Fabricio Cordeiro*
Cisne Negro é a versão despida, visceral e real de O Lago dos Cisnes. É exatamente o que o coreógrafo Thomas de Vincent Cassel anuncia na sua primeira cena, num misto de austeridade, cretinice e sensualidade profissional. É Cassel, também em sua primeira fala, que (re)conta exatamente do que se trata O Lago dos Cisnes, peça batida e conhecida e, justamente por isso, não surpreendente. Com um certo brilhantismo e audácia, o filme de Darren Aronofsky está inteiro nessa fala.
Essa encarnação de Tchaikovsky é literalmente refletida em pelo menos dois terços das cenas, um jogo de espelhos tão destemido visual e narrativamente que personagens se desprendem uns dos outros e pequenos planos-sequência surgem livres para se deixarem atrair pelos números de balé. Numa história que lida tanto com o duplo, o longa não apenas se torna uma adaptação ou encenação da peça, mas a própria peça. Não há segredo quanto a isso, e Aronofsky tira todas as vantagens aos transpor o anunciado visceral e real para a vida de Nina (Natalie Portman), bailarina não só esforçada, mas extremamente obcecada pela perfeição quando calçadas as apertadas sapatilhas. Tamanha pressão, até o companheiro violino cresce opressor no canto da tela; Tchaikovsky torna-se assustador nas combinações retorcidas que é a trilha de Clint Mansell, aberta aos leves e constantes delírios sonoros.
Aronofsky parece ter construído um filme tenso desde o princípio, com um nó de garganta seca constante por Natalie Portman, indicada ao Oscar como favorita e que aqui parece comer duas coisas no café da manhã: torradas Annette e panquecas Bening. É uma dessas performances de dar agonia até pelos momentos mais “felizes” dessa garota que ouve loose (soltar-se) e entende lose (surtar-se), pelo seu sofrimento certeiro, grande atuação que justifica a carreira de uma grande (ainda) jovem atriz que justifica a existência de um Luc Besson. Não é comum ver closes tão maravilhados por choros tão frustradamente contidos.
Papel da Rainha Cisne é tanto sonho quanto objetivo da bailarina; toca na caixinha de música e no celular, retoca na mãe castradora. Essa relação – meio doente, meio adoecida – com a mãe (Barbara Hershey, medonha, perfeita) pode ecoar algo de Carrie – A Estranha, mas a sexualidade áspera de Nina faz com que Cisne Negro ande de mãos dadas mesmo é com Repulsa ao Sexo, um grande Polanski. São todos filmes em que há abusos mentais em sincronia com o que passa a ter de muito físico, e o que Aronofsky faz de melhor é dosar com peso as várias artimanhas de um belo terror psicológico com os avanços explícitos de um terror-terror. Sequência final é puro diamante.
Talvez a primeira lembrança de um balé aterrorizado na tela seja Suspiria. No entanto, temos aqui uma série de bifurcações distanciando os dois filmes, a começar pela predominância – claro! – do preto e do branco, enquanto Dario Argento era um entusiasta das cores. Aronofsky obedece a essa simples e essencial dualidade descolorida da peça, em figurinos in e off stage, em Nina e seu negativo safado (Mila Kunis), em cortes descontínuos dos escuros corredores masmorrentos para as clarezas à céu aberto e vice-versa, muito disso com a câmera bem ali atrás de Natalie Portman, como esteve atrás de Mickey Rourke em O Lutador, às vezes lembrando um Dardenne mais nervoso (no melhor sentido).
Cisne Negro parece consolidar o amadurecimento de um cineasta de cinco longas, Aronofsky em auge muito alto. Fica também um interesse especial por seus dois últimos trabalhos, em observar que, com toda aquela musculatura monstruosa em palco de luta, O Lutador ainda parece ser o mais sensível, e Cisne Negro, com toda sua delicadeza metamórfica em palco de ballet, o mais brutal, deliciosamente obsessivo, de uma afetação agressiva encantadora . O filme é uma coisa.
* Fabricio Cordeiro é formado em Letras e membro do grupo "cine-UFG, debates".
***
A voz resistente da nobreza
Rafael Carneiro Rocha*
O discurso do rei é apenas um filme sobre a gagueira de George VI. Mas é ótimo que seja assim. As falhas que poderiam prejudicar a obra, como omissão de episódios históricos, superficialidade de personagens e triunfalismo melodramático existem positivamente, para isolar dramaticamente a gagueira do rei. A fala de George VI importa muito, porque ela surge como uma metáfora sutil do drama da realeza.
Alegorias sobre a crise da aristocracia num mundo cada vez mais cínico e pragmático são comuns na literatura moderna. O personagem principal de Sua Alteza Real (1909), de Thomas Mann, é uma representação do estranhamento aristocrático diante das democracias modernas. A deficiência física que o fictício príncipe de Mann é forçado a ocultar se assemelha, num certo sentido, com a história real de George VI, o rei que se incomodava com apetrechos da cultura de massa, como rádios e microfones.
Os valores aristocráticos dificilmente encontram voz na modernidade desencantada e coube àquele George VI uma missão até certo ponto irônica. Os ideais da nobreza resistem bravamente quando um homem que gagueja se torna capaz de estimular, com a sua voz, os sentimentos esperançosos de uma nação durante a II Guerra Mundial.
Envolto em cenografia grave, iluminado por luzes nebulosas, e às vezes enquadrado de forma deslocada pelo diretor Tom Hooper, o ator principal Colin Firth projeta as angústias do rei como centro nervoso de todas as cenas. Na superficialidade aparente do filme, até mesmo a postura de um estadista genial como o primeiro ministro Winston Churchill se torna secundária diante do olhar preocupado do rei.
A dificuldade de falar para a nação em programas de rádio pode parecer ridícula diante de um mundo que ainda presenciaria os horrores da II Guerra Mundial, mas para o rei aquilo era um fardo existencial que o colocava tão temeroso como qualquer vítima solitária de uma guerra.
Numa das cenas mais interessantes do filme, cujos diálogos escritos por David Seidler investem num humor profundo e pungente, o protagonista assiste a um cine-jornal com a sua família. Quando ele é perguntado por sua filha o que Hitler dizia para a multidão, o rei responde que não sabe, mas num misto de medo e admiração, completa que o alemão fala "muito bem".
O rei teve de aprender, do seu modo, a falar muito bem e sua mulher tomou a responsabilidade de buscar alguma saída. Como outro sintoma de precariedade que o filme sinaliza, o mestre que ela encontrou para o marido foi um ator fracassado interpretado por Geoffrey Rush. As cenas de treinamento obedecem a um esquema dramático previsível de amizade construída em meio a hesitações, mas o confronto dos atores Firth e Rush é fundamental para a força do filme. São homens doloridos e conscientes das mazelas do mundo, mas que lutam contra a tentação do desespero.
O rei teve de aprender, do seu modo, a falar muito bem e sua mulher tomou a responsabilidade de buscar alguma saída. Como outro sintoma de precariedade que o filme sinaliza, o mestre que ela encontrou para o marido foi um ator fracassado interpretado por Geoffrey Rush. As cenas de treinamento obedecem a um esquema dramático previsível de amizade construída em meio a hesitações, mas o confronto dos atores Firth e Rush é fundamental para a força do filme. São homens doloridos e conscientes das mazelas do mundo, mas que lutam contra a tentação do desespero.
* Rafael Carneiro Rocha é jornalista e membro do grupo "Cine-UFG, debates". Texto publicado originalmente em O Popular.
9 Comentários
Acho que Cisne Negro mexeu com a cabeça de todo mundo. Um filmaço que ainda vai dar o que falar.
Uma bela e acadêmica Crítica. Diferente de outras que ficam só na crítica.
Prof. Lisandro, que bom formar os seus alunos na arte do cinema. Estão aí Fabricio Cordeiro, Rafael Rocha e Rodrigo Cassio. Professor, é isso que um educador deve fazer, me permita dizer, formar com interesse as pessoas. leio os artigos dos seus alunos e lembro-me do meu tempo de professora.
Estou ansioso para esse semestre, em que terei duas matérias ministradas com o Lisandro. Sou apaixonado por cinema e com certeza aprenderei muito com ele. Quero ver "Cisne Negro" o quanto antes!
O Discurso do Rei ganhou o Oscar agora há pouco. Só queria dizer que acho o pior dos indicados, ruim de dar mágoa. Hugs!
Olá pessoal.
Fabrício, eu nem quis levar o Oscar a sério, porque, como eu já te disse, eu acho interessante "Os mercenários" e queria que indicassem Mickey Rourke e Dolph Lundgren como atores coadjuvantes, rs.
Sobre "O discurso do rei", eu ainda não compreendo o que boa parte da crítica quer. É preciso apontar os problemas do filme, mas se a crítica se encerra em questões sobre vulgaridade narrativa, o confrontamento com o cinema será uma questão de ajustar filmes a critérios que poderiam ser, simplesmente, acessórios. O que eu defendo para a crítica é que, se existe algum problema formal, que se faça mais uma pergunta, ainda que estranha: "os problemas formais tornam o filme mais interessante?" Na maioria dos casos, naturalmente, não. Mas quando analisamos o cinema de um Clint Eastwood, por exemplo, nos surpreendemos como algumas coisas que seriam bastante problemáticas para muitos se tornam necessárias para ele. "Gran Torino" é vulgar e simplório, mas é uma beleza. Talvez, o melhor filme popular dos últimos anos. Que bom que algumas piadinhas sejam mal encenadas e que alguns personagens sejam rasos e caricaturais, porque tudo aquilo é uma revelação. "Gran Torino" é um filme radicado num personagem nada elegante. As pessoas falam sobre os personagens sombrios de Eastwood e tem razão sobre isso, mas às vezes, um encadeamento grosseiro de planos, ou a apresentação de um personagem a partir de suas tatuagens ou piercings, diz mais a respeito sobre esse mundo do que qualquer expressionismo de luz ou de câmera.
O pensamento a ser formado sobre os filmes precisa de uma crítica coerente em seus enfrentamentos. Não adianta se esconder de alguns critérios quando o diretor é um Clint Eastwood se, num filme de Tom Hooper, o mesmo crítico se escandaliza com qualquer imperfeição dramática. O que eu sugiro é, após o incômodo com as falhas melodramáticas de "O discurso do rei", se perguntar se tudo aquilo não poderia servir a algum propósito. Eu penso que sim. Aprecio nesse filme o isolamento radical da gagueira do rei. Acho interessante que em todas as cenas o centro dramático do filme se mantenha. Pode ser uma conversa de coadjuvantes sobre um problema político alheio ao rei, mas lá ainda está o gritante drama daquele homem. É um filme simplório, mas radicalmente focado, que acaba, com o perdão do trocadilho, dizendo muito.
Rafael
Rafael,
Não tem jeito, você é o último dos realistas. rss
Gostei da pergunta: "os problemas do filme o tornam mais interessante?"
No caso de um Clint Eastwood, penso que sim.
Mas no caso do Hooper, não. É que não vejo problemas ali. A não ser o problema de que o filme é tão rigorosamente arquitetado que nada se configura um problema. Nada põe em risco o seu sucesso. A criatividade parece aprisionada em uma forma que, de tão lapidada, só poderia dar certo.
Hooper fez um filme tão bom que não tem nada de interessante.
Abraço.
Bravura Indômita é bem melhor que Cisne Negro. Límpido, puro, conciso e honesto. Sem boleiragem.
Em Cisne Negro, as passagens de realidade vivida e fluxo de consciência ficaram pouco solidificadas. Não sabe, em certos momentos, se aquele zoomorfização se passa dentro ou fora dos acontecimentos físicos.
O final, com aquela ficcionalização da realidade, não mostrou fechamento eficaz para a narrativa.
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