quarta-feira, 11 de maio de 2011

O belo estarrece, aterroriza, fulmina...

O retrato de Oscar Wilde, Rainer M. Rilke e  Tsvetaeva



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Reprodução
O escritor irlandês Oscar Wilde fez da beleza seu evangelho e único suporte de uma existência marcada pela discriminação e preconceito
Dizer sobre o belo, dizer sobre a beleza é perdê-la, é perder o espírito da “coisa”. O verbo não apreende, não define a sua essência puramente abstrata.

O belo estarrece, aterroriza, fulmina – antes de encantar – todos os sentidos e instaura, inaugura outras dimensões para o tal espírito. O belo é sempre perturbador, a beleza cria desordem ao desconsiderar linhas e linhagens. Democrática, a beleza aponta para algo absurdo. No livro A beleza salvará o mundo, Tzvetan Todorov vai direto ao ponto e questiona: como viver o absoluto, essa dimensão inerente a toda existência humana?

Todorov resgata, reinventa, acorda algo parecido a uma utopia ao iluminar o futuro com a luz insistente da alegria, ainda que para tanto apresente a história de três vidas passionais – e trágicas. Todorov nos oferece três contundentes retratos ao mostrar a experiência limítrofe de Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke e Marina Tsvetaeva.

O autor propõe uma reflexão profunda ao perguntar também: em que consiste uma vida bela e plena de sentidos? Quais os riscos desse empreitada? Oscar Wilde encontrou a decadência física e psíquica; Rilke enfrentou os abismos de uma profunda depressão; Tsvetaeva se matou, fulminada, cansada, talvez, ao buscar o inefável. “Exploradores do extremo”, estes verdadeiros artistas vivenciaram o absoluto no íntimo de suas existências e, como tantos outros, pagaram um alto preço por isso.

As definições, os livros, toda palavra encontra o seu lugar sempre no passado. A vanguarda é o verdadeiro lugar da beleza. Encarar este sol exposto pode trazer consequências. O belo acata palavras como renovação, mas a beleza faz nascer também a loucura.

Inadvertidamente tensos, aqueles três corações fulgurantes bateram repletos de desengrenagens. A beleza, eles descobriram, ao criar obras inesquecíveis, é um tipo de ferramenta absurda que articula melhorias. Toda beleza é cigana. O belo é sempre inapropriado para menores. A beleza devassa.

Sendo assim, o êxtase (a beleza, o absoluto) nunca deixa cicatrizes. Baudelaire, no poema ‘‘O veneno’’, amplia essa dimensão poética e sempre perigosa: “Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio/ com o seu luxo prodigioso.// O ópio dilata o que contornos não tem mais/ aprofunda o ilimitado”. Narcóticos e vinhos. A beleza é a mais pura água, já que o êxtase alarga o que já era abissal. Não se trata de uma meticulosa embriaguez, ou simples arroubo.

Desde sempre, vem dos primórdios este nosso instinto fundador. Correta, como deveríamos ser, a beleza nunca induz ao erro. Dizer é errar. Mais apropriado seria apenas sentir. Ver e ouvir. Os campos, a natureza, a alma obscura. Fernando Pessoa foi um dos que também percebeu que tudo que existe carrega o peso de algumas simetrias.

O belo, nos ensina Todorov, busca parceria e conexão. O inferno, nesse caso, nunca é o outro, que se torna fonte de delícia e descobrimento. É preciso que uma coisa atice outra, e mais outra. Este tipo de luz (aquele sol exposto), este tipo de encontro (inerente a toda existência humana) às vezes torna-se excessivo, insuportável. Contudo, renitente, a beleza cresce, vive de celebrações e carinhos. A beleza traz uma força propulsora que regenera.

Não por acaso Todorov presta uma bela homenagem ao apresentar os seus mais que falíveis, os seus frágeis “heróis”. “Sei que a aspiração à plenitude à realização interior e a uma qualidade de vida superior faz parte dessa configuração, mas ignoro aonde ela deve me conduzir e que lugar ocupa a relação com o absoluto. É para descobri-lo que me engajei na presente investigação: esperando que o passado esclarecesse o presente.” Uno e múltiplo, o belo está entre as melhores coisas do mundo.

Todorov escreve sobre extremos: liberdades individuais, fala de transformação, fala de ilusões e fala de história. O absoluto produz precisão e justeza. Já na introdução Todorov explica que a beleza nos leva a “um lugar que não sabemos nomear”. A beleza nos leva ao centro nervoso de nós mesmos, nos leva a um sítio, a um “local de plenitude”.

Dor e delícia O livro de Todorov fala sobre a busca humana permanente e dolorosa do absoluto. Ele analisa, de modo preciso e apaixonante, a existência desses três grandes personagens do mundo literário. Todorov mostra, amplia estes caminhos trilhados com dor e delícia. Pois o belo rege, reverencia, reordena o inusitado, para logo em seguida, numa dialética estranha, promover o caos inicial. Moto-contínuo, o belo nunca chega a ser autossuficiente. Toda filosofia e razão míngua ao tentar domar o que não tem leis e estatutos. A beleza é pura neblina, e sonho.

Paradoxal, o belo provoca alívios e angústias. Fome que gera fome. O quadro, o poema, o filme, a música, a flor, um gesto amigo, uma palavra de carinho, os livros, tudo isso deixa em nós algo que continua, que nunca é extático e muito menos definitivo. A beleza é sempre refutável.

São dois pra lá, dois pra cá. Faz calor, depois faz frio. Mas nunca há injustiça nestes movimentos sempre precários, esquisitos. É raro, mas é possível encontrar algum tipo de beleza até no protocolo, no suposto ritual harmonioso que ostenta, que sustenta príncipes e princesas.

Existe o belo na regra, na rigidez dos santos. A beleza forma uma frágil espiral, feita de fumaça, que se desfaz, assim, no vento. O desenho que se forma, bem de leve, ao acaso, é sempre diverso e inusitado. O belo artístico, o belo natural , o belo simplesmente belo. Não existe ainda uma teoria que dê conta de tamanho “peso”, exacerbado pelo mistério.

Mas Todorov, em A beleza salvará o mundo, mostra, no mínimo, coragem para discordar, para apontar algum tipo de saída existencial ao sugerir que a beleza pode redimir. Todorov contesta a violência e, em última análise, o mal. Todorov mostra, ao apresentar três biografias fantásticas, pungentes, que é preciso, acima de tudo, construir o porvir. Todorov é enfático: “A beleza salvará o mundo. A frase de Dostoievski nunca foi tão atual. Pois é justamente quando tantas coisas vão mal em torno de nós que é necessário falar da beleza do planeta e do humano que o habita”.

A beleza está nos olhos de quem ama? Tentar defini-la é esbarrar, é cair no precário essencial da dúvida. De Sócrates e Hegel, de Aristóteles a Kant, passando por Oscar Wilde, Rilke e Tsvetaeva. Como diria José Saramago, que certamente também acreditava que a beleza pode salvar o mundo, a tribo dos imperfeitos, a tribo dos sensíveis há de ser maior do que a dos muito ordinários.

A BELEZA SALVARÁ O MUNDO De Tzvetan Todorov
Editora Difel, 352 páginas, R$ 45

Quem é quem

Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde Nasceu em Dublim, em 16 de outubro de 1854. Morreu em Paris, em 30 de novembro de 1900. Defendia o belo como antídoto para os horrores da sociedade industrial. Morreu de um violento ataque de meningite (agravado pelo álcool e pela sífilis). O Retrato de Dorian Gray, seu único romance, é considerado um clássico da literatura inglesa.

Rainer Maria Rilke Nasceu em Praga, na República Tcheca, em 4 de dezembro de 1875. Morreu em Valmont, na Suíça, em 29 de dezembro de 1926. Foi um dos mais importantes poetas de língua alemã do século 20. Publicou, entre outros, O livro das horas; Os cadernos de Malte Laurids Brigge e Cartas a um jovem poeta.

Marina Tsvetaeva Nasceu em Moscou, em 26 de setembro de 1894. Morreu em Ielabuga, no Tartaristão, em 31 de agosto de 1941. Foi uma grande poeta e tradutora russa. Deixou uma obra poética que foi salva da destruição e do esquecimento por sua filha, Ariadna Efron. Durante o regime soviético permaneceu inédita até depois da Segunda Guerra, quando passou a ser publicada em folhas clandestinas.

Tzvetan Todorov É historiador e ensaísta. Nascido em 1939, na Bulgária, vive na França, por opção, desde 1963. É diretor de pesquisas honorário do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS). Publicou várias obras, entre as quais A literatura em perigo e Em face do extremo.

* publicado no jornal Estado de Minas em maio de 2011.

2 Comentários

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