Telenovela
Lisandro Nogueira
Nos tempos do Cineclube Antonio das Mortes, na fase de exibições no CREA (foram quase três anos, entre 1985 e 1987, com exibições e debates todo final de semana), eu indagava qual seria o motivo para o público desaparecer às sextas-feiras, quando as novelas entravam nos últimos capítulos. Afinal, nosso público era composto por universitários que afirmavam jamais ver os melodramas e eram ferrenhos opositores do sistema Globo de televisão.
Como ver as novelas? São mais de 100 capítulos. Como abordá-las e confiar em uma boa análise? De onde partir para abarcar o fenômeno? Minha pesquisa, plena de limitações, foi a primeira do núcleo de ficção seriada da USP. Vi duas novelas inteiras: O dono do mundo (foto) e Dancing days. Fui parar no Hospital da USP e fiquei internado um dia com dores fortes na coluna. A causa foi o stress que acomete a todos os que se propõem a fazer pesquisa. Mas tive a solidariedade constante da professora Anamaria Fadul – eterna gratidão!
O ponto de partida de meu estudo: existe autoria na televisão assim como no cinema? Quem é o autor das telenovelas. Por incrível que pareça foram o Cinema Novo alemão e Theodor Adorno que iluminaram o caminho para a pesquisa chegar a termo (ver o texto abaixo).
Hoje em dia não me dedico muito a telenovela. Costumo ver sempre os primeiros e últimos capítulos. Verifico que a qualidade caiu e os "autores", como Gilberto Braga, Lauro Cesar Muniz, Silvio de Abreu, já não detêm o mesmo poder no sistema de produção. O contexto da recepção também mudou. Bastante.
Uma pesquisa é mais um degrau no processo de formação. Trabalho cotidiano, que requer disciplina, vontade, humor, solidariedade e uma abertura para conviver com as diferenças e trocas intelectuais.
A foto ao lado é do prédio da ECA/USP. Durante a pesquisa tive bons momentos: conversas importantíssimas com bons professores, debates bem produtivos com os colegas e amigos e a intensa vivência no Campus da universidade. Essa vivência é fundamental: os jogos de futebol com o pessoal graduação, as sessões de cinema (muitas vezes vi três filmes em um só dia), as aulas com Marilena Chauí, Gianetti da Fonseca, Renata Pallottini, Ismail Xavier e Jean-Claude Bernardet. E, principalmente, as conversas fora da sala de aula com professores e colegas de muita generosidade e fineza.
Segue abaixo um pequeno texto com a conclusão da pesquisa.
OS LIMITES DA FICÇÃO SERIADA
Lisandro Nogueira
Enquanto as telenovelas latino-americanas de língua espanhola e as soap operas prescidem da figura do ‘autor’, as brasileiras absorveram o termo a partir do contexto vanguardista dos anos 60 que originou o cinema de autor. A tensão entre criar e seguir normas da televisão, revelou que os limites para o escritor dependem do contexto histórico, das oscilações da audiência e da dinâmica da Indústria Cultural.
A produção de televisão no Brasil demonstra que a indústria cultural tem em si o antídoto de que fala Theodor Adorno.[i] Ou seja, observando a tensão entre criar e seguir regras dessa indústria, é possível constatar que, mesmo numa produção serializada e padronizada (as telenovelas, p. ex.), a criatividade exerce alguma força e ocupa um espaço. Os rigores de vigilância da audiência, dos patrocinadores e da emissora, não são suficientes para barrar os “momentos autorais” e inibir completamente o antídoto. A indústria cultural necessita da reposição constante da novidade. Ela é dinâmica e está sempre se atualizando. As telenovelas brasileiras são um exemplo disso. O mercado exige essa renovação. Mas nesse processo há casos que ultrapassam um pouco mais os limites da referência ao mercado. As telenovelas Vale Tudo e O Dono do Mundo, de Gilberto Braga, principalmente esta última, mostram que ele fez mais do que dar continuidade à modernização do gênero iniciada com Beto Rockfeller em 1969. A crônica sobre o Brasil, trabalhando com base em solo melodramático, trouxe para a reflexão a questão da autoria na televisão ater-se aos pressupostos formulados pelo cinema (os franceses François Truffaut, Jaques Rivette e outros, estabeleceram a Política dos Autores, nos anos 50, afirmando o diretor do filme com autor da obra, assim como o escritor na literatura e o pintor nas artes plásticas).
A partir dos pressupostos do cinema, é possível afirmar existir autoria na fição de televisão? A televisão brasileira se distinguiu das emissoras latino-americanas ao credenciar os escritores com o estatuto de autor. O uso do termo visou beneficiar-se da legitimidade comercial já utilizada pela indústria do cinema. Por outro lado, o legado das inovações dos anos 50/60, como o cinema de autor,[ii] foi assimilado pela televisão, que buscou no termo autor o prestígio e a sofisticação intelectual. Se para a política dos franceses autor é quem dirige e, na maioria das vezes redige o roteiro, na indústria da televisão autor é somente aquele que escreve o script (roteiro). A característica da produção seriada da TV impede que exista a figura do diretor nos moldes do cinema. O controle de todo o processo de produção encontra-se nas mãos do produtor (emissora), que, dependendo do escritor e do contexto histórico [o período entre Beto Rockfeller (69) e O Dono do Mundo (91) é considerado como aquele do apogeu dos escritores com personalidade distinta na indústria da TV], divide responsabilidades, confia algumas decisões e até mesmo perde o domínio sobre o final da telenovela, como aconteceu com Gilberto Braga.
A senha para transportar pressupostos da política dos autores para a televisão brasileira encontrou no crítico americano Andrew Sarris uma referência. Algumas constatações são possíveis depois de se analisar a adaptação americana das idéias francesas. O aparato produtivo e organizacional da TV no Brasil, semelhante ao da indústria do cinema e televisão americanos, contribui para que parte das idéias de Andrew Sarris[iii] sirva como parâmetro. Sarris afirma que a “teoria do autor valoriza o diretor precisamente por causa dos entraves da indústria a sua expressão”. Desta forma, são obrigados a expressar sua personalidade através do tratamento visual em vez do conteúdo literário de suas idéias e roteiros. De Andrew Sarris aproveita-se a idéia do “entrave” como estímulo para se quebrar regras e normas e daí sobreviver na indústria.
Acomodando a visão de Sarris ao contexto brasileiro, guardadas as devidas diferenças, nota-se que Gilberto Braga dribla algumas limitações estabelecidas pela indústria exercendo e atuando como autor-produtor em comum acordo com a emissora. Ele escreve as telenovelas juntamente com os colaboradores, afinados com suas idéias, escala o diretor com o qual quer trabalhar visando uma sintonia na produção, escolhe o elenco e participa da escolha da trilha sonora com direito a veto.
Se os entraves da indústria são suficientes para demonstrar sua força, a posição de autor-produtor conquistada ao longo de sua trajetória permitiu-lhe acúmulo de poder. Ou seja, Gilberto Braga se equilibra e mostra personalidade na tensão entre criar e seguir as normas da Rede Globo. Dessa forma a transposição da idéia de Andrew Sarris é confrontada e aproveitada como parâmetro pertinente.
O poder acumulado por Gilberto Braga como autor-produtor nasceu num momento de valorização das telenovelas que atualizaram o gênero e sintonizaram sua base melodramática com uma crônica urbana reveladora de novos comportamentos. Quando o contexto pós-década de 80 se revelou refratário a impulsos de renovação e os ecos inovadores dos anos 50/60 perderam força, a proposta de telenovela de Gilberto Braga se fragilizou e entrou em crise. A “vingança” do autor, ao não realizar o tradicional final feliz , contrariando público e emissora no final de O Dono do Mundo (91), se mostrou personalidade, sinalização de uma marca autoral, mostrou também o declínio desse tipo de telenovela, com a dissociação entre público e escritores.
A telenovela posterior de Gilberto Braga, Pátria Minha (94), mostrou que o novo contexto veio para ficar e espantar os resquícios remanescentes dos anos 60. A audiência foi baixa, Gilberto Braga perdeu o controle sobre o elenco, suas escolhas musicais não se manifestaram como antes e a emissora fez diversas intervenções para assegurar o término de uma telenovela fragilizada.
O Dono do Mundo foi um fracasso e ilustrou o romper de um novo contexto para o mercado audiovisual brasileiro e seu principal produto, as telenovelas. A telenovela de Gilberto Braga revelou a dissociação entre escritores e público. A atualização progressiva do gênero empreendida por ele se esgotou quando os reflexos transgressivos dos anos 60 foram assimilados pela indústria e a globalização econômica fez surgir a segmentação do público de televisão.
O gênero vive uma crise de readaptação, ou melhor, de renovação da tradição. O espaço para a “telenovela atualizada” foi diminuído e, talvez, o “autor” de televisão tenha se tornado prescindível dentro desse novo contexto. A situação se complicou ainda mais quando parte do público que sempre avalizou as “telenovelas atualizadas” começou a migrar para as TVs por assinatura, a Internet e o videocassete. Quem sustentava o prestígio do gênero modernizado que assimilara as mudanças sociocomportamentais a partir dos anos 60 mudou de canal, e escritores como Gilberto Braga passaram a ser sofisticados demais para um público refratário a telenovelas que fogem em demasia da base melodramática.
Entre rir e chorar (o melodrama) com alguns lampejos de preocupação social e política (o melodrama atualizado), prefere-se somente derramar lágrimas e rir com narrativas cada vez mais próximas das soap operas. O indício do nascimento dessa nova fase é Malhação (1995), uma soap opera juvenil que sinaliza uma crise para a ficção seriada brasileira.
A trajetória sinuosa do anti-herói Felipe Barreto em O Dono do Mundo foi exemplar para a análise da autoria na televisão. Revelou-se a obra síntese por mostrar as possibilidades e os limites do autor-produtor, a crise da audiência em função do contexto neoconservador, o campo de forças vigente na indústria da televisão que dá chance ao surgimento de um tipo de autor que ousa “vingar-se” da emissora e do público e os sinais de um estilo (ecos das inovações dos anos 60) que se apoiou em personagens femininas (a mulher urbana de classe média sintonizada com a rápida urbanização) e na discussão de problemas éticos de um país em constante crise moral.
As marcas autorais entre 1969 e 1991 sinalizam uma possível autoria, mas se fragilizam e tornam-se insuficientes para confirmá-la. Isso significa que os parâmetros da política dos autores, tomados emprestados e acolhidos visando uma adaptação a um gênero e veículo diverso do cinema, têm seus limites estampados. Até onde podem servir como espelho revelam marcas frágeis mas simbólicas da busca de uma identidade mínima num gênero de massa como o melodrama brasileiro.
A telenovela de Gilberto Braga é uma ponte para se chegar a um gênero que oferece um solo mais fecundo para se confirmar talvez a autoria na televisão: as minisséries. A longa duração das telenovelas, os agentes de interferência monitorando cada capítulo e a rapidez da produção em série deixam o escritor sem o controle necessário do processo de criação. O caminho para que se configure o autor na televisão pode se encontrar nas minisséries, as quais quem escreve detém um domínio bem maior de toda a criação e sistemática produtiva.
[ii] Truffaut, François. Une certaine tendance du cinema français. Cahiers du Cinèma, Paris. N. 31, 1954.
[iii] Sarris, Andrew. Notes on the auteur theory in 1962. Film Culture, n.27, Winter, 1962-1963.
3 Comentários
Li o livro e recomendo a todos. Creio que ainda há sinais de autoria nas nossas telenovelas, mesmo que não seja autoria de qualidade.
Falando em telenovelas...te vi na tv!
sucesso sempre.
TIM¨*¨TIM
Olá Lu,
Que bom receber seu email!! Apareça semspre por aqui. É um prazer.
Lisandro
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