem e a história norte-americana – construção narrativa que lembra outra personagem alegórica, o Forrest Gump do filme homônimo de Robert Zemeckis. Button, o bebê, já não tem memória. Quando velho e adulto, conviveu diariamente com a morte dos outros, tendo se criado em um asilo. Mas essa consciência trágica lhe é estranha. Quando, por fim, se encontra fisicamente apto a dialogar com a alegoria de Griffith, Button, o bebê, é um ser esvaziado.

É como se a personagem nos dissesse, assumindo o papel da criança griffithiana: a minha história, se ela foi a história de uma nação, do poder que uma nação exerceu sobre o mundo, ela é uma história que não deve ser assumida pelos bebês de hoje, os bebês que, diferente de mim, têm um futuro a construir.

Soma-se a isso o fato de que Button, no nascimento, foi abandonado pelo pai industrial, e adotado por uma mãe negra - inversão dos valores griffithianos, que oferece o contraponto à idéia de que o passado deve ser apagado. A trajetória de Button afirma que outras relações étnicas e outros valores são possíveis. Um recado humanista, de esperança, que serve aos candidatos a potências mundiais, e se instaura como evidência da crise de um projeto nacional - o projeto norte-americano.

Mas o recado também é pacifista. Não por acaso, a magia que faz de Button um transgressor da ordem biológica é metaforizada por um relógio que roda ao contrário, criação provocadora de um cidadão norte-americano, crítico da Primeira Guerra Mundial. O relógio fica exposto em praça pública, durante todo o período em que os EUA se manteve como líder incontestável do Ocidente, e apenas é retirado em 2002, quando repercutem a retração e o revés doloroso do atentado às Torres Gêmeas, anunciando a crise do império.



O cidadão estadunidense construiu o relógio por querer de volta a vida dos jovens mortos na guerra, incluindo o seu filho, que aderiram a uma visão de mundo essencialmente belicista (e como são belicistas os filmes de Griffith!). São estes jovens as crianças griffithianas que ficaram pelo caminho, na construção de uma hegemonia que perde sentido nos idos do século XXI.

Nesse passo, David Fincher, depois de explodir o império avançado do consumo em Clube da Luta (1999), pretende dar voz aos americanos que não fomentaram irresponsavelmente a modernização capitalista. Algo de bom tom, quando a sua democracia elege Barack Obama, descendente direto dos que sobreviveram à Klu Klux Klan de David Griffith. Um presidente de quem as “outras vozes” esperam, no mínimo, um novo significado para a palavra tolerância.
* Rodrigo Cássio é jornalista e mestranda em cinema-comunicação na Facomb-UFG.




2 Comentários

Caroline Pires disse...

Interessante perceber como a figura do bebê branco e frágil com a imagem da mulher negra e forte é construída com delicadeza no filme.
O pai do cinema de estrutura clássica se reviraria no túmulo se pudesse saber que o cinema que ele é genitor reformulou os valores e a maneira de mostrar a moralidade... ainda bem!
Parabéns pelos paralelos construídos entre os dois filme.
E para mim, uma aprendiz e interessada em cinema de estrutura clássica Benjamim Button vale muito a pena provando que
nem só de comédias românticas vive Hollywood! Bom... pelo menos é essa minha esperança...

Anônimo disse...

Quando crescer, hei de escrever assim.

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