sábado, 7 de agosto de 2010

"Uma noite em 67", (em cartaz), por Maria Rita Kehl.

 EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

Maria Rita Kehl*


"Eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora, agora."
(Fernando Pessoa)


Se o sonho realiza desejos, o que leva alguém a sonhar com períodos difíceis do passado? Na Interpretação dos Sonhos, Freud formula a pergunta apenas para apresentar sua conclusão: "Naqueles tempos duros eu possuía algo melhor que tudo: a juventude." Paradoxal, o desejo de juventude. Só a desejamos depois de perdê-la para sempre.

"Tenho saudades do corpo jovem", diz Caetano, no presente, ao entrevistador do documentário Uma Noite em 1967 que lhe pergunta se tem saudades da época dos Festivais da MPB. "Só sinto falta daquela alegria que vinha do corpo." Caetano é o único que confessa nostalgia. Os outros compositores, entrevistados no filme que estreou em São Paulo na semana passada, não falam com saudades dos festivais da TV Record. "Eu estava apavorado naquela final", revela Gilberto Gil. "Não sei como as câmeras captaram a imagem daquele fantasma que eu era no palco." Chico Buarque, aos 23 anos, sentia-se velho diante dos baianos por conta do smoking careta que tinha alugado para usar no palco. E Edu Lobo, o vencedor da noite, traz lembranças de uma fase angustiada: "Naquele tempo eu vivia preocupado. Não sabia se ia dar certo na carreira de compositor." A tenra idade pesa.

O filme de Ricardo Calil e Renato Terra tem sido bem recebido por quem tem hoje mais de 50 anos. Desperta saudades. E assombro: de onde surgiu aquela espantosa geração de meninos compositores? Como explicar a concentração de poetas e músicos talentosos revelados nos quatro grandes festivais, desde a Excelsior de 1965 até o primeiro da Globo, em 1968? Eles fizeram, mais que qualquer escritor, a educação sentimental da minha geração.

Pena que Uma Noite em 1967 seja um documentário tão preguiçoso. Tendo em mãos o precioso arquivo da última noite do festival daquele ano, os diretores contentaram-se em intercalar as cenas gravadas ao vivo no Teatro Paramount em São Paulo com as entrevistas atuais concedidas por músicos, organizadores e jornalistas presentes na premiação. Faltam informações sobre o evento, como, por exemplo, o nome dos outros finalistas e das outras canções concorrentes. Entre 12 selecionados, o filme concentra-se nos 5 vencedores, mais a cena completa do massacre público de Sérgio Ricardo, politicamente incorretíssimo para os padrões atuais. Não há nenhuma pesquisa sobre os festivais anteriores, sobre o Brasil da época, sobre de onde vieram os vencedores de 67. De que fontes brotaram as águas que explodiram em tamanha fervura?
Mas as imagens da época têm o mérito de revelar como estamos distantes da década de 1960. Tudo era um pouco mais pobre, mais chinfrim, muito mais improvisado e também mais vivo e espontâneo do que o que veio a seguir. A plateia que lotava o teatro além dos limites de segurança era indomável.

Os aplausos e principalmente as vaias eram captados por um microfone pendurado pelo fio sobre as cabeças do público. A qualidade do som era sofrível; as canções, os arranjos e a interpretação, empolgantes. Nunca mais a televisão brasileira exibiu uma mistura tão bem-sucedida e tão inesperada de genialidade, diante da qual o espectador contemporâneo nem liga para a precariedade da técnica.

E como os corpos eram diferentes! Todos magérrimos sem nunca ter passado por uma academia. Ombros estreitos, braços finos. Magreza da idade. Quem se importava com isso? A plateia parecia estar ali para fazer política onde ainda não era proibido. Tudo era pretexto para se marcar posição. Tratava-se de apoiar com fervor a melhor "música de festival".
A vencedora Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, trouxe a combinação perfeita para empolgar o público. "Era um, era dois, era cem": diante da multidão o violeiro deve dizer logo o que tem pra contar. Chegou seu momento. O tom desafiador, a alegoria sobre "a morte ao redor, mundo inteiro", o desejo de "ver o tempo mudado" - e mais a viola como objeto perdido, evocado pelo "quem me dera agora" do refrão: tudo fazia de Ponteio o meio ideal para promover um gozo estético e político, dentro dos limites tolerados pelo regime e pela direção da TV Record. A vitória de Ponteio parecia a realização do "dia que virá" aqui e agora, transmitida ao vivo pela tevê.

A revelação mais importante do documentário é que, na verdade, nada era tão espontâneo quanto parecia. Assim como a passeata nacionalista contra o uso da guitarra na MPB foi organizada pela própria emissora como estratégia de marketing para promover o festival, o diretor Paulo Machado de Carvalho Filho revela em entrevista que também as vaias e a radicalização da torcida nas finais foram planejados para fazer da disputa um grande acontecimento. Era uma estratégia selvagem de marketing. Nós éramos os figurantes vestidos de leões na arena romana armada pela direção artística da emissora - verdadeiros inocentes úteis da incipiente indústria do espetáculo no Brasil.

Então, a partir de 1968 a TV se profissionalizou e a Globo acabou com a farra. Como se prenunciasse o AI-5, que calou e exilou os melhores artistas, a emissora que viria a se tornar a queridinha dos militares engessou o formato, nos solenes e tediosos Festivais Internacionais da Canção. Que mesmo assim nos deram a belíssima Sabiá. Mas desconfio que Chico e Tom não precisavam do pretexto de nenhum festival para compor a mais bela canção do exílio que o País já mereceu.


3 Comentários

Lisandro Nogueira disse...

Maria Rita escreveu esse texto hoje no Estadão. O filme vale muito pelo registro das imagens; revela a passagem inexorável do tempo; humaniza os "rapazes" da mpb.

De todos que fizeram o balanço da época, gostei mais do MPB4: lúcidos, atuantes, segurando a "onda tímida do Chico Buarque" - Ah não fossem os rapazes do MPB4!! Chico não seria o compositor/cantor tão celebrado.

Chico, com o tempo, ficou indiferente. Parece não gostar da sua obra daquele período - é ruim mesmo: "A banda", "Roda Viva". Demonstrou enfado com o passado. Ele tem certa razão. Mas não precisa ser tão indiferente.

Edu Lobo: ressentido!! Queria ser o Quincy Jones da música brasileira. Não conseguiu até hoje resolver sua falta de rumo depois dos festivias dos anos 60.

Caetano: preocupado com o corpo, nostálgico dos "jatos fortes" da urina. Mas revelou aquilo q é patente: "Alegria, alegria" é uma marcha bem portuguesa. A letra é melhor que a música.

Giberto Gil: sempre "existencialista". O mais interessado no balanço. O mais sensível com o Tempo.

MPB4: precioso!!

Vou ver o documentário novamente. Outra coisa: é pedir muito para Roberto Carlos falar alguma coisa. Ele canta muito e não precisa falar (rs, rs).

Vou ver novamente o documentário.

Anônimo disse...

Crítico de cinema que nunca fez um filme, crítico de música que não sabe o que é uma nota musical, crítico de esporte que não sabe o que é um polichinelo, crítico de arte que nunca viu um pincel... Hajam criticos!

Será que existe crítico de crítico?

Criticar é muito fácil o Chico, Edu, Caetano, Gil, Roberto... E suas obras passadas. aí já é demais.
Aiui
O que seria do MPB4 se não fosse o chico? e vice-versa: seriam o que são!
Se isso, se aquilo...

Anônimo disse...

não ví a fala do Caetano dessa forma e sim que ele é super resolvido e sente falta sim da agilidade corporal que a juventude permite.

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