De saudades, amigos, amores e formação
A Marizete, Divina e Cristina
Lisandro Nogueira*
Quando eu fico gripado ou resfriado, costumo ficar seminostálgico: saudade dos amigos, das namoradas meigas e salientes, das situações de festas e de tristezas, dos jogos de futebol (vendo e jogando), das leituras e dos filmes. Em 1983, estava apaixonado e ouvia Caetano Veloso o dia inteiro. Não só ouvia, também cuidava de ler tudo o que ele escrevia.
Outra persona que me encantava era o jornalista Paulo Francis (dizem que a Petrobrás é culpada pela morte dele: por causa de críticas que ele fez, foi processado, com milhões para pagar e, coração de idoso, não suportou, morreu em 1997). Francis foi de esquerda e depois tornou-se conservador. Era um crítico mordaz da esquerda brasileira (“inculta” e “aguerrida”) e não pensava duas vezes ao bater em todos aqueles que considerava “incultos” e “bajuladores” do Estado brasileiro. Às vezes tinha razão. Todavia, para além de sua verve demoníaca, Francis exalava inteligência, sagacidade, autonomia e realizava o que muitos jornalistas brasileiros não conseguem: ter o próprio pensamento.
A situação ficou mais desconfortável de lá para cá: boa parte do jornalismo tornou-se pragmático e previsível. Francis faz muita falta e Caetano Veloso é imprescindível. Nos anos 70/80, era comum a comparação Chico Buarque X Caetano. Sempre me postei ao lado de Veloso, apesar de gostar demais do Buarque. O baiano é mais livre, menos “atrelado às ideologias rígidas e não tem a ginga aristocrático-conservadora do carioca. Ambos são fundamentais e o amor incomensurável da nossa geração (ou de boa parte do Brasil) para com eles é uma constelação de afetos e carinhos sem ter fim.
Francis não gostava nem de um nem do outro. Eu sempre gostei dos três, assim como jamais vou negar que Moraes Moreira é uma das memórias mais vivas dos “quintais do interior do Brasil”. No Cineclube Antônio das Mortes (eixo principal da nossa formação, fundado em 1977), o pensamento sempre foi livre, sem patrulhas ideológicas e sem militância partidária, apesar de admirar e compartilhar bons “momentos estudantis” com gente boa da esquerda universitária. Mas nossa conversa tinha outros destinos e interesses. Sem preconceitos (os anos 80 foram, em parte, terríveis e chatos para quem se recusava a ser sectário), aliamos uma formação nas artes e nas humanidades com o melhor do pensamento da esquerda.
São recordações vibrantes: os melhores passes de Pelé estavam ali, na nossa frente; os frevinhos de Moraes Moreira exalavam alegria plena e ninguém falava em depressão e síndrome do pânico. Saíamos do Colégio Carlos Chagas e corríamos para ver os melhores gols do Vila Nova (95% dos meus amigos são torcedores do time vermelho); noites e noites nas festas dos setores Universitário, Sul, Vila Nova e Centro. A noite, literalmente, era nossa! . Meire me obrigava a ler José de Alencar e Machado de Assis (só gostava de "Memórias póstumas" e o conto "O homem célebre" - O Pestana). Os estudos do Cineclube eram memoráveis: Lourival Belém guiava a leitura do "Discurso cinematográfico", do Ismail Xavier.
Penso que éramos tão saudáveis: porque trabalhávamos, jogavámos futebol, víamos futebol, íamos ao cinema, fumavámos (pouco e com estilo) e eu me apaixonava de vez em quando, ouvindo Toquinho e Vinícius de Moraes. Era muita energia para viver tanta vida.
Nem tudo era belo, obviamente. Meu amigo Benedito morreu de câncer em 1976 e eu vi, pela primeira vez, alguém morrer na minha frente, numa tarde triste de domingo. Os conflitos familiares também pesavam e não havia esse enoooooooooooorme espaço de compreensão e “tolerância” dos pais com os filhos, como nos dias de hoje (quase não havia psicólogos).
Em certos aspectos, hoje, essas relações tendem a ser melhores. Porém, havia um belíssimo desejo de autonomia. Aos 25 anos, saí de casa e fui morar com meu amigo recém-separado, Rondon de Castro. Nós éramos tão diferentes um do outro, que nos dávamos bem e ainda havia a Mazinha para cuidar da gente, na enorme casa do Jardim América.
Tudo que sei de música comecei a aprender com Rondon. Em nossa casa, tocava o dia inteiro o jazz de Ben Webster, o canto de Ella Fitzgerald, o trombone de J.J. Johnson, a gaita de Toots Thielemans e o sax eterno de Paul Desmod. Ufa! Foi uma escola e tanto. Quando morrer, quero ser enterrado ao som de Desmond, tocando “Autum leaves”.
Foi em nossa casa, em 1987, que choramos quase a noite inteira vendo Lolita, com James Manson, e direção de Stanley Kubrik. Talvez antecipássemos a velhice: a tristeza e o pavor do personagem de Manson nos deixou intranquilos e comecei a amar o cinema americano dos anos 50 e 60 (sublimação freudiana?).
Daniel Cristino e Eduardo Horácio, quando me incentivaram a abrir um blog, me disseram que, de vez em quando, era bom abrir um pouco a alma, num texto de memórias. Que bom!!
23 Comentários
Lisandro, saudoso, afetuoso, generoso...gosto tanto dele. Tmabém: exigente, ansioso e torcedor do Vila Nova.
Não é um tio. É um estímulo.
Que delícia!!
Gosto tanto dele (2), apesar de não ser meu tio!
Que bom mesmo!
Lisandro... sempre achei que nasci na década errada,quer dizer, o corpo veio depois, mas a alma foi criada nesse tempo. Como fazer caber, né? Numa época que "fomenta" depressão e crise do pânico. O jeito é aproveitar as brechas, e você abriu mais uma compartilhando um pouco a alma num texto de memória. Obrigada!!
Que belo texto Lisando, parabéns!
Sempre fui super fã do teu trabalho, e por um acaso do destino navegando me deparei com este seu Blog, o qual de hoje em diante passará 'obrigatóriamente' por minha leitura.
Parabéns por tudo, tb aguardo uma visitinha tua ao meu Blog, e ai em baixo está o endereço do mesmo.
http://pcsouzabv.blog.uol.com.br/
Olá Andréia,
Obrigado pelas palavras. Mas nem tudo foi tão bom nas décadas passadas. Hoje, há muito mais liberdade do que antes. Não gosto do discurso que afirma: "o passado foi melhor; minha geração era mais forte, etc". Cada geração vive o seu tempo.
Não restam dúvidas de que o mundo era menos pragmático, menos competitivo e mais lento. Mas esse estado de coisas não vai e não pode durar muito tempo. Essa epidemia de depressões carrega consigo um forte sinal de mudança. Toda a pessoa ou sociedade, em estado de depressão, detém uma oportunidade ímpar para dar o salto para outro patamar. Aqui e ali, observamos que há resistências fortes, ainda dispersas, diluídas, mas significativas.
Outra coisa: a "canção brasileira", tão forte para minha geração, já não ocupa o centro. Chico e Caetano ainda estão aí de corpo e alma. Porém, não existe a expectativa com eles e com as obras como naquela época. Eles passam a existir fortemente como Memória, força de agregação e reação cultural/espiritual.
Andréia, gostei muito do seu comentário. Realmente estou um pouco nostálgico: hoje ouvi Chico e Caetano (dos anos 70) e fiquei maravilhado com as letras. Depois ouvi Marcelo D2, Céu e Débora Sá. Fiquei orgulhoso com os novos cantores, com a linha evolutiva da canção brasileira. Apareça sempre...
Paulinho, vamos conversando aqui e no seu blog. O cinema é uma boa mediação: agrega, fortalece os laços, estimula o debate (o pensar)...enfim, vamos celebrar bem essa vida: trágica e bela.
Um abraço,
Lisandro
Isso é verdadeiro para todas as pessoas, mas mais ainda para você, que, olhando para o que passou, é bem mais ponderado hoje do que quando observa o presente atual, ou observava o passado enquanto ainda era presente.
Zeca (José Teixeira Neto)
Oi Lisandro,
gostei da sua "nostalgia". Você consegue ser nostálgico sem ficar preso ao passado. A vida continua e é cada vez melhor, agente aprende com ela. Você aprendeu como poucos...
um abraço
Só sei de uma coisa: o Cineclube Antonio das Mortes salvou minhas noites nos anos 80. Não era bem pelos filmes, mas pelo clima indescritivel daquelas sessões e debates.
O bom humor dos rapazes/jovens do cineclube era o que tinha de melhor. Eu ria muito deles, os achava pretensiosos, mas os compreendia. Vi o padre Palacin dar uma aula de cinema num dos debates e nenhum cineclubista rechacar. Minha namorada, na época, os achava debochados e humorados. Época boa e dura e o cineclube era uma ilha de tranquilidade e boa gente.
Ei Lisandro, lembra do~"ligeirinho" o time do Manelão e tantos outros? Você nunca conseguiu jogar no time por causa das suas deficiências futebolísticas. A primeira vez que vi um filme de arte foi com você e Dr. Lourival Belém. Não entendi nada e acho que vocês também nada entendiam. E foram em frente e agora entendem e gostam. Dona Geralda manda um abraco e Ana lembra do seu jeito-moleque.
Olá!
Por incrível que pareça, acabei de gravar um cd para você que tem alguns dos cantores que você inseriu em seu texto, isso tudo antes de eu ler o que estava escrito, o seu cd estava pronto.
Eu não tenho mais condições de gravar suas tão amadas fitas K7, mas tenho maneiras de gravar um cd, que lhe entregarei na terça-feira em sua aula. Espero que goste.
Todos temos nossas tristezas as vezes, e toda essa sua nostalgia te humanizou ainda mais para mim, pois acredito que alguns professores se colocam em uma posição diante dos alunos que é inalcançável e sobrehumana, e você se mostra tanto em sala de aula quanto em textos como esse, em um nível alcançável e totalmente humano. Isso é admirável.
Gosto disso em você.
Espero que tenha apreciado a maçã de Dia dos Professores.
Melhoras Lisandro, físicas e emocionais.
abraço caloroso.
Mestre Lisandro,
Parabéns pela coragem de revelar essas suas memórias afetivas, estéticas, políticas. Embora seja da geração anterior à sua, fico grato em descobrir que temos sentimentos afins. Um exemplo: minha admiração por Paulo Francis, que faz muita falta. Acompanhei-o desde O Pasquim, quando ele ainda era de esquerda. Era uma figura fácil de odiar, por causa de alguns defeitos evidentes, mas também por suas qualidades, algumas das quais quase inexistentes no mercado hoje em dia: tinha ideias próprias e a coragem de expô-las. Outro exemplo: meu interesse pelo cinema dos anos 50 e 60. Com uma diferença apenas: esse cinema eu conheci na adolescência, e no cinema mesmo. Aproveitando o exemplo do Francis, ouso dizer que o melhor cinema, para o meu gosto, é o de Hollywood dos anos 50. Pode-se argumentar que acho isso porque ele foi o meu "primeiro" cinema etc. É verdade. Mas tenho cá minhas explicações para justificar esse ponto de vista, que só não revelo agora por falta de tempo e de espaço. Noutra ocasião, exporei o que penso a respeito.
Abraços
Felipim Azevedo, me lembro da dona Geralda defendendo Roberto Carlos. Eu sempre a apoiava e cantava com ela "Força estranha" (de Caetano que Roberto gravou).
Ana é uma pessoa fácil de gostar. Gostava e gosta do MPB4 e do Geraldo Azevedo (eu tb.). E não gosta do Godard, do Glauber e de "todos esses metidos da sétima arte". Rimos muito no Cine Capri, em 1979, no centro, vendo as comédias bobas do Lewis. Um abraço, Lisandro
Tatiana,
Agradeço a maça e antecipadamente o CD. E tb. as palavras gentis. E você, como uma aluna interessada e séria, vai gostar cada vez mais de cinema e do seu projeto de mestrado.
O fundador do Cineclube, Herondes Cesar, quando aparece no blog estendemos o tapete vermelho.
Herondes, vamos aguardar sua manifestação sobre o cinema americano (eu tb. gosto muito dos filmes dos anos 50: serão os roteiros bem escritos?).
Temos muito em comum e vamos colocar nossas idéias em público, em breve, aqui em Goiânia, naquele debate sobre o cineasta João Bennio.
Voce esqueceu da boina de chochê eheh, mas tudo bem!
bons tempos, especialmente as noites de sabado no CREA, única opção para muitos de nós em Goiânia naquela época.
Parabéns pelo texto e pela lição!
e melhoras! antes que voce caia na rede...aí...bem...
joao fantini
João Fantini,
Você foi um símbolo daquela época. Inesquecíveis nossas viagens e os acampamentos com rodas e rodadas de violão e futebol.
Lisandro
Anos 80: não foi brincadeira, não. Não tinha as facilidades de hoje, acho que era pior por causa dos resquicios da ditadura militar e da nova ditadura, as esquerdas populistas. Fora isso, muita arte.
Parabéns Lisandro!
Quem não tem passado, não tem presente e nem futuro.
Depois dos 50, dizem, o passado fica maior que o futuro e esta diferença vai aumentando cada vez mais...Até que um dia seremos apenas passado.
Continue contando suas histórias, estas sim, com chances de sobreviverem eternamente...
Tudo isto está me parecendo um filme: "O Amor, a morte e as paixões". É a vida...
Geraldo Profirio Pessoa
Parabéns
A nostalgia é sempre bem vinda,não parando no passado mas percebendo as boas mudanças e grandes perspectivas fututas.
É por isso que sonhar com Caetano faz sentido.
Geraldo e Laura, grandes amigos, como diz a música "saudade faz verão". Mas ela só vale a pena se for para caminhar em frente.
Geraldo sabe de todas essas histórias como testemunha ocular. Vivemos inúmeras delas..
Um abraço para os dois.
Lisandro
É !
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