Mistérios íntimos
Contardo Calligaris faz palestra no dia 18 de junho, 17:30, no 13. FICA. Tema: "O ambiente humano". Em seguida lança seu novo livro "A dama de vermelho e branco".
Contardo Calligaris em seu consultório nos Jardins
JURANDIR FREIRE COSTA
Contardo Calligaris é psicanalista e jornalista. Autor de uma importante produção intelectual no campo da psicanálise e da crítica cultural, o colunista da Folha começou, nos últimos anos, a se interessar pela ficção. Publicou "O Conto do Amor", criando o personagem de Carlo Antonini, investigador-psicanalista, que volta à cena em "A Mulher de Vermelho e Branco". Dono de grande erudição, Calligaris explora dilemas políticos, morais e psicológicos com a sutileza e a fineza de humor que demonstra na entrevista à Folha.
Outra impressão que fica é o intuito de encarnar individualmente episódios históricos anônimos, impessoais. O que diz disso?
Me agradaria incluir as tramas de Antonini no gênero do romance histórico. Me interessa contar como a singularidade das vidas passa a fazer parte da história coletiva. A história da batalha de Waterloo seria incompleta sem Fabrício Del Dongo [personagem de "A Cartuxa De Parma"], de Stendhal. A da peste de 1630 na Itália seria incompleta sem Renzo, [de "Os Noivos"], de Manzoni, procurando sua amada entre mortos e moribundos. Bom, Antonini, em "A Mulher de Vermelho e Branco", vive sua aventura entre os restos da militância contra a Guerra do Vietnã e o conflito entre culturas depois do 11 de Setembro. Em "O Conto do Amor", ele se aventurava entre os restos da resistência antifascista e da luta armada na Europa dos anos 1970-80. No fundo, gostaria que as histórias de Antonini escrevessem uma cartografia íntima e política de minha geração. Se não conseguir, terá sido uma cartografia minha.
Ao discutir o valor terapêutico da rememoração de fatos traumáticos, você afirma que a fantasia, e não o evento, traumatiza. Mas se deter na versão fantasiosa do mistério não pode frustrar o desejo de realismo de alguns leitores? É uma opção estética?
É uma opção ética, que se torna estética por consequência. Digo que é uma opção ética porque, grosso modo, o pensamento moderno coloca os outros no lugar de Deus, do destino etc. Nós somos, espontaneamente, os mestres da projeção: a culpa é dos outros, olhe o que fizeram conosco. Freud contornou isso: a culpa é nossa, mas não é bem nossa, é do inconsciente. Enfim, dizer que, mesmo na aventura mais animada, o mistério está dentro da gente, não significa, espero, frustrar o desejo de realismo do leitor. De certa forma, poderia ser o contrário: se o mistério somos nós, não precisamos partir para a Legião Estrangeira para que nossa vida seja uma aventura.
No policial clássico americano, o detetive privado é o retrato de uma cidade -Nova York, Los Angeles, Boston etc- e sua atitude diante dos crimes é o repúdio indiferente ou a resignação melancólica. No seu caso, as histórias se situam em vários locais e Antonini mostra uma visão mais simpática dos personagens supostamente viciosos. Isso significa sugerir uma ética cosmopolita, em vez do moralismo paroquial?
Você tem razão. Não tinha pensado nisso; há relação entre Antonini viver entre cidades e continentes e sua visão do vício, que não é sarcástica, indiferente ou resignada. Há nele (e em mim, para ser sincero) um carinho pela fraqueza, pelo estranho, pelo não conforme. E o mundo aberto no qual ele vive é o que mais garante que as exceções (em todos os sentidos) tenham um canto onde viver, que não sejam um campo de segregação ou de refugiados.
Romance de estreia do autor será filmadoJURANDIR FREIRE COSTA
Contardo Calligaris é psicanalista e jornalista. Autor de uma importante produção intelectual no campo da psicanálise e da crítica cultural, o colunista da Folha começou, nos últimos anos, a se interessar pela ficção. Publicou "O Conto do Amor", criando o personagem de Carlo Antonini, investigador-psicanalista, que volta à cena em "A Mulher de Vermelho e Branco". Dono de grande erudição, Calligaris explora dilemas políticos, morais e psicológicos com a sutileza e a fineza de humor que demonstra na entrevista à Folha.
Folha - Antonini parece o protagonista de uma espécie de policial-sexual. Também o desfecho do livro dá-se pela enunciação da fantasia sexual, e não do crime. Pareceu-me uma redescrição lúdica de Freud. Nos primeiros casos clínicos dele, temos, por vezes, a impressão de que o "mistério sobre a sexualidade" se dissolve na "fantasia sexual". O que pensa disso?
Contardo Calligaris - O gênero policial foi minha primeira paixão literária. Na época, na Itália, Mondadori publicava um romance policial por semana, de capa amarela. Eu lia todos. Os romances policiais me formaram, mas talvez gostasse deles porque minha vida já era um conto de mistério e investigação. Para um menino de dez anos, uma ida ao banheiro no meio da noite, sozinho, pode ser uma descida ao "Coração das Trevas". Não tenho mais medo do escuro, mas o gênero literário da minha vida não mudou: mistério e investigação. A psicanálise caiu bem; ela me trouxe duas ideias. A de que o mistério e a curiosidade que ele suscita são, em última instância, sexuais. E a de que nosso desejo se constrói na interação com os outros (ser seduzido quando criança tem consequências, assim como não ser valorizado sexualmente, que é quase um estupro ao avesso). Mas, no fundo, nosso desejo é nossa fantasia, nosso jeito de transformar essas experiências num molde que dá forma ao nosso querer. Ou seja, o mistério está em nós. Os monstros no corredor escuro são nossos.
Contardo Calligaris - O gênero policial foi minha primeira paixão literária. Na época, na Itália, Mondadori publicava um romance policial por semana, de capa amarela. Eu lia todos. Os romances policiais me formaram, mas talvez gostasse deles porque minha vida já era um conto de mistério e investigação. Para um menino de dez anos, uma ida ao banheiro no meio da noite, sozinho, pode ser uma descida ao "Coração das Trevas". Não tenho mais medo do escuro, mas o gênero literário da minha vida não mudou: mistério e investigação. A psicanálise caiu bem; ela me trouxe duas ideias. A de que o mistério e a curiosidade que ele suscita são, em última instância, sexuais. E a de que nosso desejo se constrói na interação com os outros (ser seduzido quando criança tem consequências, assim como não ser valorizado sexualmente, que é quase um estupro ao avesso). Mas, no fundo, nosso desejo é nossa fantasia, nosso jeito de transformar essas experiências num molde que dá forma ao nosso querer. Ou seja, o mistério está em nós. Os monstros no corredor escuro são nossos.
Outra impressão que fica é o intuito de encarnar individualmente episódios históricos anônimos, impessoais. O que diz disso?
Me agradaria incluir as tramas de Antonini no gênero do romance histórico. Me interessa contar como a singularidade das vidas passa a fazer parte da história coletiva. A história da batalha de Waterloo seria incompleta sem Fabrício Del Dongo [personagem de "A Cartuxa De Parma"], de Stendhal. A da peste de 1630 na Itália seria incompleta sem Renzo, [de "Os Noivos"], de Manzoni, procurando sua amada entre mortos e moribundos. Bom, Antonini, em "A Mulher de Vermelho e Branco", vive sua aventura entre os restos da militância contra a Guerra do Vietnã e o conflito entre culturas depois do 11 de Setembro. Em "O Conto do Amor", ele se aventurava entre os restos da resistência antifascista e da luta armada na Europa dos anos 1970-80. No fundo, gostaria que as histórias de Antonini escrevessem uma cartografia íntima e política de minha geração. Se não conseguir, terá sido uma cartografia minha.
Ao discutir o valor terapêutico da rememoração de fatos traumáticos, você afirma que a fantasia, e não o evento, traumatiza. Mas se deter na versão fantasiosa do mistério não pode frustrar o desejo de realismo de alguns leitores? É uma opção estética?
É uma opção ética, que se torna estética por consequência. Digo que é uma opção ética porque, grosso modo, o pensamento moderno coloca os outros no lugar de Deus, do destino etc. Nós somos, espontaneamente, os mestres da projeção: a culpa é dos outros, olhe o que fizeram conosco. Freud contornou isso: a culpa é nossa, mas não é bem nossa, é do inconsciente. Enfim, dizer que, mesmo na aventura mais animada, o mistério está dentro da gente, não significa, espero, frustrar o desejo de realismo do leitor. De certa forma, poderia ser o contrário: se o mistério somos nós, não precisamos partir para a Legião Estrangeira para que nossa vida seja uma aventura.
No policial clássico americano, o detetive privado é o retrato de uma cidade -Nova York, Los Angeles, Boston etc- e sua atitude diante dos crimes é o repúdio indiferente ou a resignação melancólica. No seu caso, as histórias se situam em vários locais e Antonini mostra uma visão mais simpática dos personagens supostamente viciosos. Isso significa sugerir uma ética cosmopolita, em vez do moralismo paroquial?
Você tem razão. Não tinha pensado nisso; há relação entre Antonini viver entre cidades e continentes e sua visão do vício, que não é sarcástica, indiferente ou resignada. Há nele (e em mim, para ser sincero) um carinho pela fraqueza, pelo estranho, pelo não conforme. E o mundo aberto no qual ele vive é o que mais garante que as exceções (em todos os sentidos) tenham um canto onde viver, que não sejam um campo de segregação ou de refugiados.
DE SÃO PAULO
"O Conto do Amor", (Cia das Letras) publicado em 2008 por Contardo Calligaris, vai virar filme.
O livro -que relata uma viagem de Carlo Antonini à Itália- está sendo adaptado pela mesma dupla de "Bruna Surfistinha": o diretor Marcus Baldini e o roteirista José Carvalho.
O texto, em inglês, está sendo escrito há três meses. Será filmado em São Paulo, Paris e Florença.
Alguns trechos são feitos a seis mãos, com colaboração de Baldini e do próprio Calligaris. "Nos reunimos periodicamente", diz o roteirista Carvalho. "O Contardo nos dá abertura para mexermos na historia."
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor na UERJ. É autor de "O Ponto de Vista do Outro", entre outros livros.
2 Comentários
TD bm Lisandro?
Gostei muito deste texto...me pareceu um livro bm interessante de se ler.
A entrevista da Folha é ótima.
Parabéns pelo teu blog.
Gabriel, apareça sempre. Calligaris realiza palestra no dia 18 de junho, sábado, 17h30, no FICA, cidade de Goiás.
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