O luto da arte
A tese da morte da arte ainda significa mais do que parece
A discussão sobre a morte da arte teve um lugar essencial nas Lições de Estética, de Hegel, no século 19. Não se pode perder de vista que a morte da arte à qual Hegel se referia era a da arte bela e não da arte de modo geral. Se Hegel tem razão, em havendo uma morte da arte que não deve ser generalizada, trata-se de entender que tipo de arte, para além da arte bela, sobreviveu. Em um século de genocídios, ditaduras e violências de toda sorte, a arte é a memória da sua própria morte.
A pré-história dessa percepção está na Crítica da Faculdade de Julgar, de Kant, que antes afirmou a existência de dois sentimentos, o belo e o sublime, como sustentáculos da experiência estética. Belo – a sensação de prazer com os objetos agradáveis – e sublime – um misto de prazer com desprazer – são formas de acesso subjetivo à beleza, tanto da natureza quanto das artes. Kant define a arte bela como aquela que pode representar de modo belo até mesmo as coisas feias. A tarefa histórica da arte sempre foi a de colocar beleza no mundo e suplantar o feio. Criamos essa expectativa e isso hoje em dia não nos ajuda.
O filósofo espanhol Eugenio Trías dá um exemplo repugnante só de ler: quem pisa em um rato morto e eviscerado na rua tem a sensação de que ele vai parar dentro da boca. A experiência do asco se dá como se um prato de merda fosse oferecido para se comer.
O asco é uma espécie de sentimento impossível, por estar na contramão do gosto. Podemos traduzi-lo por nojo. E nojo é algo que se traduz por luto. A experiência do asco ou do nojo, como experiência do des-gosto, é da mesma ordem da experiência do luto, de algo que não desejamos e que mesmo assim se impõe. A lástima pela perda de um objeto amado, mas também do gosto – seja pela arte, seja pela vida – que acompanhava aquele objeto é experiência disseminada em nossa cultura, da qual a arte atual vem a ser a apresentação mais clara.
A arte, do asco ao luto
O luto é sempre uma reação à perda de um objeto amado. É, portanto, a experiência da morte enquanto ela pode ser conhecida: a morte dos outros, das coisas, das experiências.
Até mesmo, como em Luto e Melancolia, de Freud, a perda de uma abstração, de um ideal qualquer. Nunca a da epicuriana morte que não encontraremos, pois já não estaremos quando ela aparecer. A arte contemporânea é experiência enlutada e, por isso, dói tanto tratar dela. Encará-la é experimentar o luto na forma de sua exposição possível. Mas, se há entre arte e vida, entre ficção e realidade, uma relação que é sempre de mimese, por imitação ou por mimetismo, e se há tanta perda na vida, a arte não deveria ser nosso resgate para além do que a vida nos dá sem nenhuma elaboração?
A promessa romântica da arte é que ela viria nos salvar da vida. Mas, após a perda da ingenuidade romântica, por que ainda esperamos tanto da arte? Arte é apenas um conceito que tem tão pouco valor quanto pouco uso nos dias de hoje. No entanto, arte ainda é, como conceito, algo que vai na frente da nossa sempre atrasada sensibilidade. Que a arte mova nossa sensibilidade é a esperança sem fundamento de muitos, mas sensibilidade é uma formulação imprecisa entre o perigoso culto da emoção e os sentimentos que só são elaborados mediante a interferência da racionalidade capaz de criar conceitos. Não há chance de que arte hoje seja mais do que uma construção para fazer pensar.
Temos na experiência contemporânea da arte a autopresentificação do seu próprio luto. Como se a arte ainda estivesse no período enojado em que tem que se haver com a memória de um cadáver que é ela mesma e que, na verdade, mimetiza o estado das coisas de um mundo em crise de sentido. Assim é que a obsolescência do conceito de arte o coloca na posição de um conceito-memória. Um conceito que foi válido, mas que perdeu sua circunstância na atualidade. Arte não é mais a bela arte, ainda que possamos com muito esforço descobrir nas obras que a beleza também é um conceito e, como tal, uma visão das coisas.
O paradoxo do gosto
O que a arte contemporânea nos sugere é a experiência do paradoxo do gosto. Como é possível “apreciar” esteticamente aquilo que repugna se neste momento a experiência estética como mediação entre sensibilidade e racionalidade foi anulada? A questão é que a arte contemporânea, sendo trabalho do luto, acontecendo na contramão do gosto, provoca sempre a experiência do desgosto. Por isso, a arte conceitual tem tanto espaço em nosso tempo, por chamar ao pensamento em tempos de cancelamento da sensibilidade. É como se toda obra nos enviasse a mensagem: se não podemos “gostar”, podemos “pensar”. É o paradoxo da inestética: a sensação é de perda da sensibilidade na arte; mais do que um problema da arte, é problema da cultura na qual ela surge. Um artista como Damien Hirst, com seus bezerros e tubarões no formol, não é, portanto, julgável segundo o padrão do gosto pela arte bela, porque estamos em tempos de perda do gosto. O que será que ele nos mostra que não sabemos pensar?
Com isso se consegue compreender o que acontece com a arte atual. Ela é a experiência da morte da própria arte bela nestes tempos de desgraça cultural. Tempos tensos: de um lado tragicofílicos – desejamos a tragédia – e de outro tragicofóbicos – evitamos a morte a qualquer custo –, como disse Hans Gumbrecht. Podemos dizer, nestes tempos, que a arte se faz na ordem do trágico, este sentimento da “morte em mim”, da morte como experiência subjetiva, como imagem da melancolia que nada mais é do que a morte do eu e do pensamento que sempre foi a prova de que existia algo chamado “eu”. Não, não exageremos.
A arte contemporânea não é nem trágica nem melancólica. Enlutada, ela nos pede que ultrapassemos a memória da morte e reinventemos o presente. Só o que impede isso é o capital culto à desgraça em que vivemos hoje. O gozo atual é com a ideologia da morte como um fim, quando, na verdade, estúpidos e conceitualmente avarentos, não sabemos entender o valor e o poder das transformações históricas das quais a arte nos dá apenas uma imagem para nos fazer acordar. Mas quando até mesmo a desgraça se tornou um “capital”, haverá espaço para a arte que denuncia o seu caráter capitalista? (Marcia Tiburi).
* Publicado em 05 de abril de 2010 na revista Cult. (enviado pelo Werten Tawera).
3 Comentários
Lisandro, não sei se já tem este blog há muito tempo, mas como gostei de conhecê-lo hoje! Decidi segui-lo porque seguramente serei presenteada com textos de amplo e profundo conteúdo e enriquecida em minha cultura a cada leitura.
Olá Regina, o blog é aberto. Pode enviar sua contribuição. O texto da Marcia foi enviado por um excelente ex-aluno. Participe!! Um abraço,
Lisandro
Lisandro,
Esta discussão me lembrou outra, do Luís Calmon Lastória, em que ele recorre a um exemplo de “arte contemporânea” que presentifica a relação do homem com morte mediante um gozo pan-escópico. Ele relembra que há alguns anos houve uma exposição de arte anatômica na qual eram exibidos cadáveres humanos embalsamados, plastificados por meio de uma técnica que substituía a água dos tecidos por uma resina que permitia colocar-lhes em posturas semelhantes á vida.
Vou citar um trecho do livro do psicanalista Charles Melman que narra este episódio:
“Os cadáveres permitidos à eternidade são, mas nem sempre, escorchados. Apresentam sua musculatura desnuda, soberba. Com freqüência uma trepanação permite deixar a descoberto uma parte do cérebro. A bochecha, parcialmente dissecada, desvela as inserções musculares. O sexo, flácido mas em perfeita forma, é exibido. Há também um belíssimo corpo de mulher, nesse caso sem escorcho, com um busto absolutamente soberbo. De seu ventre aberto sai negligentemente um pedacinho de útero fecundado. Uma luz suave, propícia à contemplação, ilumina essa exposição, filtrada por painéis cujas lâminas contém finas secções do corpo humano fragmentado e colorido, o que dá o aspecto original de vitral.”
Parece-me que haja certo gosto por uma imagem que propõem a fruição pelo horror em diversas formas de expressão artística, inclusive no cinema. Talvez um sintoma da crise de sentidos disparada pela perda de limites... perda de litoral que dá forma e orientação aos valores morais que balaustram o pacto social. Quanto ao capital, não devemos esperar nada além da exploração máxima de qualquer gozo que o perpetue.
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