GRAN TORINO
Luiz Pondé
CLINT EASTWOOD é o melhor cineasta dos EUA. Não vejo nenhum herdeiro de sua coragem. Quase todo mundo teme a opressiva esquerda cultural americana que faz de qualquer pessoa uma vaquinha de presépio. Eastwood é um herdeiro da narrativa trágica norte-americana: enquanto o homem enfrenta sozinho a vastidão do ódio e da indiferença, testemunha os detalhes da beleza solitária de alguns dos seus semelhantes.
A cultura contemporânea é vítima da mania de ver a si mesma como agente do "bem comum" e, neste movimento, acaba por repetir, a exaustão, a ideia de que o homem seja capaz de escapar do destino. Esta posição é presa de uma dedução falsa: (1) sou "progressista" (otimismo social), logo, (2) tenho coragem. A lengalenga politicamente correta, que só agrada aos amantes de clichês (o "outro" é bom, os gays são bons, mães solteiras são legais, a democracia é linda, o multiculturalismo é o Éden), estimula a covardia estética.
Qual destino? Nas palavras do personagem que Eastwood interpreta em "Gran Torino" (um carro modelo 1972, grande objeto de desejo no enredo do filme que carrega seu nome): "o mundo nunca foi justo". Afirmações como estas normalmente são entendidas, pelos amantes dos "clichês de presépio", como sendo contra a liberdade humana.
Nada mais ridículo, quando você está diante de um artista que rompe a ditadura da arte "progressista": Eastwood leva ao limite a consciência trágica de que o ser humano está enredado numa teia que o esmaga, mas nem por isso os valores humanos como coragem, amor, generosidade, valem menos, se você está disposto a enfrentar essa teia.
Esta é a máxima que escapa aos olhos cegos de medo de que, ao final, o homem seja uma paixão inútil. Seríamos nós uma sombra que se bate contra o vento que passa? Já nos "Os Imperdoáveis", Eastwood, relendo o faroeste (estilo estético que trata do mito americano da coragem que se bate com a fronteira do mundo), dizia que, afinal, a razão da transformação de um assassino (com um talento imbatível para matar) em um bom esposo e pai de família era a ausência do álcool.
Nada mais terrível, para uma cultura "de presépio", do que deduzir a diferença moral da presença ou não de uma mera substância química, ou seja, uma forma de materialismo miserável.
Em "Sobre Meninos e Lobos", ele marcará a diferença entre você ser ou não fraco: o personagem vivido por Tim Robbins é um fraco desde a infância, quando entra no carro dos pedófilos e permanece inseguro sempre, a ponto de escolher uma mulher que o entrega para a morte, enquanto o outro (vivido por Sean Penn), sempre acima de dramas comuns de consciência e que tem a filha assassinada, terá, ao final da trama, na sua deliciosa esposa, a reafirmação de seu valor como homem e pai de suas filhas.
Em "Menina de Ouro", Eastwood, ousadamente, descreve a "vida de uma santa" (a dedicada e generosa pugilista) destruída pela inveja e pelo azar: um golpe baixo a lança a tetraplegia e a eutanásia. Aqui ele toca o máximo da descrição de como o mundo esmaga a virtude e a beleza. Em "Gran Torino", Eastwood interpreta um velho herói da guerra da Coreia, morando entre asiáticos nos EUA. Gangues étnicas cortam o cotidiano do bairro decadente. Seus filhos são interesseiros e desinteressados pelo velho pai viúvo.
Os dois filhos da vizinha vietnamita serão seus parceiros na luta solitária contra a violência interna a comunidade asiática. Essa menina corajosa e esse menino tímido, mas resistente à violência, serão seus verdadeiros herdeiros. O velho herói percebe, sempre nos detalhes, a virtude de ambos e se põe ao lado deles. Eastwood é o velho "conservador" que se revela capaz de superar as "diferenças" em nome da resistência que esses adolescentes oferecem a violência de seus irmãos de sangue. Relendo as velhas cenas de duelos, Eastwood define a essência do heroi: quem quer verdadeiramente vencer o mal, não pode temer a morte. O filme supera o maniqueísmo bobo que a cultura barata da esquerda americana nos obriga a respirar. Para além da falsa oposição entre reacionários e progressistas, o cineasta aponta para o verdadeiro nó da condição humana, hoje e sempre: quem tem coragem de enfrentar o mundo sem ser parte do rebanho?
Ao final, o jovem vietnamita passeia com seu troféu: o Gran Torino, o símbolo da nostalgia de um tempo onde as pessoas sabiam que o destino é sempre imperdoável.
* Luiz Pondé é prof. na Puc e escreve nas segundas-feiras na FolhaSP.
6 Comentários
Bom texto. Provocante. Ok! Mas por que o Pondé toma por alvo somente a esquerda? No fundo, não consegue escapar da própria simplificação que questiona.
O texto acusa a esquerda de ser clichê, e faz isso de maneira clichê: reverbera o maniqueísmo. Celebra e defende a manifestação de um dos lados, e não vai muito além.
Um olhar atento (ou mais honesto) ao embasamento dos "progressistas" serviria para destruir mitos que o Pondé alimenta, talvez sem querer. O questionamento do penúltimo parágrafo, por exemplo (a disposição de dar a vida a algo, o heroísmo) não é algo que as teorias "progressistas" tenham ignorado. Do mesmo modo, o multiculturalismo já passou por muitas inflexões do próprio arcabouço que lhe deu origem.
Sobretudo, Pondé fala de "covardia estética". Mas será que o cinema do Eastwood é um dos mais ousados esteticamente? Desculpem-me os conservadores de plantão (os que ainda insistem nessas dicotomias), mas ousadia estética nunca foi uma característica do discurso "conservador". Longe disso...
Ou seja: o Pondé tem razão. Mas o problema que o mobiliza, até onde posso ver, não é algo atribuível unicamente à "esquerda americana". Essa associação dá margem a mais intrigas ideológicas, e acaba omitindo o que há de bom no universo "da esquerda" (ou da direita, enfim). O debate estético, a meu ver, é o que mais sofre com isso.
Olá Rodrigo,
Você tem razão: quem perde é o debate estético. Mas gosto de um aspecto no texto dele: ele valoriza o cinema americano, Clint, assim como os franceses valorizaram (nesse e em outros aspectos). A percepção de Clint em discernir o seu tempo e ter coragem para nadar contra a corrente - no caso o chatíssimo "politicamente correto". Aliás, esse "politicamente correto" está atrapalhando os debates e as discussões. Falta coragem e as pessoas se escondem e se omitem em função de uma "atitude correta" - quando não massacram o oponente tachando-o de "direita", "conservador" e ´por aí vai... . Em outro aspecto estou com Pondé. Ele, pelo menos, vai direto ao filme. E mais: tem coragem de expor sua opinião. O problema dele é a crescente arrogância q. pode atrapalhar o percurso de um bom ensaísta. Ou seja, elege um inimigo, uma generalizada "esquerda", e esquece dos argumentos e do debate. Aí mora o perigo...(lisandro)
Lindo e corajoso artigo!
A meu ver há outro problema. Além do ataque aos progressistas, o autor, como o Rodrigo demonstrou, acaba por cair em sua própria armadilha, pego pelos valores que critica.
No início do texto o autor considera Eastwood como o herdeiro do cinema "trágico americano", e mais, que ele "leva ao limite a consciência trágica de que o ser humano está enredado numa teia que o esmaga, mas nem por isso os valores humanos como coragem, amor, generosidade, valem menos, se você está disposto a enfrentar essa teia." Em outro momento, o autor coloca o cinema de Eastwood como alternativa ousada contra o cinema apático e maniqueíesta que segundo ele a ideologia "progressista" formulou.
Vamos agora a descrição que o próprio pondé faz do filme "menina de ouro" segundo ele, no filme "Eastwood, ousadamente, descreve a "vida de uma santa" (a dedicada e generosa pugilista) destruída pela inveja e pelo azar: um golpe baixo a lança a tetraplegia e a eutanásia. Aqui ele toca o máximo da descrição de como o mundo esmaga a virtude e a beleza."
Hora, a dicotomia entre uma personagem heroína representante do belo/virtude e uma vilã representate do feio/inveja, não seria maniqueísmo? Não é o fato do filme não ter tido um final feliz para sua hoerína que o fez trágico. Na verdade não foi o mundo que esmagou o sonho da "santa pugilista, mas uma vilã representante do mal. Além de maniqueísta, o filme traz uma ideía de ressentimento muito forte, que ao meu ver é o principal ingrediente dos filmes de Eastwood e que esta sendo confundico como coragem de dizer que o mundo é ruim. è o que acontece na filme " A troca" e pelo visto é o que acontece no Gran Turino quando o personagem de Estwood diz "o mundo nunca foi justo". Exite frase mais ressentida do que esta? Será mesmo que isto é coregem e ousadia estética. Concordo com o Rodrigo, muitos textos usam do filme para refletir sobre sentimentos, emoções, traumas, e ideologias que nos afligem. Mas o debate estético acaba sempre sendo varrido para debaiso do pano.
Abraço a todos.
Wertem
Caro Werten,
Aluno bom na graduação segue em frente e fica cada vez melhor. Seu comentário está ótimo. Uma ponderação: lembrando Maria Rita Kehl no livro "O ressentimento", ela faz uma separação entre a "revolta" e o "ressentimento". Talvez o personagem tenha muita revolta qdo. afirma que "o mundo nunca foi justo". Afinal, cometeu atrocidades, matou quem não queria, arrebentou com sua juventude e vida. Outra coisa: ele expõe não um vitimismo mas um proceso de recuperar a honra. Cineastas (como ele) vivem numa corda bamba: oscilam entre o esquema do melodrama e as tinturas do senso trágico. Produzem dentro de uma indústria e procuram alcançar o máximo de "autoria". Outra coisa: dentro de uma indústria voraz é complicadíssimo um pouco de autonomia. Valorizo cineastas como ele que "esticam a corda" até onde é possível. ps- vi "Menina de ouro" apenas uma vez. Eu penso que ali o pé no melodrama é bem mais forte; ps2: estou feliz com sua maturidade e maneira de "ver o filme". Parabéns!!
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