O olhar e a palavra: transformação e deslocamento
Lisandro Nogueira
No início dos anos 80 vivíamos a agitação do período pós-abertura política. Foram anos intensos, novos e ambíguos. Era bom porque éramos jovens e coisas boas estavam acontecendo a todo o momento. Mas também era chato por causa das patrulhas. O Cineclube Antonio das Mortes sofreu algumas chateações. Uma delas era a acusação de que exibíamos "filmes burgueses" e apoiávamos totalmente a chapa Deus (levemente anarquista e pequeno-burguesa), contra as três outras chapas, totalmente militantes.
Um dos melhores momentos foi quando conhecemos Maria Rita Kehl . Ela veio a convite do DCE-UFG. Foi uma surpresa: era jovem, sutilmente elegante e inteligente. Seu compromisso com as idéias (Maria Rita, em minha opinião, desmontou o discurso feminista rígido em vários textos e palestras ao longo desses anos) e a fala psicanalítica nos encantou logo de cara. Se já vivíamos o cinema intensamente, a partir do contato com Maria Rita, nosso pensamento e visão de mundo levaram um bom choque. Fernando Pereira (hoje professor do Cepae-UFG), um dos meus melhores amigos, também ficou entusiasmadíssimo e, até hoje, não perde uma palestra ou conferência.
Ela me marcou também de forma simples e generosa. Estava preocupado com a defesa da tese de doutorado, em 2003. Com um olhar firme e carinhoso, ouvi as palavras: “Se você não se sair bem, estaremos lá para ter consolar; mas se você se sair bem, estaremos lá também para comemorar”. Foi um alívio ouvir aquela profunda e singela frase. Libertou-me da expectativa tensa.
Décadas depois Maria Rita voltou. E voltou várias vezes para a nossa alegria. Autorizado por ela, via email [Oi Lisandro, quantas notícias boas! Claro que pode postar meu texto. Vai ser lindo falar na casa da Cora Coralina. Obrigada por tudo, Rita K.], a bela digressão me marcou bastante no início dos anos 90. É um texto sobre a psicanálise e tem um instigante título: "Não perca tempo". Leiam que vale uma boa reflexão (ver abaixo)
Não perca tempo
Maria Rita Kehl*
Jean Cocteau em Ópio: “Viver é uma queda horizontal” (...) Tudo o que a gente faz na vida, até o amor, a gente faz no trem expresso que caminha para a morte”. Saber disso o tempo todo seria insuportável. Precisamos ignorar periodicamente a morte para conseguirmos viver. O capitalismo coloca um arsenal de mercadorias à nossa disposição e retira grande parte de seus lucros desse truque: iludir civilizações inteiras sobre a idéia do fim.
A tecnologia nos promete a realização imediata de todos os desejos: nós quase não acreditamos na morte como destino da carne. A tecnologia nos promete o horror da vida eterna já, e aqui mesmo.
Vivemos a todo o vapor. Não a velocidade da “queda horizontal” (inevitável!) a que se refere Cocteau. Vivemos na velocidade de uma fuga. As duas funções básicas do “milagre” tecnológico são ilusórias. Encurtar necessário para as operações e tarefas da vida: a isso chamamos conforto.
Adiar a possibilidade da morte, e afastar seu espetáculo trágico do nosso convívio: proporcionar-nos um cotidiano alienado de seu próprio fim: a isso chamamos segurança.
Claro que o preço que se paga pelos truques é o trabalho. Em troca da ilusão de que o tempo é eterno, é algo que se espiche e se acumule segundo a mesma lógica da acumulação do capital, abrimos mão do tempo da experiência, do tempo “ocioso” e às vezes angustiante da subjetividade, da poesia.
O tempo presente passa a só ter valor em função de um futuro idealizado, garantido, “eterno”: o que nos faz “correr para o futuro” ajustados ao tempo da produção. O tempo do neurótico nunca é o presente. O neurótico não pode gozar com sua experiência.(...) (...)
A psicanálise, a princípio, parece um desmancha-prazeres. Acorda o sujeito de seu sonho de zumbi (ou não: quem procura um analista já foi acordado, de uma maneira ou de outra, por algum sofrimento que não pode evitar) para lhe acenar com limites, morte, castração, perdas.
Na sociedade do consumo e do narcisismo, esta parece uma prática para otários. Mas esta prática aponta para a rebeldia. Reinserido na sua história e confrontado com a morte, o analisado recupera a liberdade para viver o presente. Os fetiches da tecnologia são proteções contra o medo da castração.
A proposta da psicanálise é outra. Que se enfrente este medo; livre da proteção dos fetiches a vida se abre para a experiência. Por exemplo, para a experiência estética. Por exemplo, para o amor.
· Maria Rita Kehl é psicanalista é autora de diversos livros: entre eles “Deslocamentos do feminino”, “O ressentimento”, “Sobre ética e psicanálise”.
· Maria Rita Kehl escreveu o texto em agosto de 1994 na Folha de São Paulo. O texto completo procurar em www.uol.com.br
2 Comentários
Parece que liberdade mesmo só para a imprensa. Censura feita por orgão de imprensa pode.
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