Psicanalista política
Maria Rita Kehl fala sobre sua paixão pela polêmica e seu encantamento com a psicanálise
Marília Scalzo
Fotos Marcelo Naddeo
Maria Rita Kehl está no centro da polêmica. Vencedora do Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção – com O Tempo e o Cão: a Atualidade das Depressões –, a psicanalista, ensaísta e poeta foi ovacionada pelo público ao subir ao palco da Sala São Paulo para receber seu prêmio, no último dia 4 de novembro. Em parte, as palmas comemoravam a premiação, mas também eram um desagravo ao cancelamento de sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo cerca de um mês antes.Fotos Marcelo Naddeo
Os maiores prêmios do Jabuti deste ano foram muito discutidos – o de Maria Rita menos; o de Chico Buarque de Holanda, com o Livro do Ano de Ficção, mais. A maior crítica que se fez é a de que havia um viés político nas escolhas. Nas trincheiras, amigos e inimigos, como se o mundo fosse ainda dividido em dois, saíram na defesa ou no ataque aos premiados. Bem, mas essa é outra polêmica.
O fato é que Maria Rita Kehl está onde gosta de estar. “Gosto de polêmica”, diz a psicanalista, que, depois de muita análise, garante que aprendeu a não ser chata, pelo menos nesse ponto. “É uma paixão.” No consultório, atendendo seus pacientes, tem de refrear essa paixão. “Aqui, é a vitória do espírito sobre a carne”, brinca. Ouve coisas que gostaria de discutir com alguns pacientes, mas seu papel não é polemizar. Recolhe-se durante 40 horas por semana. Mas, fora dali, a coisa muda. O que aconteceu no mês de outubro, em plena ferveção das campanhas eleitorais, entre ela e o jornal em que assinava uma coluna quinzenal é sinal de que, fora das 40 horas semanais de consultas, o gosto pela polêmica prevalece. Depois de escrever e publicar uma coluna em que falava sobre o voto dos pobres (“Dois Pesos”), sua colaboração foi cancelada – “não chamo de demissão porque não era contratada”. A direção do jornal disse que a coluna foi cancelada por um movimento normal de troca de colunistas que acontece de tempos em tempos.
A coluna, que ela desde o início defendeu que não fosse “de psicanalista”, com Freud explicando todos os porquês, abordava temas diversos. Desde os mais subjetivos e íntimos, como os textos em que falava de suas memórias, do interesse despertado pelo julgamento do casal Nardoni ou sobre o mistério de “o que quer uma mulher”, até os temas políticos, que esquentaram durante o período eleitoral. “A discussão política é muito arrebatadora”, diz. Maria Rita escreveu uma coluna sobre o aborto (“Repulsa ao Sexo”), com “coisas que queria dizer há anos”. Em seguida, revoltada com as correntes que dominavam a internet, fez a última coluna sobre o voto.
Depois que a notícia de seu desligamento do jornal circulou pela internet – e que seu texto ganhou mais leitura e repercussão do que jamais alcançaria nas páginas do diário –, choveram elogios, mas as críticas foram ferozes. Não foi a primeira vez. Talvez não seja a última. Nos anos 1980, ela se lembra de ter sido insultada pelo jornalista Paulo Francis. “Eu me expus a isso.
Ele era muito preconceituoso e, na época da eleição da Erundina, que é nordestina, ele escrevia Ééééérundina. Aí eu escrevi um artigo dizendo que ele era um jornalista éééérudito porque achava que morar em Nova York lhe dava um status de pensar melhor que os outros. Ele ignorou esse artigo, mas um ano depois, na derrota do Lula em 1989, escreveu um artigo com insultos pessoais a mim, dizendo que eu era uma petista de cabeça quente, que meus pacientes tinham de ser todos internados, uma coisa horrível.”
O gosto pela polêmica vem do berço. Mais velha e única mulher entre os quatro filhos de um casal de engenheiros, Maria Rita nasceu em Campinas e se criou em São Paulo, no que chama de uma “família excêntrica”. “Meus pais tinham certa dificuldade de inclusão na vida social. Nenhum dos dois era de São Paulo – ele do Rio, ela de Campinas. Não tinham uma grande circulação, mas vejo hoje que eram, com estilos diferentes, muito originais no modo de ver o mundo.” A casa da infância, com seus três irmãos – depois, o pai casou-se de novo e ela ganhou mais um casal de irmãos –, tinha um ambiente de muita conversa, muita discussão. “Era o ambiente que meu pai gostava de criar. Ele gostava de polemizar com os filhos e nós entramos na polêmica, cada um a seu jeito. Isso certamente me influenciou”, conta.
Outra coisa que a influenciou foi, apesar de formada em psicologia, ter começado sua vida profissional como jornalista. “Precisava trabalhar, bati na porta do Jornal do Bairro, cujo dono era o escritor Raduan Nassar, e os editores, muito simpáticos, resolveram me ensinar como escrever um texto jornalístico”, conta. “Depois, comecei a trabalhar nos jornais de esquerda, na década de 1970.” Foi editora de cultura do Movimento, que, ao lado do Opinião e d’O Pasquim, foi um dos mais importantes órgãos da imprensa alternativa durante o regime militar. Foi aí que Maria Rita se politizou: “Cursei os cinco anos da psico na USP [Universidade de São Paulo] entre 1971 e 1975, um período de violenta repressão política. Não fui para a clandestinidade e nunca apostei na luta armada como algumas pessoas cuja coragem eu admiro até hoje. Minha luta sempre foi no campo ideológico.
A formação (informal) como jornalista, anos antes de se tornar psicanalista, talvez tenha contribuído com o que pode ser visto como uma qualidade de Maria Rita: a capacidade de transitar por muitos campos e de ter um olhar mais abrangente sobre as coisas. Mas, para ela mesma, durante muito tempo, esse foi um problema. “Era como se eu não tivesse uma definição muito clara de mim mesma”, diz. Hoje, aos 58 anos, reconhece que sua dificuldade de se enquadrar – “tenho fobia de pensar que vou entrar em uma forma” – e de seguir dogmas acabou favorecendo esse olhar.
Tanto na universidade como na formação como psicanalista, os caminhos que escolheu não foram ortodoxos. “Fiz meu mestrado na USP e não defendi a tese, porque nasceu meu filho e me atrapalhei com a vida cotidiana. Não foi um conflito com a academia. Na época – 1978 a 1980 – eu quis pesquisar a influência da televisão no Brasil durante a década de 1970. Naquela época não se pensava em tomar a televisão como objeto de estudo. Minha pesquisa foi entre a teoria crítica e o jornalismo”, lembra.
Na década de 1990, sua tese de doutoramento – Deslocamentos do Feminino – foi um estudo crítico sobre a mulher na psicanálise freudiana e lacaniana. “Fui pesquisar quem era a mulher na Europa do século 19: um período em que a ideia de feminilidade começava a sofrer um deslocamento que só viria a se completar com os movimentos feministas da década de 1960. “Instintivamente, minha sorte nos dois casos é que escolhi orientadores que não orientavam, então fiquei livre para pensar sem tantas amarras da formatação acadêmica.”
Ao decidir tornar-se psicanalista, Maria Rita procurou preservar a mesma liberdade. “Tornei-me psicanalista sem passar por nenhuma instituição de formação em psicanálise”, diz. “Fiz análise, fiz supervisão, estudei, fiz muitos grupos de estudo, mas não me formei em instituições. Sei que essa escolha é questionada entre os psicanalistas. Mas tenho clara a filiação teórica que orienta meu percurso: Freud, Lacan. “Lacan considerava o autodidatismo um traço dos paranoicos”, diverte-se. “Então acho que sou uma autodidata que deu certo, porque achei meu caminho.”
Mas Maria Rita não recebeu tantas críticas por sua formação à margem das instituições, o que ela atribui a uma característica da sociedade brasileira. “No Brasil, quem tem um nome – e eu já tinha nome como jornalista – deixa de ser questionado, a não ser por adversários do campo político.” Ela acredita que em seu próprio campo ninguém mais a questiona para valer. “É muito estranho isso, nem nas minhas bancas de tese fui questionada como imaginava e como gostaria de ter sido.”
Entretanto, ela, que se vê como lacaniana mesmo não tendo a formação rígida, hoje é pouco chamada para debates nas instituições lacanianas. “É como se dissessem: ‘Ela não é dos nossos’.” Seu último livro, o vencedor do Jabuti, que tem enfoque lacaniano, por exemplo, foi discutido em muitos lugares, mas em pouquíssimas instituições ligadas à teoria de Lacan.
A resistência a entrar na forma aparece novamente: “Não escrevo lacanês, faço questão. É uma questão ética. Acho que uma teoria que se fecha em seu jargão para de pensar. A aplicação automática do jargão fecha a indagação”. Em suas opções políticas, a psicanalista também não é dogmática: “Acho que procurar uma ordem social que promova justiça social e igualdade de direitos é uma tarefa tão complexa que é preciso começar a pensar a cada dia”.
“Tanto a psicanálise quanto o materialismo histórico não são teorias a ser aplicadas sobre o real. Essas grandes teorias que atravessaram o século 20 e não perderam a atualidade no século 21 são, antes de tudo, métodos de investigação sustentados por alguns pressupostos teóricos. Não podem ser tomadas como dogmas. Ajudam-nos a observar, entender e operar sobre o mundo à nossa volta.” Nesse ponto, a clínica psicanalítica encaixa-se perfeitamente em seu jeito de ser. “Mesmo tendo lido as obras completas de todos os psicanalistas do mundo, a cada paciente novo começa-se do zero. O background da psicanálise opera entre a fala do paciente e a escuta do psicanalista e do paciente”, diz. “A clínica nos obriga a ter humildade; não se faz teoria aplicada.”
E é seu encantamento com a psicanálise que faz questão de frisar: “A psicanálise é um dispositivo político, no sentido mais amplo da palavra: libertador, de uma potência extraordinária”. “O fato de o final de uma análise ser um compromisso do sujeito com seu desejo expõe uma condição que Lacan chama de trágica, mas que dá para chamar de cômica também”, fala. “Quando o sujeito depara com a fantasia que sustenta sua neurose, é como se dissesse: ‘Nossa, era só isso? Eu estava sofrendo há tanto tempo só por causa disso?’. Tem uma nota cômica, ou irônica, nesse fim da análise. Você ri um pouco das suas pretensões, do seu superego, da sua escravidão voluntária.” Isso encanta a psicanalista até hoje: “Não tem tédio, é uma profissão sem tédio”.
O tédio não existe também no serviço que presta, desde 2006, na Escola Nacional Florestan Fernandes, que forma militantes políticos e lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
Maria Rita dá ali um plantão quinzenal como psicanalista e maravilha-se não só porque atende pessoas de uma classe social que jamais atenderia, mas porque acha que essas pessoas têm uma formação humana diferenciada, difícil de encontrar. “Eles distinguem o que é o problema deles, que é sua situação de classe. As inseguranças amorosas e indagações afetivas, que estão no centro da nossa clínica, não comparecem muito na clínica do MST. Parece que o valor das pessoas não depende tanto de se fazerem amar ou desejar pelo outro; está mais ligado à sua relação com o ideal que norteia a militância. O que também é problemático, claro, mas é interessante encontrar uma formação subjetiva um pouco diferente daquela a que estava habituada.” Uma diferença política, claro.
* Publicado em 13 de dezembro de 2010 na revista Cult.
1 Comentário
Professor Lisandro, seu blog é muito bom. Mas de vez em quando o senhor publica cada coisa. Essa psicanalista é chata e petista radical.
Sinceramente, vou pensar duas vezes antes de abrir seu blog daqui para frente,
atenciosamente,
Hebert Oliveira - advogado
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