quarta-feira, 20 de maio de 2009

CHE e o cinema de guerra

CHE e o cinema de guerra


Rodrigo Cássio*


Ao assistir Che: Parte Um, de Steven Soderbergh, lembrei-me de um artigo de Thomas Sobchack, professor de cinema da Universidade de Utah, chamado Genre filme: a classical experience. Em especial, lembrei-me do trecho que traduzo a seguir:

O assunto de um filme de gênero é a sua história. Não é sobre qualquer coisa que importe fora do filme, mesmo se o filme nos diz algo, inadvertidamente, sobre o tempo e lugar da sua criação. A única justificativa para a existência do filme é tornar concreta e perceptível as configurações inerentes à sua forma ideal. Que os vários gêneros tenham mudado ou passado por ciclos de popularidade não altera o fato de que as coordenadas subjacentes básicas de um gênero são mantidas repetidas vezes.

Difícil não pensar em tais limitações do cinema de gêneros diante do filme de Soderbergh. Um filme sobre Che Guevara, no qual a mitologia que envolve o revolucionário é pouco mais que um esteio para deflagrar uma narrativa de guerra.

cheEstão lá as marcas da vilania e da virtude. Che é um combatente aguerrido e disciplinado, líder inequívoco da missão libertadora contra a miséria de Cuba. Ao mesmo tempo, a sua humanidade justifica a ação violenta em um plano ético: entre a feiúra dos corpos que caem, em sangue, acessamos Che no exercício da medicina, no cuidado com os pobres, na preocupação com as condições de vida do povo latino-americano. Antes e depois de se tornar um emblema da Revolução, Guevara traz as vestes próprias do ser singular, apto a responder a tudo e a todos. Soderbergh partilha, ao menos em parte, o olhar de Walter Salles em Diários de Motocicleta (2004).

Importante ressaltar que nada disso, por si só, é ponto negativo para o filme. Pouco pode ser dito sobre a esquerda revolucionária dos anos 1950-70 sem tocar em temas como o do romantismo, em seu sentido mais amplo. Pouco pode ser dito sobre um homem como Ernesto Guevara sem que venha à tona esse caráter universal da luta contra o capitalismo tardio, o imperialismo yankee, a dominação velada dos homens pela naturalização de valores anti-humanistas.

No entanto, o filme de Soderbergh nada acrescenta à investigação da personagem, para além do mito já construído e positivado como figura da revolução vitoriosa. Se temos aqui uma personagem cuja exterioridade é tão ou mais densa que a sua interioridade, o filme prefere se pautar pelo universo interior de Che, deixando de confrontar a sua imagem com as circunstâncias objetivas da luta. Se conhecemos a pobreza cubana, ela é filtrada pela mão estendida do revolucionário, que corteja o povo, sem perder a ternura, ainda que empedernido. Se podemos ouvir as vozes dissonantes, na assembléia da ONU onde Che discursa, a luta das ideias é apenas um empecilho subjetivo para que o protagonista reafirme a força da sua presença.

Sobretudo, a maior parte do filme é dedicada ao sucesso da revolução, ao passo a passo da conquista de Havana. Nesse caminho, a complexidade de uma consciência como a de Che (a consciência de uma época, e não apenas a dele, como pessoa) é substituída pela facilidade de justificar o engajamento do espectador, a torcida pela resolução e a vitória do mais justo. É aqui que a citação de Sobchack faz todo o sentido: o Che de Soderbergh não é histórico, se isso significa o extrafílmico que serve de base para a obra. Ele é histórico apenas no plano intrafílmico, das relações causais que culminam na deposição da ditadura de Fulgêncio Batista. E pode ser que poucas personagens sejam tão convenientes a um cinema de guerra convencional que Guevera: é possível simplesmente se apoiar no mito, deixando valer a fórmula do gênero, e, para não parecer tão óbvio, forjar certo ímpeto historiador, não totalmente vinculado ao entretenimento.

O que prova um filme como Che: Parte Um? Talvez, que a indústria do entretenimento é suficientemente forte para abraçar inclusive os que lutam contra o seu maior fundamento, o capitalismo. O Che de Soderbergh é aquele das camisetas, e não o que permanece oculto debaixo das infinitas narrativas sobre a sua vida, o seu lugar, o seu legado – tema de um outro filme recente, mais interessante que este, chamado Personal Che.

* Rodrigo Cássio é formado em filosofia e jornalismo. Mestrando em comunicação-cinema na Facomb-UFG. É meu orientando na pesquisa sobre Cinema Brasileiro.

2 Comentários

Blog da Confraria disse...

Eu concordo. Uma vez conversei com um professor de psicologia da UCG sobre o Chico Xavier e ele me falou que ao se tratar com um mito, existe o enigma da esfinge para quem ousa a escrever sobre um mito. Se não conseguir decifrar o mito ele acaba te devorando. É o que aconteceu com o Soderbergh ao retratar o Che nas telas e também com o Walter Salles. E não que isso desmereça qualquer um dos dois filmes, talvez toda a história cinematográfica necessite de mitos. Não sei. O fato é que gostei muito de ambos os filmes.
O sucesso da revolução cubana frente à maior potência militar é algo que fascina.
O interessante do PERSONAL CHE é que ele coloca o CHE que existe em cada um.

No mais, um abraço ao Lisandro e na esperança de que o Benazzi coloque o Vila na série A, pois é la que ele merece estar.

Rodrigo Cássio disse...

Olá!
Talvez o mito de Che tenha devorado mesmo o Soderbergh. Mas suspeito, antes disso, que qualquer personagem poderia ser convertida em mito na estrutura do filme que ele fez. Essa força do Che pode vir de fora: nos encantamos com os fatos, a vitória de uma guerrilha sobre uma potência. Mas o filme de Soderbergh não nos mostra a história: evita os fatos, para ficar com a superfície do Che-midiático.
Já Personal Che é um filme muito interessante, porque reconhece o Che como mito, e leva isso à última consequência. Há algo mais inquietante que aquelas populações ainda agora miseráveis, que cultuam Che como se ele fosse um novo Cristo?
Um abraço!

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