domingo, 1 de agosto de 2010

A Nouvelle Vague inventou a mulher -

“A Nouvelle Vague inventou a mulher” – 

entrevista com diretor do filme sobre Jean-Luc Godard e François Truffaut

Por Letícia González*

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague” conta a história inseparável de Jean-Luc e François, cuja amizade serviu de espinha dorsal para o movimento que mudou o cinema. As histórias, assim como as mulheres, se tornaram mais reais pelos olhos desses jovens franceses que tratavam o cinema como a pintura e são revisitadas hoje, mais de cinquenta anos depois, com lançamentos, nova biografia e uma volta à sua estética.
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Godard (à esq.) caminha com os atores de seu primeiro filme, "Acossado"
Na moda, o mergulho retrô trouxe de volta o look marinheiro, usado por Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo em “Acossado”, de Godard. Os cabelos curtinhos da atriz americana, cortados “à la garçonne” (à moda menino, em tradução livre) fizeram o rosto de Seberg sobressair na tela e viraram febre na época. Hoje, o corte virou sinônimo de estilo para quem tem traços delicados e foi adotado por atrizes como Carey Mulligan e Michelle Williams. Outras peças ícones desse tempo, como as blusas com listras, os vestidos tomara-que-caia e as calças corsário de cintura alta reforçam uma sensação cada vez mais mais nítida de que o look Nouvelle Vague está de volta.
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Emmanuel Laurent, diretor de "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague", veio ao Brasil para o lançamento do filme
No cinema, quando o assunto parecia esgotado, o documentarista Emmanuel Laurent (foto ao lado) propôs parceria ao biógrafo* dos dois maiores nomes do movimento e fez um filme sobre o lado humano da sua parceria. Conversamos com o diretor sobre esse mergulho nos arquivos e na vida pessoal dos cineastas franceses, que se tornaram amigos com 17 e 19 anos (Godard era dois anos mais velho que Truffaut), e sobre o papel das mulheres que iluminaram os roteiros e a trajetória de cada um deles.


Marie Claire - Por que fazer um filme apenas sobre François Truffaut e Jean-Luc Godard?
Emmanuel Laurent - Eliminamos os outros não porque os achávamos maus cineastas, mas porque havia uma história forte com os dois. Não havíamos visto a história da Nouvelle Vague através deles, que carregaram o movimento. É uma história humana e dramática muito forte, com a carreira, o ator entre eles, Jean-Pierre Léaud [Léaud era o alter ego de Truffaut e interpretou em vários de seus filmes antes de passar a trabalhar também nos longas de Godard]. Com a pesquisa, nos damos conta até que ponto Truffaut influenciou Godard e como Godard roubou, no bom sentido do termo, coisas de Truffaut.


MC - Como era a mulher vista pelos olhos da Nouvelle Vague?
EL -
Ela foi inventada pela Nouvelle Vague! A mulher francesa, e as outras também, foram inventadas pelo movimento. Na “Cahiers du Cinéma” [revista de crítica cinematográfica, onde Truffaut e Godard trabalharam antes de se tornarem diretores], todos adoraram imediatamente Brigitte Bardot, que era considerada uma mulher livre, que não se penteava (ou que fazia pose de despenteada muito bem). Ela nunca esteve tão bem quanto no filme de Godard, “O Desprezo”. Truffaut dizia “Não é difícil fazer um filme. Basta pegar uma mulher bonita e colocar a câmera em frente”. Na Nouvelle Vague, se fala pela primeira vez da mulher de maneira, como dizer, moderna, e não romântica. Não se trata das mulheres em um universo à parte. Elas são ativas, independentes. Em todos os filmes do movimento vemos mulheres que também estão em ruptura com a imagem que se tinha delas. Realmente, elas eram suas principais fonte de inspiração.
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Jean-Pierre Léaud e Claude Jade em cena de "Beijos Roubados, de Truffaut

MC - Qual foi a influência das mulheres reais para Godard?
EL -
O primeiro filme dele ["Acossado"], com Jean Seberg, era sobre ela, sobre o rosto dela. Ele a filmou maravilhosamente bem e poderia tê-la filmado eternamente. Em seguida, conheceu sua mulher, Anna Karina, que era dinamarquesa e falava muito mal francês. Ele a colocou em “Viver a Vida”, que também se focou nela. A partir daí, todos os seus trabalhos são uma declaração de amor a Anna Karina, com quem Godard se casou muito cedo.

MC - E quanto a Truffaut?
EL  -
Ele era muito intimidado por Jeanne Moreau em “Jules e Jim – Uma mulher para dois”. Acredito que uma produção se decidia muito em função da mulher que ele filmava. Se inspirava consideravelmente pela própria atriz, e o papel mudava muito de acordo com quem ela era. “Um só Pecado” é um poema de amor para Françoise Dorléac, pela maneira como ele a filmava. Ele a seduzia com a câmera. E é por isso que elas são tão vivas, pois não interpretam um papel que está escrito. Elas tomam partido na elaboração das personagem, enquanto o filme se faz, ao contrário do que acontecia com os cineastas anteriores.

MC - Havia muitos envolvimentos entre eles e as atrizes?
EL -
Era raro que eles não se apaixonassem pelas atrizes. Truffaut foi muito apaixonado por Isabelle Adjani [que ele filmou em “A história de Adèle H."], mas acho que foi um amor mal sucedido. Com Claude Jade, ele já tinha preparado todos os papéis para se casarem e, no último momento, não aconteceu. Acho que há poucos filmes em que Truffaut não se apaixonou pela atriz pricipal de tanto observá-las e de vê-las em movimento. Ele dizia “as mulheres que me dizem ‘não’ ficam ainda mais bonitas”. Só que cada vez mais as mulheres lhe diziam “sim”.
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Truffaut durante as filmagens de "A Noite Americana", de 1973

MC - Godard e Truffaut tiveram histórias de vida diferentes e filmavam cada um à sua maneira até que, um dia, suas diferenças se tornaram irreconciliáveis. Na sua opinião, o que os mantinha próximos?
EL -
Sem dúvida o amor pelo cinema. Eles se conheceram indo a festivais de filmes, haviam se encontrado em um festival em Biarritz [no sul da França], e depois entraram praticamente juntos na “Cahiers du Cinéma”, no início dos anos 50. Lá passaram sete ou oito anos falando de cinema diariamente, juntos o tempo todo, indo às sessões, dissecando os filmes, escrevendo sobre eles. Eles descobriram [Ingmar] Bergman ao mesmo tempo e admiravam [Jean] Renoir e [Roberto] Rosselini, de quem Truffaut foi assistente.


MC - A Nouvelle Vague trouxe um sopro novo à arte do cinema nos anos 60. Você vê uma força como essa acontecendo em algum lugar do mundo contemporâneo?
EL -
Sim. A francesa Claire Denis é uma cineasta execpcional, muito forte. Aprendeu com a Nouvelle Vague, mas tem o seu traço pessoal. Não faz parte de um grupo, não tem a sorte de ser protegida, é um pouco duro. Além dela, não vejo muito cineastas que tenham essa capacidade de se ater à realidade do que se passa hoje. E há documentaristas muito bons [risos]. Não falo de mim, mas de outros, como Frederick Wiseman, dos EUA, por exemplo. O documentário trouxe muita liberdade ao cinema porque ninguém se importava com ele.
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Godard, que apresentou seu "Film Socialisme" no Festival de Cannes deste ano, ainda jovem, em set de filmagem
MC - Você tem uma preferêcia entre os dois, Truffaut ou Godard?
EL -
Sim. Francamente, sou muito mais sensível aos filmes do Truffaut. Me falam mais, me tocam mais. É por eles que tive vontade de fazer cinema. Jean-Pierre Léaud foi como um irmão mais velho. Godard me liberou muito quando aprendi a fazer montagem, ele era um modelo. Suas invenções no campo da montagem, sua filosofia, seu sentido de provocação me divertem, mas não mais que isso. Com Truffaut, tínhamos impressão de que os personagens eram eles mesmos sobre a tela, por causa da capacidade incrível que tinha de filmar crianças e mulheres. “O garoto selvagem” é bonito como nenhum outro. É o filme que inspirou Steven Spielberg. É um filme maravilhoso sobre a infância, ele certamente entendeu algo ali.

*Roteirista do filme e parceiro de Laurent, o historiador Antoine de Baecque lançou em março na França a biografia “Jean-Luc Godard” (Ed. Grasset). O diretor não autorizou nem deu entrevistas a Baecque, mas também não vai tentar impedir sua distribuição, como disse em entrevista à revista Les Inrockuptibles.

* revista Marie Claire - maio de 2010.

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