Kieslowski: a necessidade do outro: afetos e compaixão.

A NECESSIDADE DO OUTRO

Rafael Carneiro Rocha*

Os filmes mais conhecidos do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, falecido em 1996, fazem parte de séries temáticas sobre os dez mandamentos bíblicos e as cores e ideais da Revolução Francesa. O décalogo e A Trilogia das Cores se expandem em diversas obras que serão exibidas no Cine UFG a partir do dia 8 de agosto. 

Nas séries de Kieslowski, a relação entre os filmes é mais de necessidade do que de cumprimento sequencial de uma narrativa. O filme de Kieslowski precisa do outro que se segue, como se eles fossem envoltos em laços fraternos. Um filme pode ser pouco para esgotar o mistério da alteridade. Ainda que sejam obras fechadas em si mesmas, A liberdade é azul e A igualdade é branca  precisaram de instantes de um outro filme para que a vida dos seus personagens completasse um sentido. No desfecho de A fraternidade é vermelha, protagonistas dos filmes anteriores da Trilogia das Cores surgem repentinamente como coadjuvantes que participam do mesmo drama da personagem principal, todos eles sobreviventes de um naufrágio. Na vida que segue, nada é mais necessário do que a alteridade.

Mesmo um filme de Kieslowski que não faz parte de uma série, como é o caso daquele com o sugestivo título Sem Fim, se faz ressonante, por exemplo, em A liberdade é azul, no drama repetido da jovem viúva em processo de luto. Aparentemente, não há crise maior do que a ausência do outro. Em seus filmes, a gravidade do desencontro é potencializada pela grandeza da tela cinematográfica. No mesmo quadro, entre pessoas que vão e que vem, a fatalidade da existência que se faz mise èn scene pode impedir o face a face de personagens que dependem da alteridade. Em A dupla vida de Veronique, as duas protagonistas vividas pela atriz  Irene Jacob dividem a mesma cena, mas são impossibilitadas do encontro.

No cinema de Kieslowski, temas e estruturas se repetem, mas sem prejuízo do desgaste, uma vez que a alteridade é uma chave criativa sempre a se desdobrar generosamente.

Filmes como Amador, A cicatriz e Acaso acompanham dramas individuais situados num mesmo contexto político, aquele da Polônia socialista que agonizava no fim do século passado. Porém, a narrativa humana não faz alegoria ingênua com a crise política. A riqueza da narrativa humana não poderia se encerrar pelo determinismo. Em Acaso, o protagonista é contemplado a partir de outras possibilidades, que se desdobram em três. Ele pode se encerrar bem situado no Partido Comunista, ou escondido no engajamento comunitário, ou ainda como um conformado pai de família burguês.

A câmera de Kieslowski sonda alteridades, numa profissão de fé que não se encerra numa única obra de começo, meio e fim. Pode ser que determinado filme se encerre num impasse, ou numa dúvida. Mas a promessa do encontro com o outro deixou tanta beleza pelo caminho que é bem capaz dela ser cumprida para além do filme, na alteridade definitiva de nossas próprias vidas.

* publicado no Jornal O Popular: 11 de agosto.