As paixões de um cinéfilo
Rafael Rocha*
Quentin Tarantino tem afeto exagerado pelo cinema. Seus filmes, todos eles exibidos no ciclo que o Cine UFG dedica ao cineasta, são paixões constituídas por uma parafernália de referências formais que evocam momentos diversos da história do cinema. Os filmes americanos dos gêneros populares, as fitas asiáticas lançadas diretamente em home video, as obscuridades dos exploitations e os cinemas de vanguarda – tudo isso motiva a paixão de Tarantino, porque tudo é cinema.
Nesse cinema passional, o espectador é facilmente envolvido pelo som e pela fúria. Há quem goste e há quem repudie, mas não pode haver indiferença perante Quentin Tarantino. O cinema, a sala das revelações, é a casa escura que o cineasta convida seu público para participar da festa apaixonada das formas. Há mais vermelho do que sangue em seus filmes e há mais atores do que personagens.
Em Bastardos Inglórios, os escalpos retirados dos nazistas são mais imagens subtraídas de faroestes italianos vagabundos do que dramas sobre violações de corpos. O coronel alemão Hans Landa é mais um ator que goza do seu ofício (Christoph Waltz, genial) do que personificação da banalidade do mal.
Porém, ainda que a festa do diretor seja colorida por uma expressão de mundo por vezes imatura e inconsequente, é fato que a sua câmera exibe afetos verdadeiramente humanos. Numa das primeiras cenas do cinema de Tarantino, o gângster de Harvey Keitel se aflige com a possibilidade do comparsa morrer em Cães de Aluguel, demonstrando para com ele um insuspeito carinho paternal. Em Pulp Fiction, uma das intrigas baratas que articulam o filme envolve um relógio de ouro que um pai fez diabos para entregar ao seu garoto. Na mesma temática do filho que precisa de atenção, os dois volumes de Kill Bill revelam-se, no fim das contas, uma alegoria sobre a paixão materna. A fixação do diretor por conhecidas formas cinematográficas é infantil, como se fosse estética de um indivíduo que encontrou na paixão pelos filmes um conforto para fugir das dores do mundo real.
Quentin Tarantino é um amador e os rumos de sua obra podem ser analisados à luz da transformação do amador (o cinéfilo) na coisa amada (o cineasta que revela sua paixão). Luís de Camões versava: Transforma-se o amador na cousa amada,/ por virtude do muito imaginar;/ não tenho logo mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada. Nesse primeiro quarteto do poema de Camões, a retórica serve para compreender todos os filmes do diretor que realizam a talentosa apropriação das formas cinematográficas.
Porém, assim como Camões continua sua retórica nos versos seguintes a partir do prosseguimento do desejar, é possível que o grande filme de Quentin Tarantino seja aquele em que o desejo pelo cinema é movido para além da exibição alucinante das formas referenciais. O quase esquecido Jackie Brown, filme de 1997 é, talvez, a sua obra-prima. Na seqüência final, Tarantino permite que a câmera encontre todos os movimentos de despedida entre Pam Grier e Robert Forster. Não existe ali qualquer outra referência que não seja o fator humano. É um momento de amadurecimento, em que o coração do diretor se esquece das fixações pueris com formas confortáveis para fazer do cinema um movimento livre, desapegado de mimos pessoais. Ali, a fanfarra de gosto adolescente se transforma em olhar sereno de adulto e ali, o cinéfilo se transforma em cineasta.
* Rafael Rocha é jornalista formado pela UFG. Foi meu orientando na monografia sobre Crítica de Cinema (2006)
3 Comentários
Caro professor Lisandro, desculpe a sinceridade, mas esse cineasta Tarantino não merece respeito. Ele é um incentivador da burrice e das piores escolhas morais.
Eu não gostaria de dizer isso, mas uma universidade não poderia programar filmes de um cineasta sem lastro e moralmente falido.
Tarantino é o bicho, numa boa, atinge minha alma.
Muito bem feito esse texto, só não entendi muito bem a parte sobre Jackie Brown (é o único que não assisti).
Sobre o início de Cães de Aluguel. Adoro os gritos do cara que levou um tiro (é o Orange?), uma dor, um desespero, um medo de morrer, ahahahuea, é demais *___*
Toda crítica carece de argumento A.G.
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