segunda-feira, 3 de maio de 2010

"O segredo dos seus olhos" (em cartaz)


Os segredos de Campanella

Pedro Novaes*



Para David Bordwell, no cinema, "a originalidade aparece quando um diretor criativamente ajusta um novo meio a um fim já conhecido ou inventa novos objetivos que remanejem os meios já conhecidos." 

As celebradas cinematografias modernas se enquadram na primeira hipótese, construindo nova linguagem e estruturas representativas para fazer filmes e falar do mundo. Do outro lado, o cinema de um Almodóvar, por exemplo, que usa a estrutura consagrada do melodrama para explorar, frequentemente de forma irônica, terrenos das relações humanas estranhos a esse gênero narrativo, confirma a segunda possibilidade.

Mas, para ser uma obra-prima, um filme precisa ser original? 

"O Segredo dos Seus Olhos", o oscarizado filme do argentino Juan José Campanella, parece sugerir a resposta de que não, de que também um filme que segue à risca os princípios narrativos de um gênero consagrado, sem inovar em fins ou meios, pode sim ser uma obra-prima.

O filme, que conta a história da investigação de um crime brutal pelo oficial de justiça Benjamin Espósito (Ricardo Darín) e de sua paixão reprimida pela chefe Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil), é cinema clássico e melodrama em todos os sentidos. Não há ali qualquer pretensão de inovação de linguagem ou de subversão de princípios narrativos consagrados. Ao contrário, o que Campanella sabe fazer muito bem é explorar e extrair desses elementos, polidos ao longo de um século desde sua consolidação, sua máxima força.

Por sua hegemonia, o melodrama é um gênero repleto de armadilhas. É um grande desafio fazer um filme nesse gênero que  realmente desafie a inteligência do espectador - é muito fácil escorregar para o sentimentalismo exagerado, para o maniqueísmo, para personagens esquemáticos ou para o moralismo tolo. Mas Campanella, em sua maestria como roteirista e diretor, e apoiado em soberbas interpretações, consegue percorrer o caminho nesse labirinto, caminhando sobre o fio da navalha e nos presenteando com um filme magistral.

Até o título do filme é, de certa forma, uma exaltação do cinema clássico, a nos dizer que é no close, no primeiro plano dos rostos dos personagens - justamente um dos princípios do estilo na narrativa clássica - que está o segredo da boa narrativa cinematográfica, pois é ali que se esconde e revela o sentido da própria vida.

O segredo deste grande filme está, antes de mais nada, na costura sutil entre as duas tramas paralelas (forma canônica do cinema clássico, cabe lembrar) - a romântica, do amor reprimido dos protagonistas - e a de suspense - a investigação do crime -, influenciando-se e motivando-se mutuamente de uma maneira extremamente engenhosa e que tomamos como absolutamente natural. 

Na verdade, e aqui reside outra parte fundamental do êxito do filme, o roteiro urde a essas duas tramas, de forma ainda mais sensível e delicada, um terceiro componente: o pano de fundo da sociedade argentina no período que antecede a ditadura militar. Por trás do crime e do amor entre Benjamim e Irene há um caldo latente e que a tudo influencia, de violência extrema, impunidade, ausência de justiça, ineficácia do Estado e corrupção.

E aqui está, quem sabe, o segredo de todo o sucesso do cinema argentino, e aquilo que o coloca, no campo da ficção ao menos, muito adiante do cinema brasileiro: nas palavras de José Geraldo Couto,  sua capacidade de falar sobre "os grandes assuntos (políticos, sociais, morais) de forma indireta, oblíqua, respeitando a inteligência do espectador. Diz ele: "O interesse desses filmes parece estar sempre voltado para os personagens e sua relação com o espaço físico e humano que os cerca – o que, de certo modo, é a base de todo o cinema que não seja “de tese”. O contexto social e político entra pelas bordas, não arromba a porta da frente."

A agudeza desta afirmação salta aos olhos em "O Segredo..." O romance dos protagonistas e o crime estão inapelavelmente enredados na teia da sociedade argentina. Puxamos um fio, e todo o país vem atrás.

À guisa de conclusão, uma palavra sobre o celebrado plano-sequência do estádio do Racing, o famoso clube portenho, que de fato merece entrar para a lista dos grandes planos-sequência de todos os tempos da história do cinema. Ele é testemunho do quilate de Campanella como diretor não exatamente pela maestria de sua execução, em sua perfeição técnica, mas justamente por somar, ou antes equilibrar, virtuosismo estético e técnico a eficiência narrativa.
Um diretor mediano teria optado por uma sequência freneticamente editada - o básico de qualquer cena de perseguição policial - o que seria eficiente, mas de pouco impacto. Um diretor capaz em termos técnicos, mas sem sensibilidade, usaria o plano-sequência no momento errado do filme, tornando-o uma constrangedora celebração de seu próprio virtuosismo técnico, sem função narrativa clara.

Um grande diretor como Campanella opta pelo plano-sequência no lugar certo, colocando-nos na ação, gerando tensão de maneira exponencial e ainda, ao mesmo tempo, permitindo-se chamar a atenção para a representação e para o estilo em si - ninguém fica imune à maneira pela qual o próprio plano é executado. Comentamos à saída da sala não a perseguição, mas o próprio plano: como é possível executá-lo? Que incrível é a orquestração do balé da câmera que abandona os protagonistas para encontrar - e permitir que o espectador perceba antes dos personagens - o rosto do vilão em primeiro plano no meio da multidão!

Somente um mestre da direção consegue este tipo de efeito e esta convergência de funções num plano, escapando de ser acusado de se render a manobras desnecessárias apenas para exibir seu virtuosismo.

Por tudo isso, "O Segredo dos Seus Olhos" é de fato uma obra-prima.

16 Comentários

Pedro e Patricia disse...

Patricia chorou várias vezes durante o filme. Eu fiquei travado e posso dizer que o ator Darin é sensacional. Pedro, meu chará, seu texto bate na tecla certa. O roteiro é tudo.

Lian Tai disse...

O que tenho a dizer é que AMEI esse filme!

Galtiery Rodrigues disse...

"...é de fato uma obra-prima."

Além de toda a engenhosidade da edição e da montagem, do roteiro inimáginável e tantas outras coisas, destaco, ainda, o humor e a ironia dos personagens. Um filme forte, pesado e, como era de se esperar, cheio de sensações.

Por ora você se comove com a bela interpretação dos olhares, da troca generosa entre os atores, da química perfeita, na dose certa, sem exageros e por outra, você ri e conhece uma ironia argentina, bem natural, também sem abusar dos limites e, assim, ficar extremada ou roubar a cena. Isso sem contar o suspense e a revelação do fim.

"Na medida!" É essa a definição que dou para o filme. Quem não viu, tem de ir. Há muito não via um cinema tão bem feito e que mesmo na "surrealidade" (bem entre aspas) do roteiro, é por demais naturalista e real.

Pena que vi no Lumiere, em pleno domingão, lotado, ar-condicionado falho, som baixo, acústica sendo invadida pelo áudio da outra sala, onde passava o "Homem de Ferro", enfim...

Euripedes disse...

Eu gostei muito do filme e desse texto. Há muita sensibilidade em Campanella. Há tempo não vi um filme falar de forma pungente das verdades de cada um.

Elaine Camargo disse...

Eu vi muita sensibilidade nesse filme. O texto ajuda a entender porque o cinema argentino é bom.

Rodrigo Cássio disse...

Pedro, parabéns pelo texto.

Curiosamente, eu o li logo depois de terminar um artigo sobre "Este Obscuro Objeto de Desejo", do Buñuel, que deve sair em O Popular e no meu blog, em breve. Nesse artigo, citei "O segredo dos seus olhos" a partir da relação entre o romance e a discussão da sociedade, que você também abordou no seu texto.

Na minha avaliação, contudo, o filme de Campanella é insuficiente nesse aspecto, como grande parte dos filmes tecnicamente primorosos de hoje. A propósito, isso que diz José Geraldo Couto, citado no seu texto, parece-me igualmente insuficiente, para não dizer problemático: com qual fundamento se pode afirmar que um filme "de tese" é o oposto de um filme no qual "o contexto social e político entra pelas bordas, não arromba a porta da frente"? Essa é uma falsa dicotomia, a meu ver.

Ainda nessa linha, eu diria que o filme de Campanella realiza com eficiência técnica uma proposta que os filmes brasileiros procuram fazer há algum tempo (vide os filmes da primeira fase da Retomada, um O que é isso companheiro?, por exemplo). É o drama em primeiro plano, e a política, vagamente, como uma tintura (um recalque?). Nesse ponto de vista, não há tanta diferença entre o cinema brasileiro e o argentino (pensadas as propostas majoritárias, e não tanto a "qualidade" que vem da "competência" de um bom diretor).

O Segredo dos seus Olhos é um filme bem realizado, equilibrado, que se move dentro dos gêneros hollywoodianos, para, no fim das contas, ser melhor que muitos filmes da Hollywood atual. Porém, penso que está bem longe de ser algo como uma obra-prima - a não ser que sejamos muito coniventes com esse conceito (e talvez injustos com os cineastas que realmente filmam obras-primas por aí, rs).

Um abraço.

Elaine Camargo disse...

Gente!! o filme é lindo mas realmente é exagero dizer que é obra-prima. O Pedro Novais exagerou com a obra-prima. O seu texto, Novais, é bonito como o filme. Ressalta a sensibilidade dele. Todavia, não fale em obra-prima porque aqui nesse blog há muitos patrulheiros, vigilantes demais e não suportam ver sensibilidade em filmes bons.

Rodrigo Cássio disse...

Elaine, engraçada a sua indireta, hehe. Não é a primeira vez que me chamam de patrulheiro. Mas entenda que o ponto de vista que eu procuro expressar leva em conta um juízo crítico. Não é implicância.

O Segredo dos seus Olhos é bom e bem feito. Mas, a meu ver, o texto do Pedro faz parecer que ele tem um valor bem maior do que realmente possui para o cinema. Eu, sinceramente, considero o cinema de um Walter Salles mais relevante que este filme, aqui no Brasil mesmo.

Ou todos devemos concordar com todos os elogios para um filme, apenas porque nos sensibilizamos com ele? Respeitamos e valorizamos um autor também quando discordamos dele. Pedro é meu amigo. E mesmo se não fosse, ele sabe que discussão boa é assim: sincera e aberta para a diferença!

Elaine Camargo disse...

Gente!! Cassio, Walter Salles é fraco demais frente ao "Segredo dos seus olhos". Me desculpe, Cassio, não vejo como você. O texto do Novais é rico ao mostrar sensibilidade. Não vejo problema bom roteiro com sensibilidade. Você também não gosta do cinema argentino só porque é argentino. Na minha escola, aqui em Ribeirão Preto, fizeram uma pesquisa. O cinema brasileiro não agrada muito porque não tem bons roteiristas. "O segredo dos seus olhos" é bem realizado e tem muito sentimento, caro Cassio.

Alfredo disse...

Não é um filme. É um filmão, pelo amor de deus. Não há praticamente o que discutir e sim bater palmas.

Fellipe Fernandes disse...

Gente,
a ver, ninguém disse que o texto do Pedro e o filme sejam ruins. Aliás, ambos são muito bons (apesar de ver mais qualidade no texto que no próprio objeto analisado).
Concordo com o Rodrigo em relação às deficiências e aos pontos positivos, o que me leva a dizer, Alfredo, que obra alguma, por mais consagrada que seja, está isenta do juízo estético. Bater palmas sim: para a realização, para a consolidação da narrativa, especialmente a melodramática, no cinema argentino. Discutir? sempre. Só assim chegamos a um nível crítico melhor, com olhos mais atentos.
E, Elaine, Walter Salles tem sim os problemas dele como cineasta, mas vejo "Central do Brasil", por exemplo, um melodrama muito mais interessante e com uma narrativa que refresca o gênero, recobrando a frase do Bordwell citada pelo Pedro, mais do que faz "O Segredo dos Seus Olhos".
Abraços a todos!
Ah, e sim, pode ser que eu seja um patrulheiro também, já que acho o termo "obra-prima" algo exagerado em qualquer discussão.

Alfredo - Anápolis disse...

Me desculpe, Fellipe. Discutir, discutir, sem fim. Não dá para dizer que o filme é bom e Ponto?

Rodrigo Cássio disse...

Pelos deuses, caro Alfredo. Que debata o filme quem quiser. Se você não quer debater, por que se incomoda?

Pobre de nós, críticos, com leitores tão exigentes! Se estes gostam do filme, já não podemos nem mais explicar o que julgamos ao dizer que o filme é "bom". Temos que dizer que é bom "e ponto"! rss

Imagina se eu tivesse dito que o filme é ruim!

Caroline Pires disse...

Esse texto me motivou demais a ver o filme... uma pitadinha de cinema clássico com um melodrama bem realizado é o meu tipo de filme favorito.

Muito bacana também a frase do Bordwell... mas eu achava que era justamente o contrário, que um diretor criativo iria ajustar um novo FIM a um MEIO já conhecido... mas quem sou eu neh?

E sobre discutir os filmes.. puxa vida... discutir um filme é pelo menos uns 40% da graça de ver filme!

Pedro disse...

Bom, agradeço a todos os comentários.

Ressalto duas coisas: acho que a minha diferença de ponto de vista com você, Rodrigo, diz respeito principalmente a, de certa forma, se me permite de alguma forma rotulá-lo, você ser um cara do cinema moderno, e eu um cara, de certa forma, do cinema clássico. A rotulagem é cruel comigo e com você, mas tem seu sentido. Ou você discorda? É claro que o que eu realmente gosto é de um cineasta que pega a estrutura clássica e faz aquilo que o Bordwell diz lá em cima, usando ela pra dizer coisas novas, falar de coisas para as quais, de certo modo, ela não foi feita. E eu mesmo disse que o Campanella não faz isso. E usei exatamente essa constatação como mote do texto. Mas me encanta de toda maneira uma história tão bem contada. E no final das contas o que é ou não obra-prima acaba sendo muito uma questão de gosto quase pessoal.

Mas o que acho que realmente é uma discussão bacana e fundamental é isso que vc puxa: a forma pela qual o "social" entra nos filmes. Não quero me estender demais, mas quando vc fala na possibilidade de "recalque", parece no fundo haver uma certa ideia de que os filmes tem que dar conta de ou "prestar contas" de sua visão da sociedade e da política. E aí vc poderá dizer que justamente quando um filme pretende não falar disso, aí mesmo é que ele está falando, porque de uma forma ou de outra todo filme sempre contém em alguma medida valorações sobre a relação entre o público e o privado, seus valores relativos, etc. etc. E talvez isso seja verdade. Mas quando me deparo com um melodrama canônico inteligente como "O Segredos dos Seus Olhos" me incomoda muito a crítica rasa tradicional de raiz marxista a esse formato narrativo como "ideológico" (e acho que essa cobrança pelo tratamento dado ao social tem a ver com isso). Penso que o melodrama fala muito sobre nossa cultura e sobre nossas próprias identidades individuais, como parte do mundo moderno e da América Latina especificamente. Acho muito pobre vê-lo meramente como entretenimento alienante. E vc sabe que eu não estou dizendo que vc disse isso, mas sabe que parte da crítica o faz.

Grande abraço.

Pedro

Ulisses disse...

O Brasil bem que poderia seguir alguns passos desse filmão...

pra quem gosta deixo o link pra baixá-lo pela net...

http://www.megaupload.com/?d=RV36VSK5

Bom filme!!

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