domingo, 1 de março de 2009

Paris, Texas no Cine-UFG

Paris, Texas.

Ricardo Musse*

As primeiras cenas do filme narram o regresso de Travis à vida normal, ao mundo cotidiano. Após ser resgatado pelo irmão na fronteira do deserto, reencontra, passados quatro anos, seu filho Hunter. O garoto inicialmente mostra-se incomodado, pois além de magoado pelo abandono, visualiza nos modos do pai uma ameaça a seus valores de classe média. Porém, uma vez quebrado o gelo, por meio de uma aproximação facilitada pela exibição de antigas imagens em super-8, a aventura se inicia. Tal qual Ulisses desembarcando em Ítaca, trata-se do regresso ao lar.

Alice nas cidades não mostra o reencontro da criança com os pais. Paris, Texas retoma e desenvolve a cena que em Alice nas cidades foi apenas sugerida e substituída por uma belíssima tomada aérea. Mas, se o retorno de Alice à vida familiar indicava o fim da aventura, em Paris, Texas a reconciliação do casal prometia desencadear a volta aos primeiros tempos quando “tudo, até mesmo ir à mercearia, era uma aventura”. No entanto, diferentemente do lar do irmão, no qual a presença de Hunter fortalecia a coesão do casal, no caso de Travis as desavenças conjugais se precipitaram a partir do nascimento do garoto. O número ímpar aponta para o fim da aventura.

Win Wenders retoma e atualiza um motivo típico do gênero épico: o regresso após longos anos do pai a seu lar. Mas, se as peripécias de Ulisses se desenvolviam sobretudo no caminho de retorno a Ítaca, onde Telêmaco e Penélope o aguardavam ansiosamente, o esforço de Travis volta-se para a reconstituição dos vínculos e afetos que moldam a unidade familiar.

A procura de seu lócus, a reconstrução do lar apresenta-se como um dedobramento inseparável da reflexão acerca da tensão que ele carrega em si próprio, oriunda da dificuldade de conviver com os outros e consigo mesmo. Travis tenta recompor sua identidade depois de uma temporada no inferno, de uma descida ao submundo que ele descobriu em sua vida interior. Nesse esforço, adota como guia e ponto de apoio o movimento de retorno ao princípio.

O filme é pontilhado por referências às origens: Travis discorre sobre a possibilidade de ter sido concebido na minúscula Paris, no Texas; Hunter explica ao pai a origem dos planetas. Imprime-se assim à aventura uma direção, o telos da volta à origem. Essa busca, no entanto, não conduz a nada: a foto do terreno em Paris não fornece a Travis uma identidade, nem o dinossauro de plástico do garoto no motel-parque significa um retorno ao mundo pré-histórico: são apenas imagens, desprovidas de poder efetivo, metáforas da impossibilidade de retomar a felicidade conjugal perdida no passado.

Como contraponto ao vazio desse falso movimento, o filme sugere a comoção e o pathos das peripécias de reconhecimento. O gesto de olhar para trás, desafiando a maldição de Orfeu, a preocupação em revolver o passado, em desatar os nós da memória não é vã, pois permite a Travis saldar uma dívida, e a Hunter realizar uma correção de rota, o reencontro com a mãe verdadeira.

Na medida, porém, em que faz das peripécias de reconhecimento o eixo emotivo do filme, restabelecendo a recomendação aristotélica, Win Wenders ensaia um recuo em sua obra, pautada até então exclusivamente pelas diretrizes do cinema moderno. Com essa mescla de “road-movie” e melodrama, ele se prepara para repetir a trajetória dos grandes mestres do cinema mudo alemão, desembarcando na estética e nas terras de Hollywood.

* Ricardo Musse é prof. de sociologia na USP e um dos fundadores do Cineclube Antonio das Mortes

5 Comentários

Anônimo disse...

O filme de Werders esta em cartaz no cine ufg ao meio-dia e 17:30h. VEr programação dos filmes no blog - do lado direito em links. (Pedro)

Anônimo disse...

Esse moço vai longe. Tem um grande futuro como crítico de cinema.
Herondes

Anônimo disse...

Gente, e o Cine Cultura? Cadê as autoridades responsáveis pela (in)cultura em nosso Estado?

Não vou ao Campus, é muito longe. :D

Anônimo disse...

Herondes: Ricardo sempre vai longe e gostamos da disponibilidade com os amigos. Esse filme é muito caro e importante para nossa geração. Naquele momento, ele "encerrava" um ciclo de cinema de autor. E trazia questões subjetivas importantes. Muito bom!!
Thiago: a informação que tenho é q. o Cine Cultura está sendo reformado. O Cine da UFG não é assim tão longe. Vale a pena pois é o melhor em projeção, hoje, em Goiânia. (Lisandro)

Anônimo disse...

Paris, Texas para além de muita coisa boa que ficou para trás, foi o encontro de winn Wenders com o grande público. É tudo isso que Ricardo Musse bem disse, como sempre.
Também é a passagem ao luto, que todo melancólico tem que passar.
Filme inesquecível, que é bom não esquecer, para alguns críticos daqueles tempos era a americanização de Wenders...
O tempo acaba com a maledisc
ência. Duro é aguentar firme.
joao fantini

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