quinta-feira, 7 de maio de 2009

"Simplesmente feliz", mais um olhar

O balanço da bossa


José Teixeira Neto*

Simplesmente feliz, saindo agora de cartaz em Goiânia, é o mais forte candidato a ser o filme campeão de comentários do primeiro semestre de 2009, como Vicky Cristina Barcelona o foi no segundo semestre de 2008. Talvez ele não mereça tal destaque, mas não cabe a nós nadar contra a corrente dos fatos consumados, é saudável aceitar algumas questões tornadas incontornáveis.

Depois, ele nos é útil para mostrar que o leque das produções culturais que vai desde o mais completo abacaxi até a obra-prima genial tem inúmeras gradações, a desafiar nossa tendência apressada a simplificar as categorias com que classificamos os produtos. Simplesmente não está em nenhuma das extremidades do espectro, e nele podem ser encontrados vários defeitos, mas também muitas virtudes, que, afinal, permitem-nos qualificá-lo de bom, aproveitável, valeu o dinheiro que pagamos pela sessão em que o vimos.

Esse filme dá motivo para a inversão de uma célebre máxima dos anos 60, formulada pelos críticos (populares, de senso comum, ou meros preconceituosos, como se queira) do Cinema Novo, em especial de Glauber Rocha: “O filme é uma joça, mas o cineasta é um gênio...” Agora poderia ser dito, nesse nível mais popular, que “Mike Leigh é um chato, mas Simplesmente é bom, vale a pena...”

E o que tem de ruim o produto Simplesmente? Nada que provenha de alguma incapacidade congênita, mera incompetência, do cineasta, dos atores, da equipe técnica e do ambiente cultural inglês.

Antes, porém, de propor uma avaliação do filme, uma observação não pode deixar de ser feita: o título em português induz a uma interpretação quase totalmente equivocada. Não se trata, em Simplesmente, de pensar a respeito da felicidade! Até se toca de passagem nesse assunto umas duas ou três vezes, mas o comportamento e atitudes de vida de Poppy, a personagem principal, correspondem mais ao sentido que a expressão “happy-go-lucky” tem tradicionalmente em inglês: aquele que não planeja muito as coisas e aceita o que acontece sem ficar muito ansioso com isso. Em português poderíamos dizer: aquele que não esquenta a cabeça, um cuca-fresca. Mais ainda: essa pessoa age e pensa como quem tem como trilha sonora de sua vida o sucesso de Zeca Pagodinho que diz “deixa a vida me levar”...

Simplesmente feliz é basicamente uma descrição da situação de vida da personagem central, podendo-se dizer que a duração do filme passa-se num presente constante. Das três formas que me ocorrem nas quais uma obra cinematográfica pode ser estruturada, a ficcional, a poética e a ensaística, Simplesmente não assume nenhuma, embora se aproxime mais da poética, justamente por desvalorizar o desenvolvimento temporal.

O que está em jogo na proposta de Leigh é mostrar uma personagem e algumas de suas circunstâncias. Nesse esquema, que nada tem de criticável em si mesmo, encaixa-se a maioria dos outros personagens, que podemos chamar de “personagens-ambiente”. Eles estão ali para ajudar-nos a compreender Poppy-Pauline (algo a ver com as duas versões de Os perigos de Pauline, de 1947 e 1967?) em diferentes facetas: a companheira de apartamento e de profissão, a irmã meio louquinha, o namorado assistente social, a colega de escola com quem vai às aulas de flamenco, o cunhado apreciador de jogar no Playstation, o massagista negro. Todos vivem à volta de Poppy em quase completa harmonia, com as variações normais do dia a dia.

Eles compõem com alguns traços a mais o quadro da curiosa personalidade de Poppy: uma autêntica folgazã, uma “happy-go-lucky”, sem nunca esquentar a cabeça com nada. Poppy segue sua vida andando pela cidade de Londres, trabalhando, indo a baladas, ficando bêbada, ajudando pessoas, interessando-se por algumas coisas (sem entusiasmos exagerados), fazendo ironias, criticando também a população em geral, conversando com absolutos desconhecidos na rua. Não é absurdo classificar Poppy como uma militante do alto-astral, de manter a cuca fresca. Nesse afã, ela às vezes se torna um pouco irritante (não para nós, que nos divertimos) para algumas figuras com quem cruza e troca palavras, mas sem gerar conflitos apenas em função dessa atitude. Tudo isso foi compondo um quadro até certo ponto poético, que poderia perdurar, hipoteticamente, por horas – que não teriam por que não serem agradáveis.

Mas Leigh houve por bem acrescentar uns poucos personagens de outro tipo, quem sabe acreditando que enriqueceria a visão que podemos ter de Poppy, com toques de claro-escuro provenientes de algumas situações tensas: tais são o vendedor barbudo e taciturno da livraria, o instrutor da autoescola, o louco de rua e a irmã grávida. Chamemos estas figuras de “personagens-conflito”. Não seria um intento despropositado, e poderia render bons efeitos à composição – se o cineasta desse importância a bem trabalhar o discurso. Porque, para ir somando mais pinceladas a seu panorama em torno de Poppy, não havia tanta necessidade de articulação, mas, para que os personagens-conflito pudessem ter boa participação na economia fílmica, eles teriam de estar “costurados” à trama de modo tecnicamente mais consistente. Mas Mike Leigh não acha isso importante, crê que podemos improvisar com o texto, não precisamos investir em talento discursivo, como uma debutante que compra o mais lindo vestido de grife para ir ao baile, e resolve economizar com um sapato feinho, mas que “ninguém vai ver”.

Bem, para fazer justiça, reconheço que o episódio do louco de rua, ainda que não muito verossímil, foi apresentado com certa competência. Mas a sequência de aulas de autoescola com o instrutor Scott, feitas com um ótimo ator (elogio praticamente desnecessário, quando se trata de ingleses, que primam pela melhor formação de atores do planeta), pecaram pela má costura, desprezando a introdução de um ritmo coerente às ações de idéias veiculadas. O desfecho é abrupto, carente de uma real justificação. Mesmo o que podemos supor – Scott ficou enciumado com a presença de um namorado na vida de Poppy, e por isso passou a agir tresloucadamente – poderia ser exposto claramente, em benefício da cena. Não, ele optou pelo improviso, como se não tivesse dado um script aos atores, pedindo-lhes que resolvessem a cena de acordo com suas venetas.

A cena com a irmã em estado avançado de gravidez também foi apenas esboçada, sem um tratamento mais cuidadoso em seu encadeamento e justificação.

Juntamente com a absurda atitude do carrancudo livreiro, no início, e as cenas das aulas de dirigir, essas situações-conflito passaram a fazer parte do filme, a pretexto de iluminar cenicamente a personagem, para expressar talvez (sem um discurso bem executado e assumido, não podemos ter muita certeza de nada do que é dito) a visão ideológica de Leigh: uma aposta no multiculturalismo de viés democrático (ou seria autoritário?, ele não nos deixa seguros quanto a isso). Poppy viajou pelo mundo, esteve trabalhando em países asiáticos (que bom ser professor britânico; vá um professor brasileiro fazer o mesmo...), ela é uma testemunha sorridente da diversidade das culturas. Mas digo isso não tanto em benefício da personagem, porque isso parece acessório, expressando mais a visão do cineasta. A força intrínseca de Poppy está em sua cabeça fresca, revelando-se nas situações, concretamente, pouco importando nessas horas qualquer filosofia de vida.

Disse acima “expressar a visão ideológica de Leigh”, o que é feito pela afirmação do multiculturalismo, mas esse objetivo também é atingido pela expressão do pensamento contrário, sempre neurótico, que pode beirar uma perspectiva fascista, no caso de Scott. E, além de neurótico e altamente problemático, o instrutor é uma mixórdia mal sintetizada de misticismo esotérico, algum cientificismo, conhecimento bíblico. Nas mãos de um bom escritor, o bom ator Eddie Marsan teria um bom papel, em que contracenaria com a interessante Poppy.

A irmã grávida também ilustra a tese subjacente do filme, segundo a qual atitudes absurdas e autoritárias são sempre acompanhadas de problemas psíquicos, dos quais são possivelmente consequências.

Enfim, o maior elogio que se pode fazer ao filme, para muito além das deficiências (frutos de escolha) de argumento e roteiro, é quanto à qualidade da atuação e composição da personagem Poppy-Pauline por parte de Sally Hawkins. Esse elemento somente da obra cinematográfica Simplesmente feliz já justifica a presença na sala de exibição. Ela somou toques especificamente chaplinianos a um tom de comediante genérico, a qualidades de intervenção militante de índole cristã (podemos vislumbrar traços de atitude aparentados com os do próprio Cristo e de muitos santos no contato que Poppy teve com o louco de rua, não por acaso, de aparência profética...), a algo de adoidado, característico dos tomados de uma missão, dos iluminados...

* José Teixeira Neto, ex-cineclubista, é formado em Filosofia e estudioso de Estética.

7 Comentários

Pedro Vinitz disse...

Pessoal,
mais um texto legal sobre o "Simplesmente feliz". Esse filme rendeu e rende muito debate. (Pedro)

Valéria disse...

Prezados,
O texto fala muito bem: a atriz é a direção é quase tudo neste filme. Um dos melhores que vi nos últimos meses.

Lisandro disse...

José Teixeira, o texto faz um boa descrição do filme e parte para a interpretação de forma segura. Você arremata com aquilo que comentamos sobre esse filme: a construção da personagem principal. A formação dos atores ingleses é realmente um capítulo a parte. São quase sempre muito bons.

Ana Lúcia disse...

José,
seu texto esclareceu muita coisa para mim. esse filme me marcou profundamente. muito bom quando descreve os personagens.

Adriana Oliveira disse...

bom dia!! José Teixeira,

Passei a gostar mais do filme depois do seu texto. O filme me incomodou tanto que perdi o senso crítico.

José Teixeira Neto disse...

Valéria, Ana Lúcia e Adriana,
os comentários de vocês revelam um destino que meu texto pôde ter na interpretação dos leitores do Blog, e que não seria previsível para mim enquanto o escrevia. Compreender mais a importância da atriz e da personagem principal, fazer uma boa descrição dos personagens e gostar mais de um filme após refletir mais (incluindo uma perspectiva crítica)sobre ele, estes são resultados animadores de um escrito sobre cinema. Lembra-me um filme, "Cronicamente inviável", de Sérgio Bianchi, que eu detestei a primeira vez que vi, mas, depois de ver cinco vezes, escrever um artigo a respeito e participar de um debate sobre ele na "III Mostra (ou teria sido a II?) o Amor, a Morte e as Paixões", promovida pelo Sindicato dos Professores e o professor Lisandro, no Cine Lumière, eu passei não digo a gostar dele, mas confesso que tenho hoje um certo carinho pela obra. Este é o "problema": estudar, aproximar-se do fenômeno, enxergá-lo sob outros ângulos implica vê-lo com maior simpatia, ou, ao menos, quebrar as barreiras e preconceitos que pudéssemos ter para com ele a princípio. E "Simplesmente feliz" foi um filme de que gostei desde a primeira vez...

* Manifesto meu agradecimento ao jovem Pedro, cuja competência técnica possibilitou ao meu artigo ter sido editado na íntegra.

José Teixeira Neto disse...

Relendo o texto, percebi agora um errinho de digitação cometido por mim, no 10º parágrafo: onde está "um ritmo coerente às ações de idéias veiculadas", deve-se ler "um ritmo coerente às ações E ideias veiculadas".
Abraços

Postar um comentário

Deixe seu comentário abaixo! Participe!

 

Blog do Lisandro © Agosto - 2009 | Por Lorena Gonçalves
Melhor visualizado em 1024 x 768 - Mozilla Firefox ou Google Chrome


^