terça-feira, 3 de agosto de 2010

Tristeza x depressão: como colocar um esparadrapo na dor.

"O homem não aceita mais ficar triste"

Adriana Prado*

Uma das maiores autoridades brasileiras em depressão, o médico Miguel Chalub diz que, hoje, qualquer tristeza é tratada como doença psiquiátrica. E que prefere-se recorrer aos remédios a encarar o sofrimento . Ele afirma que muitos médicos se rendem aos laboratórios farmacêuticos e Indicam antidepressivos sem necessidade.
 
A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030 – atualmente, 121 milhões de pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub, 70 anos, há um certo exagero nessas contas.

Ele defende que tanto os pacientes quanto os médicos estão confundindo tristeza com depressão. “Não se pode mais ficar triste, entediado, porque isso é imediatamente transformado em depressão”, 


"Hoje, brigar com o marido, sair do emprego, qualquer motivo é válido para se dizer deprimido. Mas o sofrimento não significa depressão"

Professor das universidades Federal (UFRJ) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele afirma que os psiquiatras são os que menos receitam antidepressivos, porque estão mais preparados para reconhecer as diferenças entre a “tristeza normal e a patológica”. Mas o despreparo dos demais especialistas não seria o único motivo do que o médico chama de “medicalização da tristeza”. Muitos profissionais se deixam levar pelo lobby da indústria farmacêutica. “Os laboratórios pagam passagens, almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a fazer esse jogo.”


"Há a tendência de achar que o medicamento vai corrigir
qualquer distorção humana. É a busca pela pílula da felicidade"


Por que tantas previsões alarmantes sobre o aumento da depressão no mundo?

Porque estão sendo computadas situações humanas de luto, de tristeza, de aborrecimento, de tédio. Não se pode mais ficar entediado, aborrecido, chateado, porque isso é imediatamente transformado em depressão. É a medicalização de uma condição humana, a tristeza. É transformar um sentimento normal, que todos nós devemos ter, dependendo das situações, numa entidade patológica.


Por que isso aconteceu?


A palavra depressão passou a ter dois sentidos. Tradicionalmente, designava um estado mental específico, quando a pessoa estava triste, mas com uma tristeza profunda, vivida no corpo. A própria postura mostrava isso. Ela não ficava ereta, como se tivesse um peso sobre as costas. E havia também os sintomas físicos. O aparelho digestivo não funcionava bem, a pele ficava mais espessa. Mas, nos últimos anos, a palavra depressão começou a ser usada para designar um estado humano normal, o da tristeza. Há situações em que, se não ficarmos tristes,  é um problema – como quando se perde um ente querido. Mas o homem não aceita mais sentir coisas que são humanas, como a tristeza.


A que se deve essa mudança?


Primeiro, a uma busca pela felicidade. Qualquer coisa que possa atrapalhá-la tem que ser chamada de doença, porque, aí, justifica: “Eu não sou feliz porque estou doente, não porque fiz opções erradas.” Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo, à tendência de achar que o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a busca pela pílula da felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.


O que diferencia a tristeza normal da patológica?

Miguel Chalub -
A intensidade. A tristeza patológica é muito mais intensa. A normal é um estado de espírito. Além disso, a patológica é longa.

Istoé -

Quanto tempo é normal ficar triste após a morte de um ente querido, por exemplo?


Não dá para estabelecer um tempo. O importante é que a tristeza vai diminuindo.  Se for assim, é normal. A pessoa tem que ir retomando sua vida. Os próprios mecanismos sociais ajudam nisso. Por que tem missa de sétimo dia? Para ajudar a pessoa a ir se desonerando daquilo.


Quais são os sintomas físicos ligados à depressão?

Miguel Chalub -
Aperto no peito, dificuldade de se movimentar, a pessoa só quer ficar deitada, dificuldade de cuidar de si próprio, da higiene corporal. Na tristeza normal, pode acontecer isso por um ou dois dias, mas, depois, passa. Na patológica, fica nas entranhas.


Ainda há preconceito com quem tem depressão?


Não. É o contrário. A vulgarização da depressão diminuiu o preconceito, mas criou outro problema, que é essa doença inexistente. Antes, a pessoa com depressão era vista como fraca. Hoje, as pessoas dizem que estão deprimidas com a maior naturalidade. Não se fica mais triste. Se brigar com o marido, se sair do emprego, qualquer motivo é válido para se dizer deprimido. Pode até ser que alguém fique realmente com depressão, mas, em geral, fica-se triste. O sofrimento não significa depressão. E não justifica o uso de medicamentos.


Os médicos não deveriam entender este processo?


Os médicos não estão isentos da ideologia vigente. O que acontece é: você vem ao meu consultório. Eu acho que você não está deprimido, que está só passando por uma situação difícil. Então, proponho que você faça um acompanhamento psicoterápico. Você não fica satisfeito e procura outro médico, que receita um antidepressivo. Ele é o moderno, eu sou o bobão. Para não ser o bobão, eu receito um antidepressivo logo. É uma coisa inconsciente.


Inconsciente?


Os médicos querem corresponder à demanda. Senão, o paciente sairá achando que não foi bem atendido. Receitando um antidepressivo, eles correspondem à demanda, porque a pessoa quer ser enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos laboratórios. Eles bombardeiam os médicos.


A ponto de influenciar o comportamento deles?


Se for um médico com boa formação em psiquiatria, mesmo que não seja psiquiatra, ele saberá rejeitar isso, mas outros não conseguem. Eles se baseiam nos folhetos do laboratório. Não é por má-fé. Os laboratórios proporcionam muitas coisas. Pagam passagens, almoços, dão brindes. O médico, sem perceber, começa a fazer o jogo. Porque me pagaram uma passagem aérea ou me deram um laptop, acabo receitando o que eles estão querendo.


O médico se vende?


Sim. Por isso é que há uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária proibindo os laboratórios de dar brindes aos médicos. Nenhum laboratório suborna médico, não que eu saiba, nem vai chegar aqui e dizer: “Se você receitar meu remédio, vou lhe dar uma mensalidade.” Mas eles fazem esse tipo de coisa, que é subliminar. O médico acaba tão envolvido quanto se estivesse recebendo um suborno realmente.


Esse lobby é capaz de fazer um médico receitar certo remédio?


Aí é a demanda e a lei do menor esforço. Se o paciente chegar se queixando de insônia, por exemplo, o que o médico deveria fazer era ensiná-lo como dormir. Ou seja, aconselhar a tomar um banho morno, um copo de leite morno, por exemplo. Mas é mais fácil, tanto para o paciente quanto para o médico, receitar um remédio para dormir.


Os demais especialistas também receitam remédios psiquiátricos, não?


Quem mais receita antidepressivos não são os psiquiatras, são os demais especialistas. Os psiquiatras têm uma formação para perceber que primeiro é preciso ajudar a pessoa a entender o que está se passando com ela e depois, se for uma depressão mesmo, medicar. Agora, os outros, não querem ouvir. O paciente diz: “Estou triste.” O médico responde: “Pois não”, e receita o remédio. Brinco dizendo o seguinte: se você for a um clínico, relate só o problema clínico. Dor aqui, dor ali. Não fale que está chateado, senão vai sair com um antidepressivo. É algo que precisamos denunciar.


Os psiquiatras deveriam ser os únicos autorizados a receitar esse tipo de medicamento?


Não acho que seja motivo para isso. Os outros especialistas têm capacidade de receitar, desde que não entrem nessa falácia, nesse engodo.


Mas os demais especialistas estão capacitados para receitar essas drogas?


Em geral, não.


É comum o paciente chegar ao consultório com um “diagnóstico” pronto?

É muito comum. Uma vez chegou um paciente aqui que se apresentou assim: “João da Silva, bipolar.” Isso é uma apresentação que se faça? Quase respondi: “Miguel Chalub, unipolar.” É uma distorção muito séria.


O acesso à informação, nesse sentido, tem um lado ruim?


A internet é uma faca de dois gumes. É bom que a pessoa se informe. A época em que o médico era o senhor absoluto acabou. Mas a informação via Google ainda é precária. Muitas vezes, a depressão, por exemplo, é ansiedade. Mas as pessoas não querem conviver com a ansiedade, que é uma coisa desagradável, mas que também faz parte da nossa humanidade. Tenho uma paciente que disse: “Ando com um ansiolítico na bolsa. Saí de casa, me aborreci, coloco ele para dentro.” Então é isso? Se alguém me fala algo desagradável, eu tomo um ansiolítico? Isso é uma verdadeira amortização das coisas.


O que causa a depressão?


Esse é um dos grandes mistérios da medicina. A gente não sabe por que as pessoas ficam deprimidas. O mecanismo é conhecido, está ligado a uma substância chamada serotonina, mas o que o desencadeia, não sabemos. Há teorias, ligadas à infância, a perdas muito precoces, verdadeiras ou até imaginárias – como a criança que fica aterrorizada achando que vai perder os pais. As raízes da depressão estão na infância. Os acontecimentos atuais não levam à depressão verdadeira, só muito raramente. Justamente o contrário do que se imagina.

Mas mexer na infância é muito doloroso. Não tem remédio para isso. Precisa de terapia, de análise, mas as pessoas não querem fazer, não querem mexer nas feridas. Então é melhor colocar um esparadrapo, para não ficar doendo, e pronto. É a solução mais fácil.

O antidepressivo é sempre necessário contra a depressão?


Quando é depressão mesmo, tem que ter remédio.


Há quem diga que hoje a moda é ter um psiquiatra, não um analista. O que sr. acha disso?


As pessoas estão desamparadas. Desamparo é uma condição humana, mas temos que enfrentá-lo, assim como o fracasso, a solidão, o isolamento. Não buscar psiquiatras e remédios. Em algum momento, isso pode ficar tão sério, tão agudo, que a pessoa pode  precisar de uma ajuda, mas para que a ensinem a enfrentar a situação. Ensina-me a viver, como no filme. Não é me dar pílulas, para eu ficar amortecido.


O que é felicidade para o sr.?


A OMS tem uma definição de saúde muito curiosa: a saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social. Essa é a definição de felicidade, não de saúde.
Felicidade, para mim, é estar bem consigo mesmo e com o outro. Estar bem consigo mesmo é também aceitar limitações, sofrimento, incompetências, fracassos. Ou seja, felicidade também é ficar triste de vez em quando.

* publicada na revista Isto é em maio de 2010.
 

4 Comentários

Elaine Camargo disse...

Eu cansei desse papo de médico querendo dizer que a gente precisa disso ou daquilo. Esse Miguel Chalub é muito corajoso. Uma entrevista franca e firme.

Flávia disse...

Parabéns pela iniciativa de divulgar este texto tão esclarecedor e importante nos dias de hoje

Guaracy Coelho disse...

O Dr. Miguel é um sábio. Além do mais é corajoso porque vai contra todas as correntes. Entrevista forte e cheia de conselhos úteis.

Anônimo disse...

"É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não"
Vinícius de Moraes/Baden Powell

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