Véronique decide
Fabricio Cordeiro*
Kieslowski abre o filme que o lançou mundialmente com a imagem invertida do horizonte de uma cidade. Uma narração feminina se refere às luzes dos prédios como se fossem estrelas, e o céu cheio de nuvens como se fosse névoa. Parece existir, assim, uma rápida noção de um duplo para o mundo, ou as diferentes perspectivas que podem surgir diante de um olhar. Câmera de cabeça pra baixo, imagem certeira, novo sentido.
Tanto o título quanto a breve introdução de A Dupla Vida de Véronique já explicitam o interesse de Krzysztof Kieslowski pela idéia do duplo e da múltipla realidade (que aparece mais de uma vez em sua obra, como em capítulos da série Decálogo e em A Fraternidade É Vermelha). A “dupla vida” chega a distanciar-se da metáfora, com Kieslowski concretizando o mito germânico do doppelgänger, para a agonia existencial de Weronika e Véronique, aparentemente versões polonesa e francesa de uma mesma pessoa. As duas moças não tem noção da existência uma da outra, mas reconhecem algum tipo de estranha ligação pessoal em suas vidas, uma ligação capaz de exercer importante papel emocional e complementar, a ponto de influenciarem decisões.
Weronika e Véronique são vivamente interpretadas por Irène Jacob, atriz de beleza desfolegante. Kieslowski a filma com um erotismo respeitoso, sex appeal instantâneo na maioria de suas cenas. O tempo deveria parar toda vez que Jacob se despisse, e a sensualidade agradeceria. Mais importante, Jacob desenvolve atração, muito mais relacionada a jeitos e modos do que beleza, e daí ela tira atuação e presença difíceis de eliminar da memória, principalmente quando imersa no colorido melancólico de Kieslowski, mestre das cores primárias. As duas personagens são conectadas não apenas pelas cores, mas sobretudo por música via composições de estilo clássico por Zbigniew Preisner, colaborador habitual do cineasta. De paralisar a alma.
Curioso observar como Weronika e Véronique aparecem com diferentes pares românticos durante o filme, sem exatamente transparecer um relacionamento sério; numa sequência digna de Antonioni, a francesa Véronique vai ao encontro de um homem depois de desvendar elaborada estratégia de contato envolvendo fitas de áudio. São garotos e homens que se envolvem com elas, mas o envolvimento mais significativo das duas parece existir entre suas identidades replicadas. O sexo é masculino e feminino, mas o sentimento é feminino e feminino.
Munido do raro olhar que Kieslowski tinha para filmar, A Dupla Vida de Véronique agrega um infinito de imagens belíssimas. No entanto, por muitas vezes o filme age como se tivesse um mistério metafísico a ser desvendado. Impressão é de que um tom mais pesado poderia resultar em filme medonho, e ainda assim maravilhoso de ser visto, pois há um delicioso flerte do cineasta com o Cinema fantástico.
Temos aqui esse polonês vidrado nas diferentes formas de se observar o mundo, encontrando representações do duplo em espelhos, pequenas esferas de vidro, janelas ou qualquer coisa que se localize entre a câmera e a imagem a ser capturada. De certo modo, parece olhar para o próprio Cinema como uma espécie de duplicador, não menos intenso e complementar para (nossas) vidas do que a relação entre Weronika e Véronique.
* Fabricio Cordeiro é membro do grupo "Cine-UFG, debates".
3 Comentários
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Começou a mostra Kieslowski no Cine-UFG. SEssões às 12h e 17:30h. Na quarta-feira, dia 11, depois após a sessão das 17:30h com Fabricio Cordeiro (autor do texto), Carolina Soares e Adele Lazarin.
Todos estão convidados.
Lisandro.
Em seguida, o Cine-UFG apresenta o festival Perro Loco - Festival Latino Americano do Cinema Universitário. A partir de 24 de agosto.
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