BUÑUEL E O CINEMA DE DESEJOS
Rodrigo Cássio*
Entre os filmes em exibição na mostra dedicada ao cineasta Luis Buñuel, em cartaz no Cine UFG, no Câmpus 2 da universidade, de segunda a sexta-feira, um título de 1977 chama a atenção do espectador de hoje. Não por ter sido o último filme realizado por Buñuel, nem por ser um exemplar menor de uma obra destacada e significativa, mesmo que essas duas premissas sejam verdadeiras.
Mais de30 anos depois de realizado, surpreendentemente, Esse Obscuro Objeto de Desejo (que será exibido amanhã e quinta-feira, às 17h30, e no dia 18, no mesmo horário) dialoga com o presente ao harmonizar, com agudeza, as fissuras internas de uma narrativa dividida entre o romance do casal de protagonistas e as inquietações morais e políticas que lhe servem de pano de fundo.
Um dos desafios do cinema recente, de fato, é o equilíbrio entre essas duas dimensões do discurso. De um lado, a tradição romanesca que põe em foco os enlaces amorosos, opção com lastro popular e indispensável em um número infinito de filmes narrativos. De outro, a reflexão do filme sobre temas de caráter mais objetivo, que põem o espectador em contato com os problemas da coletividade. Por serem coletivos, justamente, esses problemas extrapolam o indivíduo cingido no romance, ou seja, extrapolam a boa ou a má sorte no amor, a consumação ou a irrealização dos desejos afetivos.
Já não vivemos, hoje, uma era de atitudes intempestivas contra os filmes narrados convencionalmente, como quando Buñuel traduziu o surrealismo no cinema. Já em 1977, até certo ponto, Esse Obscuro Objeto mostra as demandas de uma nova época, não absolutamente mais conformista, mas sim na qual os gestos de ruptura se tornam cada vez mais difusos, deixando de pautar os debates mais calorosos do meio cinematográfico.
Assim, o último filme de Buñuel é extremamente comedido nos lances de estranheza surrealista que caracterizam suas obras-primas, como o elementar Um Cão Andaluz (1929), realizado junto com Salvador Dalí. Esse Obscuro Objeto é um filme linear, com conexões lógicas entre planos e eventos, de maneira que nada resulta inexplicável se desejamos ver refletido, na tela do cinema, o mundo da experiência psicológica comum. Em outras palavras, neste filme de 1977, a armação ilógica dos sonhos já não rege tão intensamente a criação de Buñuel, apesar da permanente acidez crítica contra os valores fundantes do Ocidente.
Nesses termos, Esse Obscuro Objeto é certamente o Buñuel mais acessível ao espectador acostumado com os filmes fluentes e realistas que padronizam a vertente comercial do cinema. E é aqui que desponta a agudeza harmonizadora referida anteriormente. Buñuel conta uma história de amor para desconstruir a própria noção de amor romântico. Como grande parte dos diretores do presente, cada vez menos aptos a dispensarem um bom romance para falar da sociedade como um todo, o diretor conta a história de um senhor rico com uma jovem de 19 anos, cujo envolvimento extrapola as tipificações a fim de que o próprio desejo se revele como fator determinante da vida.
Mais uma vez, Buñuel afirma os fundamentos freudianos da sua visão de mundo. Mas não apenas o Freud analista das pulsões: também o Freud que investiga na organização da sociedade o reflexo daqueles conflitos que, no filme, se condensam no aspecto “obscuro” do desejo.
Avançando em relação ao melodrama irônico que Buñuel praticou quando exilado no México, no final dos anos 1940 e durante os anos 1950, Esse Obscuro Objeto harmoniza, portanto, um discurso que conjuga a crítica da cultura às narrativas de origem clássica. Comparado ao que tem se notabilizado numa linha semelhante, como o tecnicamente bem feito (mas pouco relevante) O Segredo dos seus Olhos, de Juan José Campanella, o último Buñuel confirma que um filme menor de um grande diretor tende a ser ainda um filme de destaque, tendo em vista a média do que é produzido no cinema.
Uma mostra dessa diferença que amplia o poder do discurso é que, diferente do pretensioso filme argentino, Este Obscuro Objeto não passa pela história de um povo sem deter-se nela, como quem faz um comentário dispensável, já que preocupado sobretudo com os afetos particulares das personagens ou o preciosismo técnico da imagem. Em vez disso, o filme projeta nas próprias personagens a capacidade de dizerem tanto (ou mais) sobre o mundo em que vivem do que sobre si próprias. Buñuel fala tanto de amor quanto de terrorismo, tanto da miserável condição daquele que sofre por um objeto supostamente determinado (uma amante) quanto daquele que sofre sem identificar muito bem o seu objeto (uma vítima do terrorismo).
Nesse passo, Esse Obscuro Objeto ataca as sutis laborações da vida burguesa, como as mulheres que se tornam objeto de consumo, mas também a conturbada inserção do catolicismo em uma era de valores sem substância – a cena final, uma alegoria da castidade corrompida e sem razão de ser, exposta na vitrine de uma loja, pontua com evidência o que foi a obra de Buñuel: um rompimento na direção do que esteve submerso, uma procura visual pelo que subjaz aos atos conciliadores dos homens civilizados, isto é, pelo que esteve desde sempre obscurecido pelos recalques e repressões e, repentinamente, eleva-se a olhos vistos.
Rodrigo Cássio é mestre em cinema pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
6 Comentários
Pessoal, professor Nogueira, além de trabalhar demais, ainda passou por três dias de comemoração do aniversário. O presente dele também são seus alunos que escrevem bem prá caramba aqui no blog. Rodrigo emplaca mais uma tacada e diz o que eu queria dizer, ou seja, "O segredo dos seus olhos" não é essa bola toda. Ah, o filme "Obscuro objeto do desejo" será exibido no cineufg nos dias 10, segunda, 17:30h; quinta, dia 13,17:30h e dia 18 de maio, 17:30h.
Desculpem, mas o Segredo dos seus olhos nada tem a ver com o filme citado do Bunuiel. Épocas diferentes e temas tratados sem comparação. Não valeu, Rodrigo Cássio. Foi bem até querer comparar Luis Bunuiel com o filme argentino. Forçou a barra. Voi o filme argentino aí em Goiânia e vou mostrá-lo aqui em Anapolis na comunidade que faço parte. Vou usar seu texto Rodrigo Castro mas discordando da comparação.
Alfredo, note que o que comparo nos dois filmes são as diferentes estratégias de cada um para lidar com uma estrutura dramática semelhante: ambos possuem um romance como fio condutor principal e a história política como pano de fundo.
Os desmandos autoritários da ditadura, em O Segredo dos seus Olhos, correspondem aos ataques terroristas de Este Obscuro Objeto de Desejo. Minha tese é que Buñuel resolve o seu 'pano de fundo" melhor que Campanella.
No texto, refiro-me a isso, e não a qualquer outra coisa. Do ponto de vista do conteúdo, os dois filmes são, claro, bastante diferentes.
Rodrigo Cássio, você esclareceu de fato. A política é uma coisa menor em Segredos dos seus olhos. Se fosse ser preponderante o filme não seria o que é, isto é, simplesmente formidável.
Senhor Alfredo, o blog acolhe textos, artigos e comentários com o maior prazer. Gostaríamos que fosse mais preciso em seus comentários. Eles são muitos gerais e não permitem um bom debate.
Vamos ao bom debate!!
Sou apaixonada por este filme. Por isso, escolhi-o como objeto de pesquisa do meu curso de transmissão em psicanálise.
Gostei muito do site. Está nos favoritos :)
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