A FITA BRANCA É REFLEXO DE TODOS OS EXTREMISMOS*
Esbanjando vitórias com “A fita branca” (“Das weisse Band — Eine deutsche Kindergeschichte”), Michael Haneke nunca sorriu tanto. Aos 67 anos, o cineasta de nacionalidade austríaca, nascido em Munique, na Alemanha, parece imbatível na briga pelo Oscar de filme estrangeiro, fortalecido pelos aplausos da crítica e por 13 prêmios conquistados mundialmente. Inclua entre eles a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Globo de Ouro. O sucesso quebrou a notória sisudez do diretor, respeitado por “Funny games — Violência gratuita” (1997), “A professora de piano” (2001) e “Caché” (2005). Até Hollywood se curvou diante de seu novo longa-metragem, filmado em Leipzig e em Lübeck, ao custo de 12 milhões. Nele, Haneke revive episódios reais ocorridos em solo alemão, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, nos quais crianças e adolescentes cometem atos de violência, plantando a semente do que viria a se chamar nazismo.
Podemos assumir que os meninos e meninas de “A fita branca” encarnaram o sentimento de opressão que deu origem à filosofia nazista?
MICHAEL HANEKE: Busquei revelar as raízes do mal de maneira generalista. Tentei mostrar que a adesão de uma pessoa a uma ideologia pode ser consequência de um mal-estar particular. Podemos transpor o que é mostrado em “A fita branca” para qualquer outro contexto, seja político, tanto de direita quanto de esquerda, ou seja religioso. Os mecanismos são sempre os mesmos. Uma vez que uma pessoa constrói para si um princípio absoluto, ela, pouco a pouco, perde a sua humanidade, encaminhando-se para a prática do terror.
É por isso que, desde Cannes, seu filme vem sendo visto como uma alegoria sobre o fundamentalismo associado aos ataques de 11 de setembro de 2001 contra Nova York e mesmo à guerra do Iraque?
HANEKE: Tenho a sensação de que esse ambiente de princípios absolutos de que eu falava pode ser aplicado a uma sociedade muçulmana fundamentalista que produz terroristas e homens-bomba. Eu observo nelas os mesmos processos que norteiam os meninos do filme: humilhação, ideologias baseadas na noção de que a obediência pode extinguir os sofrimentos. “A fita branca” é um reflexo de todos os extremismos, sejam eles de direita ou de esquerda.
Qual seria a justificativa estética para o uso do preto e branco no filme?
HANEKE: Uma das invenções da fotografia é a constatação de que o preto e branco torna mais fácil e ágil o acesso ao passado, uma vez que ele cria uma fratura na observação do real. O preto e branco rompe com o realismo e isso é essencial para um filme que não se pretende naturalista.
Como o senhor orientou as pesquisas históricas dos eventos ocorridos no interior da Alemanha em 1913, representados no filme como delitos cometidos por crianças, entre elas os filhos de um pastor?
HANEKE: A Alemanha que encontramos às vésperas de 1914 não me parece ser um paraíso perdido, que viria a ser maculado pelo nazismo. A barbárie e a perda da humanidade já faziam parte daquele mundo. Mas o ano de 1913, especificamente, marca a primeira grande ruptura cultural no país (poucas décadas após a Unificação Alemã, onde diferentes estados germânicos se juntaram numa só nação, sob a égide do estadista prussiano Otto von Bismarck). Por isso, eu precisava resgatar aquele período. Ele era essencial para a motivação: flagrar a gênese do mal. Naquela época, um antigo regime, guiado por Deus e por práticas autoritárias, ainda funcionava. Mas começavam a voar os primeiros estilhaços dessa estrutura política.
Sobram estilhaços inclusive para o vilarejo rural onde se passa o filme, narrado por um professor interpretado pelo estreante Christian Friedel?
HANEKE: A pequena vila de “A fita branca” entra na tela como um modelo para a estrutura social da Alemanha de 1913, com todas as suas hierarquias. Tudo transcorre às escondidas, por trás das portas. O padrão intelectual daquela população não é dos mais elevados, mas ela experimenta uma perturbação inexplicável. Numa sequência decisiva do filme, seu narrador diz: “Tudo vai mudar”. Ali, ele exprime um desejo consciente de seus conterrâneos e das pessoas em geral. Ele não tem certeza do que vai mudar, nem do que precisa ser mudado, mas ele almeja uma transformação. Ele também não percebe que uma mudança sem orientação pode ser perigosa. Esse desejo é um reflexo do sofrimento. O sofrimento e a humilhação preparam o terreno para a perversão de ideias. E uma ideia pervertida se transforma em ideologia. E uma ideologia se justifica com um bode expiatório que possa ser imolado em seu nome.
No dia 27 de fevereiro, “A fita branca” pode ganhar o prêmio da American Society of Cinematographers, que reúne os fotógrafos de Hollywood. Nos EUA, as associações de críticos de Nova York e de Los Angeles, duas das mais influentes da imprensa cinematográfica, elegeram as imagens clicadas por Christian Berger, para o filme, como as mais bonitas do ano. Ele fotografa seus filmes desde “Benny’s video” (1992). Como o senhor avalia a contribuição de Berger para o longa?
HANEKE: Na concepção visual de “A fita branca”, Christian e eu trabalhamos muito sobre a noção de contrastes de cor, buscando as especificidades do preto e do branco isoladamente. Costumo dar muito trabalho aos fotógrafos, inventando o máximo que posso no set, não apenas nos enquadramentos da câmera, mas também na iluminação. Já tenho suficiente experiência no cinema para saber se uma lâmpada vai produzir o efeito que eu pretendo alcançar ou não. Quando Christian comemorou seu 60 aniversário, ele conseguiu publicar como livro os diários de filmagens de “A professora de piano” e de “Caché”. Ele reclamava muito de mim nesses dois trabalhos, mas temos uma afinação muito boa. Ninguém fotografa cinco filmes de um diretor se não se der bem com ele.
* Entrevista para o jornal O Globo.
HANEKE: A pequena vila de “A fita branca” entra na tela como um modelo para a estrutura social da Alemanha de 1913, com todas as suas hierarquias. Tudo transcorre às escondidas, por trás das portas. O padrão intelectual daquela população não é dos mais elevados, mas ela experimenta uma perturbação inexplicável. Numa sequência decisiva do filme, seu narrador diz: “Tudo vai mudar”. Ali, ele exprime um desejo consciente de seus conterrâneos e das pessoas em geral. Ele não tem certeza do que vai mudar, nem do que precisa ser mudado, mas ele almeja uma transformação. Ele também não percebe que uma mudança sem orientação pode ser perigosa. Esse desejo é um reflexo do sofrimento. O sofrimento e a humilhação preparam o terreno para a perversão de ideias. E uma ideia pervertida se transforma em ideologia. E uma ideologia se justifica com um bode expiatório que possa ser imolado em seu nome.
No dia 27 de fevereiro, “A fita branca” pode ganhar o prêmio da American Society of Cinematographers, que reúne os fotógrafos de Hollywood. Nos EUA, as associações de críticos de Nova York e de Los Angeles, duas das mais influentes da imprensa cinematográfica, elegeram as imagens clicadas por Christian Berger, para o filme, como as mais bonitas do ano. Ele fotografa seus filmes desde “Benny’s video” (1992). Como o senhor avalia a contribuição de Berger para o longa?
HANEKE: Na concepção visual de “A fita branca”, Christian e eu trabalhamos muito sobre a noção de contrastes de cor, buscando as especificidades do preto e do branco isoladamente. Costumo dar muito trabalho aos fotógrafos, inventando o máximo que posso no set, não apenas nos enquadramentos da câmera, mas também na iluminação. Já tenho suficiente experiência no cinema para saber se uma lâmpada vai produzir o efeito que eu pretendo alcançar ou não. Quando Christian comemorou seu 60 aniversário, ele conseguiu publicar como livro os diários de filmagens de “A professora de piano” e de “Caché”. Ele reclamava muito de mim nesses dois trabalhos, mas temos uma afinação muito boa. Ninguém fotografa cinco filmes de um diretor se não se der bem com ele.
* Entrevista para o jornal O Globo.
1 Comentário
Opa, entrevista pré-Oscar! Realmente, A Fita Branca parecia imbatível. Mas talvez fosse escuro (nos dois sentidos possíveis)e silencioso demais para um prêmio da indústria cinematográfica. Você já assistiu ao argentino que ganhou?
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