José Teixeira Neto*
Simplesmente feliz, saindo agora de cartaz em Goiânia, é o mais forte candidato a ser o filme campeão de comentários do primeiro semestre de 2009, como Vicky Cristina Barcelona o foi no segundo semestre de 2008. Talvez ele não mereça tal destaque, mas não cabe a nós nadar contra a corrente dos fatos consumados, é saudável aceitar algumas questões tornadas incontornáveis.
Depois, ele nos é útil para mostrar que o leque das produções culturais que vai desde o mais completo abacaxi até a obra-prima genial tem inúmeras gradações, a desafiar nossa tendência apressada a simplificar as categorias com que classificamos os produtos. Simplesmente não está em nenhuma das extremidades do espectro, e nele podem ser encontrados vários defeitos, mas também muitas virtudes, que, afinal, permitem-nos qualificá-lo de bom, aproveitável, valeu o dinheiro que pagamos pela sessão em que o vimos.
Esse filme dá motivo para a inversão de uma célebre máxima dos anos 60, formulada pelos críticos (populares, de senso comum, ou meros preconceituosos, como se queira) do Cinema Novo, em especial de Glauber Rocha: “O filme é uma joça, mas o cineasta é um gênio...” Agora poderia ser dito, nesse nível mais popular, que “Mike Leigh é um chato, mas Simplesmente é bom, vale a pena...”
E o que tem de ruim o produto Simplesmente? Nada que provenha de alguma incapacidade congênita, mera incompetência, do cineasta, dos atores, da equipe técnica e do ambiente cultural inglês.
Antes, porém, de propor uma avaliação do filme, uma observação não pode deixar de ser feita: o título em português induz a uma interpretação quase totalmente equivocada. Não se trata, em Simplesmente, de pensar a respeito da felicidade! Até se toca de passagem nesse assunto umas duas ou três vezes, mas o comportamento e atitudes de vida de Poppy, a personagem principal, correspondem mais ao sentido que a expressão “happy-go-lucky” tem tradicionalmente em inglês: aquele que não planeja muito as coisas e aceita o que acontece sem ficar muito ansioso com isso. Em português poderíamos dizer: aquele que não esquenta a cabeça, um cuca-fresca. Mais ainda: essa pessoa age e pensa como quem tem como trilha sonora de sua vida o sucesso de Zeca Pagodinho que diz “deixa a vida me levar”...
Simplesmente feliz é basicamente uma descrição da situação de vida da personagem central, podendo-se dizer que a duração do filme passa-se num presente constante. Das três formas que me ocorrem nas quais uma obra cinematográfica pode ser estruturada, a ficcional, a poética e a ensaística, Simplesmente não assume nenhuma, embora se aproxime mais da poética, justamente por desvalorizar o desenvolvimento temporal.
O que está em jogo na proposta de Leigh é mostrar uma personagem e algumas de suas circunstâncias. Nesse esquema, que nada tem de criticável em si mesmo, encaixa-se a maioria dos outros personagens, que podemos chamar de “personagens-ambiente”. Eles estão ali para ajudar-nos a compreender Poppy-Pauline (algo a ver com as duas versões de Os perigos de Pauline, de 1947 e 1967?) em diferentes facetas: a companheira de apartamento e de profissão, a irmã meio louquinha, o namorado assistente social, a colega de escola com quem vai às aulas de flamenco, o cunhado apreciador de jogar no Playstation, o massagista negro. Todos vivem à volta de Poppy em quase completa harmonia, com as variações normais do dia a dia.
Eles compõem com alguns traços a mais o quadro da curiosa personalidade de Poppy: uma autêntica folgazã, uma “happy-go-lucky”, sem nunca esquentar a cabeça com nada. Poppy segue sua vida andando pela cidade de Londres, trabalhando, indo a baladas, ficando bêbada, ajudando pessoas, interessando-se por algumas coisas (sem entusiasmos exagerados), fazendo ironias, criticando também a população em geral, conversando com absolutos desconhecidos na rua. Não é absurdo classificar Poppy como uma militante do alto-astral, de manter a cuca fresca. Nesse afã, ela às vezes se torna um pouco irritante (não para nós, que nos divertimos) para algumas figuras com quem cruza e troca palavras, mas sem gerar conflitos apenas em função dessa atitude. Tudo isso foi compondo um quadro até certo ponto poético, que poderia perdurar, hipoteticamente, por horas – que não teriam por que não serem agradáveis.
Mas Leigh houve por bem acrescentar uns poucos personagens de outro tipo, quem sabe acreditando que enriqueceria a visão que podemos ter de Poppy, com toques de claro-escuro provenientes de algumas situações tensas: tais são o vendedor barbudo e taciturno da livraria, o instrutor da autoescola, o louco de rua e a irmã grávida. Chamemos estas figuras de “personagens-conflito”. Não seria um intento despropositado, e poderia render bons efeitos à composição – se o cineasta desse importância a bem trabalhar o discurso. Porque, para ir somando mais pinceladas a seu panorama em torno de Poppy, não havia tanta necessidade de articulação, mas, para que os personagens-conflito pudessem ter boa participação na economia fílmica, eles teriam de estar “costurados” à trama de modo tecnicamente mais consistente. Mas Mike Leigh não acha isso importante, crê que podemos improvisar com o texto, não precisamos investir em talento discursivo, como uma debutante que compra o mais lindo vestido de grife para ir ao baile, e resolve economizar com um sapato feinho, mas que “ninguém vai ver”.
Bem, para fazer justiça, reconheço que o episódio do louco de rua, ainda que não muito verossímil, foi apresentado com certa competência. Mas a sequência de aulas de autoescola com o instrutor Scott, feitas com um ótimo ator (elogio praticamente desnecessário, quando se trata de ingleses, que primam pela melhor formação de atores do planeta), pecaram pela má costura, desprezando a introdução de um ritmo coerente às ações de idéias veiculadas. O desfecho é abrupto, carente de uma real justificação. Mesmo o que podemos supor – Scott ficou enciumado com a presença de um namorado na vida de Poppy, e por isso passou a agir tresloucadamente – poderia ser exposto claramente, em benefício da cena. Não, ele optou pelo improviso, como se não tivesse dado um script aos atores, pedindo-lhes que resolvessem a cena de acordo com suas venetas.
A cena com a irmã em estado avançado de gravidez também foi apenas esboçada, sem um tratamento mais cuidadoso em seu encadeamento e justificação.
Juntamente com a absurda atitude do carrancudo livreiro, no início, e as cenas das aulas de dirigir, essas situações-conflito passaram a fazer parte do filme, a pretexto de iluminar cenicamente a personagem, para expressar talvez (sem um discurso bem executado e assumido, não podemos ter muita certeza de nada do que é dito) a visão ideológica de Leigh: uma aposta no multiculturalismo de viés democrático (ou seria autoritário?, ele não nos deixa seguros quanto a isso). Poppy viajou pelo mundo, esteve trabalhando em países asiáticos (que bom ser professor britânico; vá um professor brasileiro fazer o mesmo...), ela é uma testemunha sorridente da diversidade das culturas. Mas digo isso não tanto em benefício da personagem, porque isso parece acessório, expressando mais a visão do cineasta. A força intrínseca de Poppy está em sua cabeça fresca, revelando-se nas situações, concretamente, pouco importando nessas horas qualquer filosofia de vida.
Disse acima “expressar a visão ideológica de Leigh”, o que é feito pela afirmação do multiculturalismo, mas esse objetivo também é atingido pela expressão do pensamento contrário, sempre neurótico, que pode beirar uma perspectiva fascista, no caso de Scott. E, além de neurótico e altamente problemático, o instrutor é uma mixórdia mal sintetizada de misticismo esotérico, algum cientificismo, conhecimento bíblico. Nas mãos de um bom escritor, o bom ator Eddie Marsan teria um bom papel, em que contracenaria com a interessante Poppy.
A irmã grávida também ilustra a tese subjacente do filme, segundo a qual atitudes absurdas e autoritárias são sempre acompanhadas de problemas psíquicos, dos quais são possivelmente consequências.
Enfim, o maior elogio que se pode fazer ao filme, para muito além das deficiências (frutos de escolha) de argumento e roteiro, é quanto à qualidade da atuação e composição da personagem Poppy-Pauline por parte de Sally Hawkins. Esse elemento somente da obra cinematográfica Simplesmente feliz já justifica a presença na sala de exibição. Ela somou toques especificamente chaplinianos a um tom de comediante genérico, a qualidades de intervenção militante de índole cristã (podemos vislumbrar traços de atitude aparentados com os do próprio Cristo e de muitos santos no contato que Poppy teve com o louco de rua, não por acaso, de aparência profética...), a algo de adoidado, característico dos tomados de uma missão, dos iluminados...
* José Teixeira Neto, ex-cineclubista, é formado em Filosofia e estudioso de Estética.
7 Comentários
Pessoal,
mais um texto legal sobre o "Simplesmente feliz". Esse filme rendeu e rende muito debate. (Pedro)
Prezados,
O texto fala muito bem: a atriz é a direção é quase tudo neste filme. Um dos melhores que vi nos últimos meses.
José Teixeira, o texto faz um boa descrição do filme e parte para a interpretação de forma segura. Você arremata com aquilo que comentamos sobre esse filme: a construção da personagem principal. A formação dos atores ingleses é realmente um capítulo a parte. São quase sempre muito bons.
José,
seu texto esclareceu muita coisa para mim. esse filme me marcou profundamente. muito bom quando descreve os personagens.
bom dia!! José Teixeira,
Passei a gostar mais do filme depois do seu texto. O filme me incomodou tanto que perdi o senso crítico.
Valéria, Ana Lúcia e Adriana,
os comentários de vocês revelam um destino que meu texto pôde ter na interpretação dos leitores do Blog, e que não seria previsível para mim enquanto o escrevia. Compreender mais a importância da atriz e da personagem principal, fazer uma boa descrição dos personagens e gostar mais de um filme após refletir mais (incluindo uma perspectiva crítica)sobre ele, estes são resultados animadores de um escrito sobre cinema. Lembra-me um filme, "Cronicamente inviável", de Sérgio Bianchi, que eu detestei a primeira vez que vi, mas, depois de ver cinco vezes, escrever um artigo a respeito e participar de um debate sobre ele na "III Mostra (ou teria sido a II?) o Amor, a Morte e as Paixões", promovida pelo Sindicato dos Professores e o professor Lisandro, no Cine Lumière, eu passei não digo a gostar dele, mas confesso que tenho hoje um certo carinho pela obra. Este é o "problema": estudar, aproximar-se do fenômeno, enxergá-lo sob outros ângulos implica vê-lo com maior simpatia, ou, ao menos, quebrar as barreiras e preconceitos que pudéssemos ter para com ele a princípio. E "Simplesmente feliz" foi um filme de que gostei desde a primeira vez...
* Manifesto meu agradecimento ao jovem Pedro, cuja competência técnica possibilitou ao meu artigo ter sido editado na íntegra.
Relendo o texto, percebi agora um errinho de digitação cometido por mim, no 10º parágrafo: onde está "um ritmo coerente às ações de idéias veiculadas", deve-se ler "um ritmo coerente às ações E ideias veiculadas".
Abraços
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