Rodrigo Cássio*
Talvez seja uma associação inusitada, mas Alexandra (em cartaz em Goiânia no Cine Lumière), este filme ao mesmo tempo formoso e angustiante, me remeteu ao Alain Resnais de Muriel (1963). Menos que a fotografia e a expressividade das imagens, que não são pouco importantes, Sokurov me prendeu pela força da sua mise-en-scène. Com o diretor russo, a cantora Galina Vishnevskaya parece ser levada à última potência quanto à possibilidade de atuar em um drama: por isso, ela interpreta Alexandra, a protagonista, de maneira bela e com o exato sentido da “desrealização oscilante” que a obra possui.
Sokurov me lembra o filme de Resnais, neste aspecto: trata-se do realismo em seu princípio básico, sua narratividade, suas referências a um guerra concreta; realismo que conduz o espectador ao encontro dos prédios verdadeiramente destruídos, onde habitam vidas não menos deterioradas (em Resnais, há o desespero que se resolve na farsa do homem comum; em Sokurov, o mesmo desespero, no entanto atravessado pela ausência do social, já dissolvido pela guerra). Contudo, há segmentos narrativos, em ambos os filmes, que extrapolam toda construção de sentido cingida na representação clássica.
A fotografia, sem dúvida, corrobora esses momentos de ruptura em Alexandra. Mas ela não teria a mesma efetividade sem que as personagens se relacionassem, entre elas próprias e com a câmera, elevando o ilusionismo a um estado mágico – e aqui há o elo com Resnais: há cenas em que a estranha lucidez de Alexandra, associada à sua provocante presença, fazem imergir a imagem como um sonho, um combinado imprevisto de intimidade e de exasperação. Em Muriel, é o instante do corte que determina o sentido das cenas, desrealizando a diegese. Em Alexandra, os diálogos e os olhares concentram essa responsabilidade. Nos dois casos, o cinema se consuma como arte de atuação, menos que arte de realidade. Uma arte de mise-en-scène, como queira Michel Mourlet.
Desse modo, Alexandra não está fora de lugar por ser uma idosa no campo de batalha. Ela está fora de lugar porque essa estranha condição de “visitante” não é trabalhada pelo filme em coerência com a sua real estranheza. O jogo de olhares da decupagem clássica, apropriado aqui de maneira adversa à objetividade desse modelo (e com lances bem modernos), permite aos soldados concebê-la do modo como querem, e não como deveriam: não existem ordens a serem realmente cumpridas para regular a presença de Alexandra: ela faz valer o simbolismo da sua maturidade, tornando-se líder da dimensão afetiva dos combatentes.
Sokurov faz um belo filme ao nos atingir, a nós espectadores, com uma pergunta sobre o que pode ser o cinema narrativo, numa época em que questões dessa natureza têm sido pouco abordadas pelos filmes mais presentes nas telas.
* Rodrigo Cássio é jornalista e formado em filosofia e mestrando na UFG-Facomb.
9 Comentários
Pessoal,
Mais um texto do filme "Alexandra". Quem viu e gostou ficou deslumbrado; quem não gostou foi embora antes de terminar.
Cinema é assim mesmo...
Pedro,
Na minha sessão ninguém foi embora, mas eu ouvi um comentário comum quando terminam os filmes menos convencionais: "não entendi".
Até hoje, aqui em Goiânia, a sessão em que estive e que mais pessoas abandonaram a sala foi a de "Irreversível", no antigo Bouganville. Uma parte do público abandonou a sala na cena do extintor; outra parte na cena do estupro. Algumas em outros momentos. Creio que mais de 50% dos que começaram a assistir tinham ido embora no final.
Rodrigo e Pedro:
Eu vi um filme no Lumière na mostra "O amor, a morte e as paixões". O filme chamava-se "A agenda". Alguns pessoas começaram a sair. Daí o inusitado: quem ficou começou a vaiar quem saia. Foi um momento diferente. Eu morri de tanto conversar após os filmes daquela mostra.
Como eu havia comentado no outro tópico sobre Alexandra, muitas pessoas vaiaram ao final do filme. O importante é que cada um percebe o filme de maneira diferente e outros não tem a mesma capacidade de entendê-lo ou então a sua percepção é um tanto quanto diferente.
Essa mesma "experiência" eu tive quando fui ver o PAI E FILHO do mesmo SOKUROV, isso foi no Banana Shopping, muitas pessoas saindo ao final, mas cinema é assim.
Eu gostei muito do filme ALEXANDRA, é um filme sobre a vida, a guerra é um mero pano de fundo.
Rodrigo, não sou o maior fã de Sokurov, mas esse filme realmente me encanta pela força das imagens, surreais às vezes, e pela presença hipnotizante da velhinha (Galina) em cena. Me faz querer rever a obra do Sokurov. O Júlio Bezerra, ali em baixo, diz que Sokurov não defende nem ataca a guerra. Não sei se concordo. Se o contraste entre o olhar maternal da protagonista e a lógica fria do acampamento militar produz uma sensação de banalidade e inutilidade da guerra, essa me parece uma crítica bastante contundente, não? Se possível, fale mais sobre a sua leitura política/ideológica do filme. Abraço!
Oi Marco,
Também não acho que o Sokurov se isenta de defender ou atacar a guerra. Mas, se há um ataque contra a banalidade e a inutilidade, esse ataque não acarreta um discurso de pacifismo, como muitas vezes ocorre em certo cinema bem intencionado. Pelo contrário, a meu ver, há um desejo de mostrar a complexidade da vida; e, por isso, das relações humanas que culminam em guerras, para além de todo discurso definitivo sobre o assunto.
A cena em que Alexandra afirma que "as coisas são mais complicadas do que isso", respondendo ao jovem que a leva para o acampamento (aquele que se diz cansado do conflito), parece confirmar esse ponto de vista. Assim, o filme realmente se interessa menos pela própria guerra, e mais pelos homens que se envolvem nela (sejam soldados ou civis). Há um "fator humano" que persiste, a despeito dos aparatos pesados e do tom rude do lugar. (Afinal, o filme não deixa de ser um drama).
Ocorre que esse próprio "fator humano", insuflado de maneira inesperada naquele campo de conflitos, já diz algo sobre a guerra – e é por isso que concordo com você. O discurso do Sokurov está construído naqueles olhares de soslaio que constroem a Alexandra, cujo olhar maternal também não é comum: uma mulher experiente, sobretudo, ela equilibra a ternura e a rispidez.
O que pode ser a guerra para o filme de Sokurov? Talvez ela se resuma naquela frase que Alexandra pergunta, em certo momento: “é possível recomeçar tudo, com a minha idade”? Basta transpor essa pergunta para a nossa civilização, e creio que estaremos próximos daquilo que o Sokurov quis dizer sobre a guerra. Não é essa a impressão que você teve?
Um abraço!
Sim, Rodrigo, sua análise me leva a pensar que talvez o Sokurov aponte para uma impossibilidade de se ignorar o peso do passado. E, sendo assim, fica complicado mesmo esquecer tudo e simplesmente recomeçar do zero, como se pergunta Alexandra.
Infelizmente o filme saiu de cartaz. Gostaria de tê-lo visto mais uma vez.
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