A COMÉDIA DO PODER
Entrevista de Luiz Carlos Merten*
A Comédia do Poder, filme de Claude Chabrol , traz algumas considerações interessantes sobre o mundo contemporâneo. A principal delas diz respeito à corrupção, tema não estranho para nós - e nem para os franceses. Aliás, infelizmente, não existe sociedade que possa se orgulhar de haver se livrado dessa praga. A não ser as autoritárias, que não permitem noticiá-la e, assim, procedem como o doente que quebra o termômetro para eliminar a febre.
Através da interpretação magnífica de Isabelle Huppert como a juíza Jeanne, Chabrol propõe uma descida vertical aos porões da sociedade francesa (e qualquer outra, no fundo), aquele nicho onde empresários e políticos conversam, convergem e fazem seus bons negócios.
O interessante é o tom nada moralista que domina tal investigação, sob a forma de parábola moderna. Jeanne parece uma dessas incorruptíveis de filme americano, disposta a encontrar a verdade pelo simples prazer de sanear o sistema e vê-lo funcionar de maneira perfeita. Mas, assim descrito, esse seria um filme de Hollywood, a começar pela crença acrítica na "perfeição do sistema". Chabrol é outro tipo de gente. Vem lá de trás, da nouvelle vague. Conhece os homens, suas virtudes e seus vícios, fios em geral enredados como num conto de Machado de Assis. Jamais faria o papel de um sepulcro caiado, de um santarrão udenista.
Dessa forma, prefere contar sua história da maneira límpida que o caracteriza e, ao mesmo tempo, deixa que a personagem central vá insinuando pelo caminho a parte que lhe cabe naquele latifúndio. Pois a campeã da justiça Jeanne também toma parte no jogo, embora não de maneira óbvia.
Quais são as suas motivações?, será a pergunta do espectador arguto. Mas a trajetória pessoal de Jeanne talvez seja o que menos interessa em A Comédia do Poder. Balzac afirmava ter aprendido muita coisa útil quando trabalhou em cartórios, pois por eles passa o esgoto da sociedade, dizia. Aqui também, nessa junção entre o mundo das finanças e o da política, desvenda-se a estrutura mesma da sociedade contemporânea. E, como dizia Balzac, ela não parece cheirar muito bem. A corrupção faria parte do jogo do poder; não lhe é estranha e nem acessória, independentemente de governos e indivíduos bem ou mal-intencionados. Tem dinâmica própria.
Jeanne (que não tem esse nome por acaso, lembrando Jeanne D’Arc, a heroína francesa) parece um Quixote moderno e de pretinho básico, dotado de auto-ironia. Por isso, quando percebe sua vida indo pelo ralo e lhe perguntam o que iria fazer a respeito de tudo o que havia descoberto, dá como resposta: "Qu’ils se démerdend", traduzível, livremente, em "Eles que se virem". Mas a expressão original francesa dispõe de força própria.
Desistência? Consciência madura da força das coisas diante da impotência do indivíduo? Cinismo? O que se pode dizer é que Chabrol não é tolo, pelo contrário: é um lobo velho. Não colocaria a assinatura numa personagem ingênua. Diante de situações complexas, a lucidez é o melhor remédio. O único, aliás.
Chabrol fala sobre seu filme a Luiz Carlos Merten
Um letreiro na abertura de 'A Comédia do Poder' adverte o espectador de que o que ele vai ver é uma obra de ficção. Qualquer aproximação com a realidade é mera coincidência. Mas todo mundo sabe que o senhor se baseou num escândalo político-financeiro que teve muita repercussão na França...
Sim, o affair Körcher. Mas é o objetivo. Quando a gente diz que é simples coincidência é, na verdade, porque tem tudo a ver com a realidade. Era, aliás, o desafio desde a confecção do roteiro. Queria que o filme tivesse tudo a ver com os eventos reais, mas ficasse abrigado sob o confortável manto da ficção.
A embriaguês ou 'A Comédia do Poder'?
A juíza interpretada por Isabelle experimenta cada vez mais a embriaguês do poder. Na verdade, ela não tem poder nenhum, só o que lhe é outorgado, mas a sensação a consome cada vez mais e tem repercussão na sua vida privada. Era o que me interessava tratar - do conflito entre o público e o privado, o político e o psicológico, ou melhor dizendo, o comportamental. Mas é uma comédia do poder. As relações de poder são sempre cômicas quando se olha de fora. O que as pessoas fazem... seria cômico se não fosse, muitas vezes, trágico.
É seu sétimo filme com Isabelle Huppert.
E eu não poderia fazê-lo com outra atriz. Se não tivesse Isabelle comigo teria desistido do filme. Felizmente, ela é fiel e atende sempre ao meu chamado. Precisava dessa fragilidade forte que só ela consegue transmitir às personagens. E, depois, Isabelle representa com distanciamento. Há sempre uma ironia no seu trabalho, como se ela interpretasse e, ao mesmo tempo, comentasse a interpretação.
O cinema francês não tem muita tradição de fazer filmes sobre escândalos político-financeiros...
Tradição, não tem, mas temos alguns antecedentes. Yves Boisset fez vários filmes desse tipo nos anos 70. A idéia não era propriamente reatar com eles, mas de que maneira refletir o mundo atual. A essência de A Comédia do Poder consiste em mostrar que, no mundo globalizado, o poder é uma ilusão e que o privado sempre termina sacrificado por ele. É um filme de que gosto muito, realmente.
Há uma idéia muito interessante de mise-en-scène. O senhor filma muito a entrada de serviço do tribunal, e filma sempre a escada de acesso do mesmo ângulo de baixo.
Há no filme uma oposição entre o tribunal, como espaço público, e o apartamento, como privado. O tribunal é o espaço do poder, mas filmá-lo pelos fundos é uma idéia de questionar esse poder. A escada torna-se fundamental. É a idéia central de mise-en-scène. Filmar a escada dos fundos dá bem uma idéia de como o poder é ilusório. Como toda embriaguês, essa também tem sua ressaca. Quem perde o poder sabe disso.
Isabelle Huppert fala sobre seu papel a Luiz Carlos Merten
Trabalhar sete vezes com o mesmo diretor deve criar uma grande cumplicidade, não?
Ainda mais se o diretor é Claude (Chabrol). Estamos trabalhando juntos há quase 30 anos e a sensação que tenho é a de sempre descobrir novidades trilhando um caminho conhecido. Claude tem grande confiança em mim. Discutimos o filme, a personagem antes da rodagem e depois ele me deixa solta. Faz pequenos ajustes. Em geral me pede ‘mais’ ou ‘menos’, mas não temosnecessidade de grandes ensaios. O importante é definir o conceito da personagem. O resto vem tudo naturalmente.
No caso de Jeanne, a juíza, qual era o conceito?
Uma mulher que exerce o poder no universo masculino, mas é um poder que lhe é outorgado pelos homens. Curioso, não? Há pelo menos uma contradição aí. A idéia de Claude era justamente explorá-la. O poder que Jeanne exerce na sua vida pública a torna vulnerável na privada, cria problemas na relação com o marido.
O filme baseia-se num affair real, mas há a advertência de que é pura ficção. Você se baseou na personagem real?
Não. Vi-a na TV antes que Claude me chamasse para fazer A Comédia do Poder. Não fiz, como gostam de fazer os americanos, pesquisas para a personagem. Mas guardei alguns detalhes, as luvas, por exemplo. Acho que, de tudo o que usamos para compor a personagem, as luvas são o mais importante.
Chabrol diz que você queria que o filme se chamasse Luvas Vermelhas...
É verdade. O próprio Claude tem um filme antigo que se chama Les Mains Sales (As Mãos Sujas). Acho que seria interessante, mas ele me convenceu de que seria meio óbvio. Tudo o que quisemos evitar foi a obviedade. A comédia do poder é uma coisa muito sutil, mas a verdade é que o poder embriaga e corrompe.
Chabrol diz que não teria conseguido fazer o filme sem a fragilidade forte que você imprime à personagem.
É o que ele sempre diz. Que sou frágil, porque sou mulher, mas sou forte porque não temo encarar o universo masculino. Acho que a força, se existe, está no humor. E, depois, você deve conhecer o ditado - por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Não somos tão frágeis assim. O segredo é não se intimidar com a força masculina.
O que Chabrol pediria e que você não teria condições de fazer?
Interpretar uma mulher obesa, quem sabe?
* publicada no Estadão em setembro-2009.
4 Comentários
Eu vi esse filme. Ele é muito bom. Ele mostra como a corrupção está estabelecida numa sociedade dita avançada como a francesa.
Eu li no último número da revista do Cebrap um excelente artigo sobre as raízes psicanaliticas da corrupção. Vale mesmo!!
Oi Maria Euci, você poderia me passar o nome do artigo sobre psicanálise e corrupção? Pode ser no meu e-mail: rodcassio@hotmail.com Um abraço!
Senhor Rodrigo, sou uma velha senhora, ex-professora, e, agora, me mudei para o "fim do mundo" - Rondônia. Portanto, não tenho como ter email. Meu sobrinho vai até a "Lan House" comigo duas vezes por semana e me ajuda com a internet.
De qualquer modo, prezado Rodrigo, envio-lhe um resumo do artigo, publicado no n. 79 da revista do Cebrap.
"A lógica da corrupção - Um olhar psicanalítico
Autor: Marion Minerbo
Resumo: Desvelada a lógica da corrupção, certos fenômenos que não pareciam fazer parte do campo da corrupção mostram sê-lo, enquanto outros só o são para o senso comum.O que se corrompe não é o indivíduo, que só pode ser subornado, mas o sistema simbólico que ele representa, tendo como conseqüência o esvaziamento semântico e a fratura do símbolo. O processo de corrupção tem início quando o representante da instituição sustenta simultaneamente duas lógicas excludentes, referidas à esfera pública e privada. A integridade moral é a recusa em sustentar essa contradição, obrigando o sujeito a uma renúncia, quer da sua posição pública, quer de seus interesses pessoais".
Maria Euci,
Muito obrigado! Vou procurar o artigo, porque me interessa bastante.
Um abraço.
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