Filme mistura tradição japonesa e apelo emocional hollywoodiano
Alysson Assunção*
Talvez surpreenda o longa-metragem A Partida (Departures / Okuribito, 2008, Paris Filmes, 130 min.), dirigido pelo japonês Yōjirō Takita, ter derrotado concorrentes favoritos e ficado com Oscar 2009 de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Entretanto, Não parece tão complicado explicar porque o filme chamou a atenção dos críticos ocidentais a ponto de conferirem tal premiação, desbancando os mais inovadores, segundo críticas, Entre os Muros da Escola (França) e Valsa com Bashir(Israel). A melhor maneira que encontrei de sintetizar a resposta para essa questão é: filme japonês para ocidental ver – e não apenas ver, mas se identificar.
Roteirizado por Kundo Koyama – com base em autobiografia de Aoki Shinmon (Coffinman: The Journal of a Buddhist Mortician) – o filme oferece uma narrativa simples, que busca apelo ao grande público na hibridização entre a tradição japonesa e a cultura de consumo ocidental.
Falando francamente, não há nada em A Partida que o torne um filme favorito ao Oscar: a fotografia é bela, embora muito plástica e exagerada de simbolismos, e o cineasta até explora de forma interessante a certos planos, enquadramentos e a profundidade de campo, mas o enredo do drama japonês é convencional e previsível. Desde o início, o espectador tem aquela noção já bem discutida por Bordwell de saber sempre o que vai acontecer, sem grandes surpresas ou experimentalismos narrativos. O que chama a atenção em A Partida não é a utilização da linguagem cinematográfica ou a direção de arte. De fato, em mais de duas horas de filme, dá até para ficar cansado de tanta poesia visual feita com paisagens japonesas e colorido das roupas dos mortos.
A narrativa, desde sua introdução pretensamente não-linear, se estrutura em torno de dois eixos temáticos. O primeiro não podia ser mais batido: “Até que ponto um homem é dono de seu destino e de suas escolhas, ou é escolhido por elas?”, “Qual o preço a pagar pela satisfação pessoal?”, enfim, qual “O sentido da vida, das coisas e tudo o mais” (D. Adams).
Daigo (Masahiro Motoki) é um violoncelista que vê seu mundo abalado pela dissolução da orquestra onde trabalha e pela constatação do desempenho medíocre no ofício que escolheu. Após voltar com esposa a tiracolo para sua cidade natal, a personagem arruma ocupação como nokanshi – um agente funerário especialista em preparação e acondicionamento de corpos que serão cremados. Embora não haja elementos concretos para a afirmação, trata-se de um ofício mal visto e discriminado pelos japoneses, embora necessário para a manutenção da ordem tradicional local.
Cabe aqui destacar a evolução da personagem principal, retratada como complicada, infantilizada e cheia de temas mal resolvidos na infância – como a relação como pai, que saiu de casa quando ele tinha seis anos. Daigo é o típico japonês destranbelhado e inocente – só faltou ser turista e portar máquina fotográfica. Fora a estereotipia, a atuação é decente e conferiu a Motoki um Asian Film Awards.
Envergonhado de sua nova profissão, Daigo se limpa em um casa de banhos – apenas outro ganho narrativo – esconde a situação de sua mulher e amigos, apesar de seu afazer claramente ser, logo na primeira cena, explicitado como algo nobre, para que não haja tensão alguma ao longo da projeção. O estranhamento da personagem em relação ao serviço – ele nunca havia visto um cadáver pessoalmente antes – é bem humorado é tratado de forma bem humorada e higiênica, ao ponto de algumas passagens serem inteiramente constituídas de sobreposições de elementos cômicos um atrás do outro.
Esse enredo é conduzido até o ponto em que a personagem resolve abraçar o que o destino lhe apresenta e encontra a beleza artística e respeitabilidade à tradição no trato com os mortos. Em sua jornada de herói pelo “ventre da baleia” (J. Cambell) que é sua própria consciência, Daigo torna-se cada vez mais orgulhoso da função, tomando gosto pelo aperfeiçoamento na arte do nokanshi, e adquirindo a sabedoria necessária para se tornar guardião da tradição, pagando inicialmente o preço com a exclusão, mas alcançando a recompensa moral dos que persistem na virtude.
* Alysson Assunção é psicólogo e jornalista. Mestrando em cinema e comunicação na UFG.
10 Comentários
Alysson, concordo com você. Eu pretendia escrever sobre este filme, mas não consegui me sentir motivado quando a sessão terminou. Talvez porque eu esperasse um filme muito melhor, a julgar pelo interessante argumento. O Oscar do ano passado foi mesmo bem fraco.
Alysson e Cássio,
Infelizmente, o olhar de vocês é "domesticado". O filme é muito bom. Entendo que têm algumas partes "apelativas". Porém, faltou ao alysson um olhar mais apurado.
O filme trata de uma outra cultura, com códigos diferentes. Ele transita da comédia para outros generos com suavidade e sabedoria.
É um grande filme e pode ser usando inclusive nas escolas para ensinar sobre: vocação profissional, amar o próximo e entender suas escolhas, o valor dos mais velhos e tantas outras coisas.
Cândido, obrigado pelas observações: concordo com você em parte. Meu olhar é assumidamente domesticado, mas penso que o olhar do Rodrigo é bem mais "emancipado" do que o meu. Mas reforço minha posição de que A partida é um filme japonês feito sob um prisma hollywoodiano, uma miscelânea de peculiaridades japonesas dispostas sobre um sutil pieguismo emocional.
A condução de “A Partida” afunda o filme em clichês e busca a todo momento a emoção fácil do público. Há um exagero do melodrama - o que por si só não é algo negativo - o que me pareceu forçado, com metáforas óbvias.
Concordo que o filme poderia ser aplicado em escolas - principalmente para discutir a questão da tradição que ainda permanece, em oposição às sociedades ocidentais, tidas por muitos como "pós-tradicionais" - mas justamente pelo seu aspecto propedêutico, pedagógico até demais. A voz off do narrador personagem, por exemplo, é dispensável em todos os momentos em que aparece. Já nos momentos de comédia, a música me incomodou.
A recorrência à temática da morte e aos ritualismos orientais são tratados didaticamente, mostrando peculiaridades da cultura do local, com a qual raramente temos contato senão pelos personagens estereótipos japoneses, como também me parece o caso aqui: japonês inocente, velho sábio, esposa submissa.
A sabedoria exposta no filme, para mim, só sobrevive graças à capacidade de gerar empatia com os personagens e a alguma emoção, mas legitima a versão que o Ocidente tem do Japão. Ainda assim, no tema da morte, trabalha bem o embate entre tradição e modernidade.
Tanto assim é que, ao final da exibição, podemos nos sentir a vontade para dizer que compreendemos os ritos funerários da tradição japonesa, mas penso que esses aparecem filtrados na película com uma aura global, “cool”, descontraída.
Na minha sincera opinião, a interpretação do que o espectador ocidental pode tirar do filme é mais um sentimento voyeur de uma tradição - que tratamos de enterrar em nossa própria sociedade - do que um documento de costumes e de época da cultura do Japão.
PS: Para uma outra abordagem, que considero mais apurada, da mesma temática, recomendo o japonês "Mogari no mori", de 2007, que baixei no Mininova.com com legendas em inglês.
O filme não é ruim. Todavia, tem uma embalagem "ocidentalizada". Algumas passagens são muito bem realizadas e levam ao pensamento. Lisandro, esse filme me remeteu aos anos 80 e fiquei emocionadíssima. Alonso lembrou que nosso casamento começou vendo um filme de Kenji Mizoguchi, "Mulheres na noite", na sala do CREA/Cineclube Antonio das Mortes. Depois do filme e do debate ele me convidou para sair e daí começamos a namorar. O jovem casal do filme "A partida" me fez lembrar aquela época e eu e Alonso caímos no choro.
O Inácio Araújo, outros críticos e você (nos encontros rápidos porque você ficou muito sumido e apressado)falam que o cinema passa por uma fase ruim. Eu concordo. Os japoneses Ozu e Mizoguchi, que o velho e amado Cineclube exibia, são bem melhores do que qualquer filme bom que vejo hoje.
Enfim, eu devo muito ao cineclube. Inclusive de ter conhecido o Alonso e sua maneira sempre singular de ver filmes. Nós aprimoramos nosso olhar cinematográfico depois dos encontros no Crea, entre 1985 e 1987. Alonso e eu agradecemos.
Sala do CREA, quanta saudade!! Dois anos e meio, todo final de semana, inesquecível, as conversas, os debates, os filmes.
Alysson,
Eu não concordo com a ênfase que o professor Lisandro dá a forma em detrimeto do conteúdo. Nos filmes existem conteúdos, que a despeito da linguagem cinematográfico, podem ser úteis para ver o mundo.
Filmes como "A partida" podem ser usados em sala de aula para discutir os temas, ensinar sobre coisas importantes de uma cultura.
Não é possivel ver no filme somente clichês e a cultura japonesa não é filtrada para o ocidental obsrvá-la sem profundidade.
Quanto a sugestão vou ver se consigo o filme e agradeço sua indicação.
Caro Candido,
Utilizar os filmes em sala de aula, aproveitando deles o conteúdo e deixando de lado a discussão formal, é algo muito comum em certa pedagogia preguiçosa, praticada por aí. As escolas ainda não reconheceram o cinema como um objeto de estudo relevante (por que estudamos as formas da poesia de Olavo Bilac, mas não as formas dos filmes ou produtos da tv?). Sei de muitos professores que apenas deixam que os filmes "dêem a aula", e não orientam os alunos para que estes desenvolvam um senso crítico.
O resultado disso é o tão falado "olhar domesticado", que não significa a incapacidade de ver qualidades em filmes pouco relevantes (como este "A Partida", que o Alysson comentou de maneira excelente), mas sim a incapacidade de perceber que a forma e o conteúdo são indissociáves. Simplesmente não há como tratar esses dois domínios em separado.
Falar do conteúdo é muito pouco: quanto mais discutimos a forma, mais a presença do filme na sala de aula ganha sentido e amplia a formação dos educandos!
Descobri o blog pela Euci. Da época do CREA, me lembro de algo que foi decisivo. Um psicológo chamado Emídio,falou que todo ser humano tem a "falta". Pode ser rico, poderoso, boa família, filhos bem criados, bem sucedido, muitos amores. Todavia, nada disso impede que a "falta" apareça. É o vazio que sentimos, o que chamam hoje depressão. Isso me marcou muito naquelas sessões e debates.
eliot disse que forma e conteúdo é um copo d'água. tente tirar um dos dois...
aron
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