domingo, 20 de junho de 2010

Ismail Xavier rebate Jacques Aumont: "Existem propostas inovadoras"


ENTREVISTA - ISMAIL XAVIR




É cada vez maior a facilidade de produzir vídeos, até mesmo por celulares. Mas há o alerta: para um filme chegar às telas de cinema ele precisa entrar no jogo de comercialização inerente a qualquer produto


SARAH MOHN *


Ele defende a ideia de que somos vários personagens longe de uma única essência, apesar de nos mantermos num único corpo humano, e que cada um de nossos próprios personagens se manifesta distinta e seletivamente conforme a ocasião em que nos inserimos. Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, o crítico de cinema Ismail Xavier rebate a constatação do francês Jacques Aumont, um dos mais respeitados críticos de cinema da atualidade, que considera o cinema atual como repetição do que já foi feito no passado. “Fora do esquema industrial, existem propostas inovadoras, haja vista o documentário brasileiro. É uma experiência de altíssima criatividade, de invenção de linguagem, de discussão de questões das mais variadas e é um exemplo de produção que não tem precedentes no Brasil”, avalia.


Após almoço, no restaurante do Hotel Vila Boa, na cidade de Goiás, Ismail Xavier concedeu entrevista de 40 minutos à reportagem, um dia antes do encerramento da 12ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica). Pela manhã, ele havia liderado a conferência de Cinema Ficção e Documentário: identidades, diferenças e paradoxos, com a participação do cineasta argentino David Oubiña. “O gargalo não está em produzir imagens, mas em exibi-las. Conseguir colocar um filme no mercado e conseguir que ele atinja um patamar de público razoável é entrar num jogo pesado, que exige capital e toda uma série de estratégias de marketing próprias a qualquer produto. Isso faz parte da maneira como as pessoas na sociedade de consumo reagem àquilo que lhes é colocado à frente.”


Ismail Xavier é graduado em Comunicação Social, com habilitação em Cinema, pela Escola de Comunicações e Artes da USP; mestre em Teoria Literária pela USP; no doutorado estudou o estilo de Glauber Rocha; tornou-se pós-doutor em Cinema Studies pela Graduate School of Arts and Science, da New York University.


Segundo Lisandro Nogueira, o crítico francês de cinema Jacques Aumont considera que o cinema vive num período difícil, em que tudo que se faz é uma repetição do que já foi feito no passado. O sr. concorda?


Não. Acho muito radical. Dizer que tudo é repetição eu não concordo. Acho que, embora o acúmulo de experiências históricas, o atual estágio da indústria cinematográfica e da indústria cultural, em geral, favorecem a retomada, as repetições, os remakes, uma espécie de rotina ligada aos gêneros mais tradicionais de ficção, mas há ao lado disso uma inovação que muitas vezes se encontra dentro do próprio esquema industrial. Por exemplo, se pegarmos a Rede Globo, que é nosso paradigma de indústria cultural, vemos cineastas muito inteligentes, como Jorge Furtado, que mesmo trabalhando dentro dessa estrutura, foi uma pessoa inovadora no período do final da década de 1990 e início do século 21. Então, seria injusto esquecer esses exemplos e dizer que tudo é repetição, que tudo é o mesmo. Fora do esquema industrial, existem propostas inovadoras, haja vista o documentário brasileiro. É uma experiência de altíssima criatividade, de invenção de linguagem, de discussão de questões das mais variadas e é um exemplo de produção nessa faixa de documentário que não tem precedentes no Brasil. No Brasil, o momento que nós estamos vivendo é um dos mais interessantes, um dos mais ricos. Portanto, não cabe falar em repetição.


O cinema-documentário no Brasil já consegue atingir o grande público ou ainda é acompanhado por público seleto?


Nas salas de cinema ele é seleto, ele atinge menos público do que qualquer um dos grandes sucessos internacionais ou da própria produção brasileira que esteja vinculada a fórmulas de sucesso já consagradas, como é o caso das comédias do Daniel Filho, por exemplo, que é muito competente como realizador desse tipo de cinema para grande público. Os documentários estão no segmento menos visível, mas não estão isolados, pois existe uma grande quantidade de filmes brasileiros de ficção que tem o mesmo público que os documentários. É um público menor, sem dúvida, mas é um público significativo, porque o esquema de comunicação social não é um sistema direto, ele é sempre um sistema de duas etapas. Você tem que atingir formadores de opinião, uma parcela da população e focalizar com maior frequência e competência suas opiniões a respeito do que está ocorrendo no mundo.


Como está a indústria do documentário no Brasil. Hoje, é mais viável fazer cinema-documentário?


Há vários aspectos que estão ajudando a criar esse momento tão feliz. Primeiro, houve uma consolidação das novas técnicas. Então, um documentarista que há 30 anos tinha que fazer seu filme em película, hoje usa o vídeo, a TV Cam, etc. Hoje, os processos de tratamento em cima do material registrado são muito mais acessíveis a qualquer um de nós. Uma pessoa diante de um computador faz muita coisa sozinha, assim como se registra tudo com as câmeras digitais, a ponto de ter se disseminado na vida cotidiana tantos minidocumentários, que todo mundo faz por celular. O problema está noutro ponto, que é viabilizar a exibição do filme. O gargalo não está em produzir imagens, mas em exibi-las, porque aí sim entra em ação os grandes esquemas de distribuição, as grandes corporações, as grandes empresas internacionais. Conseguir colocar um filme no mercado e conseguir que ele atinja um patamar de público razoável é entrar num jogo pesado, que exige capital, exige toda uma série de estratégias de marketing próprias a qualquer produto. Isso faz parte da maneira como as pessoas na sociedade de consumo reagem àquilo que lhes é colocado à frente. O mundo do audiovisual, seja televisão, cinema ou internet, é ainda monopolizado pelos grandes conglomerados.


O estilo ficção continua prevalecendo na indústria do cinema?


Ficção é o carro chefe da indústria do entretenimento. Essa ficção, no caso do Brasil, é apoiada por dois tipos: ou os filmes são comédia, gênero que sempre atraiu mais público, ou são de ação, que focalizam a violência urbana, questões que preocupam a sociedade toda e que captam a experiência social envolvida a gêneros do cinema, como é o caso de “Cidade de Deus”, que fala sobre a guerra do tráfico, ou “Tropa de Elite”. A indústria está funcionando, hoje, na base de poucos grandes sucessos. Mas os poucos filmes de enorme sucesso compensam qualquer prejuízo em outra área. “Avatar” é um bom exemplo, é um filme de ação, tem nova tecnologia, que também é uma nova atração, atores que são celebridades e dão ao espectador ideia de familiaridade e de reconhecimento de alguma coisa que o faça se sentir em casa. Entretenimento é isso, você viaja, mas você quer que haja nessa viagem sempre uma transmissão de conforto e sem a sensação de sair de casa.


O público brasileiro tem maturidade crítica para ter olhar documentarizante em filmes de ficção, de entretenimento?


Depende do filme. Tenho impressão que esse aspecto do “Cidade de Deus” tem sua força. Agora, isso é muito polêmico, porque a ideia de que o filme tem alguns aspectos documentais para na verdade legitimar a maneira como ele está ficcionarizando também faz parte do jogo. O público brasileiro é muito parecido com o público de qualquer lugar do mundo, não dá para distinguir a reação que os brasileiros têm com a maioria dos filmes da reação que o francês ou americano tem, por exemplo. Tenho um amigo que trabalha no Ministério da Cultura da França, ele é responsável por pesquisas de audiência de cinema e uma vez ele fez um livro sobre o tipo padrão de espectadores. Ele começa com isso, mostrando que o tipo padrão de espectador de maior frequência em cinemas hoje é o de um adolescente francês que adora Steven Spielberg e filmes de ficção científica. Não é o cinéfilo que adora (Jean-Luc) Godard ou que gosta de filme antigo. O padrão do público francês hoje é igual ao do público americano e brasileiro.


O cineasta goiano Amarildo Pessoa disse em um dos debates deste Fica que nós, seres humanos, somos bichos que fazem cultura, e que cultura ameaça a natureza. Como o sr. avalia essa afirmação dentro do contexto do festival, que acaba promovendo cultura?


Somos uma espécie que é muito frágil do ponto de vista do seu equipamento corporal, entendido no sentido mais estrito e por razões ligadas à evolução. Não sou especialista para discutir de que maneira se constituiu esse processo de simbolização de linguagem e o processo de trabalho que gerou a cultura, a vida em sociedade, mas isso faz parte da sobrevivência da espécie. Cultura não é nenhum mal. Cultura é constitutiva da espécie, é aquilo sem a qual a espécie não sobreviveria. Se não tivéssemos memória produzida através de mediações como livro ou a própria fala ou outras formas de simbolização não teríamos possibilidade de manter a sobrevivência da espécie. A questão que se desenvolve é que a partir da Revolução Industrial, aliada ao desenvolvimento científico e tecnológico, potencializaram-se os poderes de transformação da natureza. A espécie humana passou a ser capaz de intervir no meio ambiente de uma forma muito mais poderosa, e a natureza passou a ser um objeto que nós usamos para nosso prazer. Agora, ninguém pode negar que existe também a consciência de que ele não é necessário e não é a única via. Mas não concordo com esse tipo de oposição que coloca a natureza como o bem e o homem como o mal, porque há milhares de anos existe no planeta verdadeira carnificina. As espécies animais se deglutem umas às outras. Não existe uma harmonia que o homem vem quebrar, o que existe é luta por espaço até entre vegetais.


O sr. disse que viver em sociedade é uma forma de criar personagem. O que quis dizer?


O americano Ervin Goffman, no livro “A apresentação do eu na vida cotidiana”, diz que quando se está em sociedade você está tendo uma performance na qual você se põe como alguém objeto de olhares, que está consciente desses olhares e está atuando para esses olhares. Você é criador de imagens, todos nós criamos imagens. Eu só dei uma deslocada e disse que nós criamos personagens. Cada um de nós somos muitos personagens. Temos maneiras diferentes de ser, conforme o lugar em que estamos. Você em família é uma pessoa, com os amigos é outra, no trabalho é outra, dependendo da situação não só porque você assim o é, mas porque você está respondendo a um tipo de olhar que é dirigido a você. É na interação que se dá a criação de personagens, que tem muito a ver com as expectativas dos outros. Se o outro tem uma expectativa de agressão, você se prepara como um personagem que vai responder a isso, ou seja, não somos uma essência só, nós vamos compondo maneiras de ser conforme as situações em que a vida nos coloca. Há certa multiplicidade dentro de cada um de nós e essa multiplicidade se manifesta seletivamente conforme a ocasião.


Se somos personagens e interagimos como personagens nós vivemos em filmes?


(risos) A questão do teatro do cotidiano tem aumentado, porque à medida que você vai tendo consciência disso, ao invés de isso ser inibido, vai sendo potencializado. Hoje, você sabe que em cada lugar que você estiver haverá um celular que poderá estar te filmando, hoje no mundo sempre há alguém produzindo imagens, e as pessoas vão se acostumando com isso. Você já tem uma disseminação por toda a sociedade desse processo. Hoje qualquer pessoa que vive numa cidade está habituada a ideia de que existe uma coisa que se chama a imagem dela para os outros. Quando há aparelhos que multiplicam, captam e registram imagens a qualquer momento, isso vai aumentando a consciência das pessoas e vai aumentando o esforço no sentido de fazer o jogo. Esse jogo existe e é muito difícil não estar enredado num jogo que tem a ver com essa teatralidade. 

* Sara Mohn é jornalista no jornal Opção

2 Comentários

João Carlos Barreto ´PUC-Go disse...

Professor Lisandro, é a primeira vez que participo comentando no seu blog. O professor Xavier comete um grande equívoco. O professor Aumont afirma apenas que no cinema clássico, industrial, como afirma Xavier, não há novidades. Ele acerta quando diz isso de forma definitiva. Ele não fala em vanguardas. E mesmo as vanguardas estão velhas.

Sarah Mohn disse...

É uma honra ver a entrevista que fiz publicada no seu blog, professor!
É estimulante.
Obrigada

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