terça-feira, 25 de janeiro de 2011

"A fita branca", de Michel Haneke, por Lisandro Nogueira


  
O mal

Lisandro Nogueira*

Quando estudávamos nos anos 80, W. Reich e seu importante “Psicologia de massas do fascismo”, perguntávamos sobre filmes que poderiam “ilustrar” as teses do discípulo de Freud sobre o surgimento do nazismo e do fascismo. Nele, Reich análise as estruturas coletivas do caráter que impulsionam os sentimentos de ódio e abuso em relação ao Outro, além da necessidade primária do indivíduo em apoiar tiranos e supostos salvadores da pátria.

Lembro-me que O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens - Alemanha, 1935), dirigido por Leni Riefenstahl, era logo lembrado.  Cenas fortes, ambigüidades, imagens dilacerantes e a evocação da velha pergunta: quais os motivos para tanta exaltação e sentimento de pertencimento do povo alemão para com o regime nacionalista de Hitler?

Em A fita Branca, de Michel Haneke  (em cartaz),  a velha pergunta ressurge para fazermos ainda outras indagações. Em O Triunfo da Vontade a exaltação e apoio são vistos como algo “natural”. As imagens reforçam o sentimento de quê o pertencimento ao regime é um estado de espírito alemão.

Com Haneke vamos a gênese da questão do “apoio ao horror”, como afirmava Reich. Através da voz off do professor, da fotografia que revela corpos abusados, dos diálogos construídos em acordo com interpretações teatrais não naturalistas, observamos e acompanhamos uma narrativa que apresenta as sutilizas brutais do abuso e suas conseqüências desastrosas na vida das pessoas, no cotidiano das comunidades e para os rumos de um país.

A voz off, um procedimento aparentemente simples dentro de uma narrativa, pois “explica” as imagens, é uma das pontes entre nós e o que acontece dentro do filme. O que a voz off explica? Ela fornece pistas para uma compreensão. Apressadamente podemos afirmar várias coisas confiando nela e em sua pretensa racionalidade. 

É muito comum creditarmos a voz off ao diretor do filme, ao que ele pensa sobre os personagens, tema e tudo o mais. Foi assim com Dogville. A voz off é o pensamento do diretor Lars Von Trier, afirmam alguns. Tanto ali como em A fita branca, apesar de usarem a voz off “explicativa” em sentidos diversos, não temos a “opinião do autor”.  Não é ela que nos fornece a visão de mundo do diretor do filme. Ela pode contribuir para isso.  E foi o Cinema Moderno que estabeleceu novos parâmetros narrativos para essa voz, com o intuito de distanciá-la do seu uso no cinema clássico, tão didático e explicativo.

É com essa aparente voz off confiávelque Haneke  nos colocar na encruzilhada de dúvidas  ao final da narrativa. O professor nos explica todos os horrores? Ele também faz parte da sustentação do manicômio naquela aldeia (uma seqüência sugere isso quando “entrega” as crianças para os investigadores)? Ele busca aquele amor para não querer enxergar o desastre velado e seus desdobramentos? O professor somos nós também nas nossas tentações autoritárias e egoístas?

Outro ponto importante é a fotografia. Filmar em preto e branco, em plena celebração do cinema digital e 3D, é uma espécie de atrevimento legitimamente saudado.  E se o filme é pesado, duro, pessimista, com o preto & branco realçando tudo isso, há momentos de poesia. Uma poesia seca, mas significativa.

O pastor está em seu escritório. Seu pássaro de estimação foi morto, com crueldade, e colocado em cima de sua mesa. Ele tinha “aconselhado” seu filho para não prender as aves. Mas ele próprio o fazia.
O menino entra no escritório. Em campo/contra campo, o garoto oferece ao pai, com suprema generosidade, o seu pássaro. E diz: “estou substituindo o Pepsi [o antigo pássaro de estimação] porque o senhor está muito triste”.  A luz enquadra os dois rostos e o negro circunda todo o resto.  O pai mantém uma postura ainda firme, mas agora desarmada. A humilhação é absoluta e, aos poucos, a sombra vai tomando contra do rosto aniquilado daquele homem. 

 Outra seqüência de poesia: a irmã conversa com o pequeno irmão. Há um plano de conjunto mostrando os dois na cozinha. A única luz é a das duas janelas, isto é, fora há vida, e, dentro daquela casa, há somente a sombra do medo. Eles conversam em campo/contra campo: o olhar de um, depois  outro. O menino faz indagações sobre a morte. Mais uma vez a luz incide poeticamente sobre os dois seres que conversam sobre a finitude.  Em volta a sombra negra, o manicômio (a casa, a aldeia) que massacra todos eles. Quando a irmã vai afirmando a inexorabilidade da morte, a luz fecha em seus olhos e temos a celebração efêmera da humanidade e da poesia.

 Os atores não fazem uma interpretação naturalista. O naturalismo, escola do século 19, apóia-se na construção das aparências para contribuir com a comunicação rápida com o público. A interpretação, nesse caso, colabora mais para as estruturas narrativas de consolação (o melodrama, por exemplo) e busca sempre reequilibrar os conflitos e fazer com que o espectador tenha uma identificação imediata com a história e o tema representado.
Como abordar um tema tão duro com um estilo de interpretação que prioriza uma “visão estática dos processos sociais”? Haneke segue outro caminho. Os personagens são firmes, rígidos e, em quase toda a narrativa, não conseguimos sentir empatia. Nem as crianças dão colher de chá para o nosso olhar acostumado com meiguices e sorrisos de plena afinidade. 

Há o vigor da interpretação teatral em comunhão com  a fotografia. Ela também dispensa a nossa costumeira  cumplicidade com a “boa fotografia”. Como não estamos acostumados com interpretações não naturalistas e com imagens em P&B, nas quais os atores aparecem “distantes” e “desumanos”, há, em nós, pelo menos num primeiro momento, um sentimento de repulsa pela narrativa que não deixa adentrar e viver todos os sentimentos possíveis para efetuar a costumeira catarse.

Michel Haneke afirma que A fita branca não é sobre a gênese do nazismo. Tem razão em parte. Seu filme é atemporal e serve para diagnósticos importantes não só dos alemães naquele período, mas, sobretudo, sobre os fundamentalismos, autoritarismos e fascismos incrustados em nós, nos nossos vizinhos, nos nossos partidos e nas nossas igrejas.

* Lisandro Nogueira é professor de cinema na Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG.

3 Comentários

Elaine Camargo disse...

Esse filme deveria ganhar o Oscar. E não essas baboseiras como "O vencedor". Esse filme retrata o fim da picada que é o ser humano.

Anônimo disse...

Grande texto Lisandro!!
O problema do fascismo é que quem participa não se sente fascista, mas apenas cumpridor de um mandato simbolico a que foi submetido. É como encontrar seu amigo policial no churrasco e depois encontra-lo a noite fardado na rua. A coisa toda é absolutamente impessoal..
j.f.

Anônimo disse...

Gostei desse texto. Tá muito bom, hem. E contém afirmações corajosas. Parabéns, Mestre Lisandro.
Abraços
Herondes

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