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Mostrar mais ▼sábado, 27 de agosto de 2011
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
Estranho feminismo
Estranho feminismo
Filme francês em cartaz na cidade satiriza até a personagem de Catherine Deneuve
Rodrigo Cássio
Um político sindicalista recebe na madrugada a visita inesperada da esposa de um industriário. Ela está aflita com uma greve na indústria de seu marido, e precisa de ajuda. Ao recebê-la com uma cortesia que não esconde a diferença de posição entre os dois, o político oferece os sofás de sua sala com duas alternativas: "Você pode escolher se sentar à direita ou à esquerda." A esposa do industriário não vacila, e prontamente se senta no sofá da direita.
Potiche - Esposa-troféu, do jovem e respeitável diretor francês François Ozon, é um filme de óbvias sutilezas, como a desta cena protagonizada pelos personagens de Gérard Depardieu e Catherine Deneuve. Aparentemente, trata-se de um franco elogio à emancipação das mulheres no cenário político dos anos 1970, época em que se passa a narrativa. Mas em detalhes nada gratuitos, como o que define um lugar para que a protagonista se sente, Potiche delineia os tópicos centrais do seu comentário político.
Nesse passo, a comédia familiar que promete celebrar o feminismo revela-se um arremedo de caricaturas corrosivas sobre a maneira de posicionar os conflitos de classe no capitalismo das últimas décadas. Em outras palavras, conscientemente ou não, o novo filme de Ozon consegue ser mais perspicaz do que as próprias intenções declaradas pelo diretor.
Pontos de vista
Ainda que a câmera de Ozon persiga Deneuve do começo ao fim, fazendo da atriz a verdadeira mulher homenageada pelo filme, Potiche nos permite reencontrar uma pergunta que costuma estar presente apenas no melhor cinema narrativo. Até que ponto um filme se distancia ou adere ao ponto de vista de uma personagem? Quando a personagem é a que mais atrai a simpatia do espectador, como a senhora Pujol, vivida por Deneuve, responder a essa questão é um passo certo para identificar realizações de destaque em uma arte que sofre, cada vez mais, com a precariedade narrativa dos blockbusters.
Antes de ser um filme sobre o feminismo, Potiche é uma narrativa farsesca sobre a deterioração dos discursos contraideológicos e a sua substituição por novas formas de culto ao ego, bem no sentido do que ocorreu no Brasil durante os anos de governo Lula, até a vitória de Dilma Rousseff, nossa primeira presidente. Acreditar que o filme de Ozon defende o ponto de vista da senhora Pujol, uma mulher que conquista o sucesso na carreira política ao abandonar a suposta submissão da vida de dona de casa, seria ignorar o que justamente constitui a maior qualidade dessa narrativa: a constante desconstrução das aparências.
Na medida em que novas informações vão surgindo, Potiche nos obriga a reorganizar a imagem que criamos das personagens em cenas antecedentes. Toda evolução da narrativa se dá em nome desse processo de destruir e recriar imagens. O que poderia soar forçado (e certamente soaria, nas mãos de um diretor de pouco talento) resulta em uma provocação bem-humorada que complica o lugar do espectador, inclusive dos mais críticos. Quem entra no cinema disposto a se identificar com as perspectivas políticas representadas corre o risco de sair da sala enganado, convencido de que a vida é mesmo uma coisa bela, como canta a vitoriosa senhora Pujol no final da obra.
Ora, a vida cantada pela personagem não poderia ser nada bela. A não ser que consideremos belas as frágeis convicções de uma líder política que, por exemplo, não esconde o aborrecimento ao ficar diante de uma idosa trabalhadora de sua indústria. Um sentimento de aversão que vem da diferença de classes, e reforça a consciência burguesa de Pujol, denunciada pelo ponto de vista autônomo do filme em relação à personagem. Para a protagonista, o "outro" é um instrumento ou um fetiche que satisfaz as fantasias do seu ego, seja quando exibe as joias que comprou, com o lucro do trabalho alienado, seja quando se vê atiçada por um caminhoneiro, troféu particular que Pujol conquista por exercer bem o poder das mulheres no patriarcalismo - em seu marido encontramos a figura do machão que posa de forte em público, mas desmonta-se no espaço privado, dependente da mulher.
Duvidosa reconciliação
Que não se enganem as feministas espectadoras de Ozon. Toda forma de poder, se não muda a sociedade, contribui para torná-la mais desigual. A candidata Pujol, que se apresenta "sem partido" e a favor da "reconciliação", é um excelente retrato do pragmatismo infecundo que está na moda há décadas, encobrindo a luta de classes com uma "luta de gêneros" e convertendo a democracia em uma festa tão kitsch quanto os péssimos poemas que Pujol escreve, reproduzidos na música cantada ao final.
A personagem muda de lugar, sai da casa e vai para as ruas. Mas a sua essência continua. Uma esposa-troféu, fora da prateleira, não deixa de ser um mero objeto. Não é por acaso que a indústria, sob o comando de Pujol, alcança um novo patamar de produtividade. Sua administração "compreensiva" traz à tona os artifícios do capitalismo que se renovava na passagem para os anos 1980. O lema é fazer concessões pontuais para evitar a rebeldia. Fazer "concessões", porque é isso que o status quo precisa. Se, de início, temos a impressão de que Potiche faz um elogio liberal da pequena empresa, uma fala de Pujol ao lado da fotografia de seu pai, de quem ela herdou a fábrica, dissipa essa ilusão.
O filme de Ozon deixa em evidência a interpretação equivocada da ideia de emancipação, típica de uma época que volta o seu foco para as partes sociais sem levar em conta o todo. O que esperar de Pujol, esta personagem que entra na política como quem planeja um divórcio, já que é "vista com outros olhos" pelo marido? Com certeza, nada que seja realmente político. O problema, como mostra a evolução das redes de 1980 para cá, é cada vez menos a invisibilidade dos sujeitos, e cada vez mais o total desaparecimento deles; uma coisa é "ser visto", outra coisa é "ser sujeito". Se Ozon não pretendeu satirizar a própria simpatia do espectador diante da sua protagonista, é porque a sátira lhe fugiu ao controle e contaminou toda a representação - o que, por sinal, fez muito bem a Potiche .
Rodrigo Cássio é professor na Faculdade de Comunicação da UFG e doutorando em filosofia da arte pela UFMG
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Potiche - Esposa-troféu, do jovem e respeitável diretor francês François Ozon, é um filme de óbvias sutilezas, como a desta cena protagonizada pelos personagens de Gérard Depardieu e Catherine Deneuve. Aparentemente, trata-se de um franco elogio à emancipação das mulheres no cenário político dos anos 1970, época em que se passa a narrativa. Mas em detalhes nada gratuitos, como o que define um lugar para que a protagonista se sente, Potiche delineia os tópicos centrais do seu comentário político.
Nesse passo, a comédia familiar que promete celebrar o feminismo revela-se um arremedo de caricaturas corrosivas sobre a maneira de posicionar os conflitos de classe no capitalismo das últimas décadas. Em outras palavras, conscientemente ou não, o novo filme de Ozon consegue ser mais perspicaz do que as próprias intenções declaradas pelo diretor.
Pontos de vista
Ainda que a câmera de Ozon persiga Deneuve do começo ao fim, fazendo da atriz a verdadeira mulher homenageada pelo filme, Potiche nos permite reencontrar uma pergunta que costuma estar presente apenas no melhor cinema narrativo. Até que ponto um filme se distancia ou adere ao ponto de vista de uma personagem? Quando a personagem é a que mais atrai a simpatia do espectador, como a senhora Pujol, vivida por Deneuve, responder a essa questão é um passo certo para identificar realizações de destaque em uma arte que sofre, cada vez mais, com a precariedade narrativa dos blockbusters.
Antes de ser um filme sobre o feminismo, Potiche é uma narrativa farsesca sobre a deterioração dos discursos contraideológicos e a sua substituição por novas formas de culto ao ego, bem no sentido do que ocorreu no Brasil durante os anos de governo Lula, até a vitória de Dilma Rousseff, nossa primeira presidente. Acreditar que o filme de Ozon defende o ponto de vista da senhora Pujol, uma mulher que conquista o sucesso na carreira política ao abandonar a suposta submissão da vida de dona de casa, seria ignorar o que justamente constitui a maior qualidade dessa narrativa: a constante desconstrução das aparências.
Na medida em que novas informações vão surgindo, Potiche nos obriga a reorganizar a imagem que criamos das personagens em cenas antecedentes. Toda evolução da narrativa se dá em nome desse processo de destruir e recriar imagens. O que poderia soar forçado (e certamente soaria, nas mãos de um diretor de pouco talento) resulta em uma provocação bem-humorada que complica o lugar do espectador, inclusive dos mais críticos. Quem entra no cinema disposto a se identificar com as perspectivas políticas representadas corre o risco de sair da sala enganado, convencido de que a vida é mesmo uma coisa bela, como canta a vitoriosa senhora Pujol no final da obra.
Ora, a vida cantada pela personagem não poderia ser nada bela. A não ser que consideremos belas as frágeis convicções de uma líder política que, por exemplo, não esconde o aborrecimento ao ficar diante de uma idosa trabalhadora de sua indústria. Um sentimento de aversão que vem da diferença de classes, e reforça a consciência burguesa de Pujol, denunciada pelo ponto de vista autônomo do filme em relação à personagem. Para a protagonista, o "outro" é um instrumento ou um fetiche que satisfaz as fantasias do seu ego, seja quando exibe as joias que comprou, com o lucro do trabalho alienado, seja quando se vê atiçada por um caminhoneiro, troféu particular que Pujol conquista por exercer bem o poder das mulheres no patriarcalismo - em seu marido encontramos a figura do machão que posa de forte em público, mas desmonta-se no espaço privado, dependente da mulher.
Duvidosa reconciliação
Que não se enganem as feministas espectadoras de Ozon. Toda forma de poder, se não muda a sociedade, contribui para torná-la mais desigual. A candidata Pujol, que se apresenta "sem partido" e a favor da "reconciliação", é um excelente retrato do pragmatismo infecundo que está na moda há décadas, encobrindo a luta de classes com uma "luta de gêneros" e convertendo a democracia em uma festa tão kitsch quanto os péssimos poemas que Pujol escreve, reproduzidos na música cantada ao final.
A personagem muda de lugar, sai da casa e vai para as ruas. Mas a sua essência continua. Uma esposa-troféu, fora da prateleira, não deixa de ser um mero objeto. Não é por acaso que a indústria, sob o comando de Pujol, alcança um novo patamar de produtividade. Sua administração "compreensiva" traz à tona os artifícios do capitalismo que se renovava na passagem para os anos 1980. O lema é fazer concessões pontuais para evitar a rebeldia. Fazer "concessões", porque é isso que o status quo precisa. Se, de início, temos a impressão de que Potiche faz um elogio liberal da pequena empresa, uma fala de Pujol ao lado da fotografia de seu pai, de quem ela herdou a fábrica, dissipa essa ilusão.
O filme de Ozon deixa em evidência a interpretação equivocada da ideia de emancipação, típica de uma época que volta o seu foco para as partes sociais sem levar em conta o todo. O que esperar de Pujol, esta personagem que entra na política como quem planeja um divórcio, já que é "vista com outros olhos" pelo marido? Com certeza, nada que seja realmente político. O problema, como mostra a evolução das redes de 1980 para cá, é cada vez menos a invisibilidade dos sujeitos, e cada vez mais o total desaparecimento deles; uma coisa é "ser visto", outra coisa é "ser sujeito". Se Ozon não pretendeu satirizar a própria simpatia do espectador diante da sua protagonista, é porque a sátira lhe fugiu ao controle e contaminou toda a representação - o que, por sinal, fez muito bem a Potiche .
Rodrigo Cássio é professor na Faculdade de Comunicação da UFG e doutorando em filosofia da arte pela UFMG
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Clarice Lispector por Caetano Veloso.
Caetano Veloso
A experiência de ler sobre a vida de Clarice não poderia deixar de me levar a sentimentos extremos
Benjamin Moser, o caçula dos apaixonados por Clarice Lispector, escreveu um livro arrebatador sobre essa nossa poeta e musa. Tomo a liberdade de chamá-la de poeta baseado em Georg Lukács, que usava a palavra para se referir aos grandes ficcionistas dos séculos XIX e XX, já que ele os considerava os legítimos herdeiros da poesia épica. Também porque Clarice foi autor-sintoma da tendência de “liricisação” da prosa narrativa, apontada pelo mesmo Lukács como um mal que assolava a literatura.
Clarice estava, quanto a isso, no time de Joyce, Gertrud Stein, Virginia Woolf, Rosa e Beckett. De fato, sua prosa ficcional é pouco prosaica e pouco narrativa. O grande Lukács pode ser usado na concórdia e na discórdia. Os grandes são assim mesmo. Têm que aguentar. Clarice foi uma das maiores paixões da vida do meu espírito — e isso se deu imediatamente antes de eu começar a ouvir falar em Lukács e ler aquele seu livro com uma margarida na capa, lançado pela Livraria Civilização Basileira (o nome dessa editora não deixou de influir na formação do meu mito do Brasil).
Eu tinha 17 anos quando li “A imitação da rosa” na revista “Senhor”. Eu ainda morava em Santo Amaro, e meu irmão Rodrigo me deu de presente uma assinatura da revista. Um mascate editorial nos mostrara, e eu ficara encantado. A esse irmão devo tudo: “Senhor”, “Laços de família”, “A maçã no escuro”, os três primeiros LPs de João Gilberto — além de sessões no clube de cinema. Li as minúcias da vida dos Lispector na Ucrânia com Rodrigo na cabeça.
Clarice nasceu num lugarejo perdido, perto da Moldávia. A história de sua gente — tanto de sua família imediata quanto das que com ela partilhavam condição semelhante e, finalmente, de todo o povo judeu em sua misteriosa história de quase nenhuma realização material e imensa contribuição cultural na formação do mundo tal como o conhecemos — ressurge em cada página lembrada por Moser. Mas também o Brasil.
O amor pelo Brasil, com o qual tendemos a nos identificar de modo total, é marca tão funda na personalidade e na literatura de Clarice quanto o
atavismo judaico que tem tanta relevância para o seu jovem biógrafo. Com a língua portuguesa como traço de união, temos os termos da equação Clarice: o Brasil e Spinoza..
Benjamin Moser, o caçula dos apaixonados por Clarice Lispector, escreveu um livro arrebatador sobre essa nossa poeta e musa. Tomo a liberdade de chamá-la de poeta baseado em Georg Lukács, que usava a palavra para se referir aos grandes ficcionistas dos séculos XIX e XX, já que ele os considerava os legítimos herdeiros da poesia épica. Também porque Clarice foi autor-sintoma da tendência de “liricisação” da prosa narrativa, apontada pelo mesmo Lukács como um mal que assolava a literatura.
Clarice estava, quanto a isso, no time de Joyce, Gertrud Stein, Virginia Woolf, Rosa e Beckett. De fato, sua prosa ficcional é pouco prosaica e pouco narrativa. O grande Lukács pode ser usado na concórdia e na discórdia. Os grandes são assim mesmo. Têm que aguentar. Clarice foi uma das maiores paixões da vida do meu espírito — e isso se deu imediatamente antes de eu começar a ouvir falar em Lukács e ler aquele seu livro com uma margarida na capa, lançado pela Livraria Civilização Basileira (o nome dessa editora não deixou de influir na formação do meu mito do Brasil).
Eu tinha 17 anos quando li “A imitação da rosa” na revista “Senhor”. Eu ainda morava em Santo Amaro, e meu irmão Rodrigo me deu de presente uma assinatura da revista. Um mascate editorial nos mostrara, e eu ficara encantado. A esse irmão devo tudo: “Senhor”, “Laços de família”, “A maçã no escuro”, os três primeiros LPs de João Gilberto — além de sessões no clube de cinema. Li as minúcias da vida dos Lispector na Ucrânia com Rodrigo na cabeça.
Clarice nasceu num lugarejo perdido, perto da Moldávia. A história de sua gente — tanto de sua família imediata quanto das que com ela partilhavam condição semelhante e, finalmente, de todo o povo judeu em sua misteriosa história de quase nenhuma realização material e imensa contribuição cultural na formação do mundo tal como o conhecemos — ressurge em cada página lembrada por Moser. Mas também o Brasil.
O amor pelo Brasil, com o qual tendemos a nos identificar de modo total, é marca tão funda na personalidade e na literatura de Clarice quanto o
atavismo judaico que tem tanta relevância para o seu jovem biógrafo. Com a língua portuguesa como traço de união, temos os termos da equação Clarice: o Brasil e Spinoza..
O mistério, seu grande mistério (no qual Capinam deve ter pensado também — e não apenas no da Clarice de sua infância — quando escreveu aquela letra que eu musiquei mal — mas que não deixou de ter encanto assim mesmo — e que entrou no primeiro disco tropicalista como Pilatos no Credo) pode ser parcialmente desvelado ao se reconhecer em sua obra o panteísmo atingido a partir da formação judaica na língua de Camões (Spinoza) e a experiência entre os feios de Elizabeth Bishop e Ed Motta (o Brasil).
De fato, comove ler aquele gênio-beldade dizendo às irmãs que o povo na Suíça é feio, que ela tem saudade demais do Brasil. O conceito de beleza dessa estranha criatura (o Americano que a recebeu para uma palestra no Texas — para a qual Bishop contribuiu com seu habitual tom de desprezo — confessou-se deslumbrado por conhecer alguém que “parece com Marlene Dietrich e escreve como Virginia Woolf”) era muito diferente do da poetisa da Nova Scotia e do gordo de Nova Iguaçu.
Musa, sim. Todos estivemos também fisicamente apaixonados por Clarice em algum momento de nossas vidas. Eu, sempre. Cantei o refrão de Capinam sobre o mistério sempre pensando nela, com saudade dela, com pena de ter me perdido dela.
Há um texto curto de Clarice, escrito para jornal, em que ela relata os primeiros telefonemas que lhe fiz. Honrame que ela tenha demonstrado surpresa pelo tanto que eu conhecia (e entendia) de seus livros (“Baianos são assim?”, ela se pergunta). Mas assombra- me que ela tenha tido uma reação de starlet mídiafreak: atribui a Dedé, minha namorada na época, um ataque de ciúme que não se deu absolutamente. Ela era bem mulher. Misóginos e amantes das mulheres me entenderão igualmente aqui.
A experiência de ler sobre a vida de Clarice (e relembrar sua obra a cada passo) não poderia deixar de me levar a sentimentos extremos. Lembrei- me vivamente de Duda Machado me dizendo sobre “A maçã no escuro”: “Isso é panteísmo”, querendo dizer que ele não gostara muito. Duda era mil vezes mais culto e inteligente do que eu, e eu o adorava. Mas continuei siderado em Clarice. Mosertalvez não saiba o que é partilhar a natural brasilidade da escritora. Minha lembrança desse momento com Duda me diz tudo sobre o que eu não sei explicar ao caçula.
**
Jorge Mautner me conta que Hitler esbravejou contra a hipocrisia dos ingleses, que, tendo usado ópio para dominar a China e feito atrocidades na Índia e na África, queriam, arrogantemente, criticar o Terceiro Reich. Acho que o pior da nossa imprensa veio da influência dos tabloides ingleses (tanto a lixeira de celebridades quanto a pretensão de rock critics).
Agora caiu até o chefe da Scotland Yard (e os envolvidos no assassinato de Jean Charles), tudo perto do primeiro-ministro. Bem, mas foi ótimo que Churchil tivesse liderado a ação dos aliados que esmagaram Hitler. O fato, eu disse a Jorge, é que nunca nenhum povo enriqueceu sem oprimir outros. O Brasil terá de ser o primeiro. Apoiemos a presidente contra corruptos e corruptores e torçamos pelo Brasil salvador, o Brasil que foi amado em profundidade pela poesia de Clarice Lispector.
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sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Quem matou Norma e as coisas do Brasil?
Desde o século 19, na época dos folhetins, gostamos de brincar com essas questões de "quem matou quem". O melodrama é a casa ideal para esse tipo de narrativa povera.
...
Segundo Michel de Certau, em seu belíssimo "Invenção do cotidiano", nosso sociabilidade é tecida por essas narrativas ligeiras - telenovelas, por exemplo. Por outro lado, chama a atenção quando isso se torna uma "prática" quase hegemônica. Ou seja, todos querem saber quem matou a Norma.
É bom brincar no trabalho, em casa, na rua com essa pergunta. O Brasil inteiro vê telenovela e Gilberto Braga sabe disso. Mas devemos lançar tb. outras perguntas:
a) quem matou aquela juíza no Rio de Janeiro? (vi essa pergunta no TT)
b) quem é o responsável pelo judiciário brasileiro ser tão lento e proteger sempre os mais ricos?
c) quem matou a educação brasileira, desde então?
d) por quê os meios de comunicação são tão preocupados com a espetacularização das coisas?
e) e outras mais...
São várias perguntas em meio ao torpor da impotência. Ismail Xavier, grande mestre, dizia: "precisamos aprender a viver no pêndulo entre criar e seguir normas".
Pois é, Gilberto Braga sabe mexer com a emoção dos brasileiros. Tenho admiração pela carpintaria do seu texto e pelo seu equilíbrio no jogo de forças: criar e seguir normas dentro da indústria da TV. Mas exageramos na busca obsessiva pelo assassino da Norma.
Quem matou a Norma, desde o século 19, foi o autor do texto. Hoje, no caso, Gilberto Braga. Por isso, falei várias vezes na TV Anhanguera: quem matou Norma foi ele, Braga.
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quinta-feira, 18 de agosto de 2011
Amar a vida concreta (Melancholia e Árvore da vida)
A Árvore da Vida e Melancolia
Insegurança e narcisismo: queremos ser os únicos a "perceber" e a denunciar a falsidade do mundo |
Contardo Calligaris
No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.
Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.
Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".
A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".
Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?
Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!
Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.
Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.
Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.
Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.
Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana. Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.
Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.
No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".
Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.
Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.
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terça-feira, 16 de agosto de 2011
Melancholia, tristeza no filme de Lars Von Trier
É UMA TRISTEZA
"Melancolia", novo filme em cartaz, chama a atenção para um conceito que hoje se confunde com o da depressão, mas vai bem além da doença
Iara Biderman e Guilherme Genestreti
O cineasta dinamarquês Lars von Trier trouxe à cena a melancolia, que estava escondida num canto escuro da casa, encoberta pelo termo médico "depressão".
Seu novo filme é um retrato desse estado de ânimo em todos os aspectos: dos psiquiátricos (sintomas da depressão) aos filosóficos (a tristeza como consciência da solidão humana no universo).
O tema está na ordem do dia, afirma o psicólogo Marco Antônio Rotta Teixeira, que faz sua tese sobre melancolia e depressão na tradição do pensamento ocidental. "Mas a melancolia vem sendo falada com a roupa da depressão."
O atual conceito médico da depressão usa dados mensuráveis para definir esse estado, como tempo de duração de sintomas.
Para a psicanálise, a melancolia é o estágio mais extremo da depressão. A apatia do melancólico é fruto da perda de algo ou de alguém, que precisa ser compreendida e superada, em um processo semelhante ao do luto. A diferença é que, enquanto no luto a perda é compreendida, na melancolia ela é inconsciente: não se sabe o que foi perdido.
"Nada atrai o melancólico, a não ser o próprio sofrimento. Ele está absorvido nele mesmo", diz Sandra Edler, autora de "Luto e Melancolia: À Sombra do Espetáculo" (Civilização Brasileira, R$ 19). A cultura atual conspira contra o melancólico, diz a psicanalista. "Se a pessoa perde algo, precisa se recolher, mas a vida a chama para um eterno desempenho, se não quiser perder espaço."
É o que pensa, também, a psicóloga Ana Cleide Moreira, autora de "Clínica da Melancolia" (Escuta, R$ 37). "Se não temos tempo nem de pensar, não percebemos a perda de algo importante."
Nesse caso, é mais fácil aliviar o sofrimento com remédios. "A sociedade não assimila os estados de tristeza. Precisamos eliminá-los rapidamente para continuar trabalhando", diz Teixeira.
Essa crítica não significa, ressalta ele, fazer apologia da tristeza ou rejeitar as chances dadas pela ciência para lidar com ela.
"As pessoas falam que há um aumento dos casos de depressão, mas o que as pesquisas mostram é um aumento na prescrição de antidepressivos", diz o psiquiatra Ricardo Moreno, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Mas psiquiatras, psicanalistas e psicólogos concordam que drogas têm um papel importante.
"Muitas vezes é necessário tratar a melancolia com remédios. Sem eles, alguns não conseguem nem chegar ao consultório", diz a psicanalista Sandra Edler.
TEMPERAMENTO DE GÊNIOS
No filme de Trier, as referências aos sintomas de depressão são explícitas. Como na cena em que Justine (personagem baseada na experiência pessoal do cineasta) não consegue nem entrar no banho.
Os clichês usados para abarcar a tristeza profunda também estão lá: noite, lua, sombras, noiva.
É a retomada da concepção de melancolia como algo que tem uma manifestação doentia (a depressão), mas não é só isso, não pode ser explicado só pela ciência e transcende o indivíduo.
Mesmo sem dizer seu nome, as pessoas reconhecem o sentimento de melancolia. Está na hora em que você percebe não fazer parte da festa, no banzo da noite de domingo, na lembrança da morte.
"A melancolia ganhou diferentes definições na história e até hoje é assim, dependendo de quem fala dela" diz Teixeira.
Hipócrates (460-377 a.C.) a definiu como doença causada por acúmulo da bile negra, que resultaria no temperamento melancólico. O vocábulo vem do grego "melas" (negro) e "kholé" (bile).
O filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) levou o conceito para outro plano: a melancolia era uma característica da genialidade, associada ao conhecimento e à intelectualidade.
O professor e crítico de arte Rodrigo Naves lembra que a associação entre genialidade e melancolia é de uma época em que o conceito de individualidade não existia.
"A melancolia era uma deusa, que regia as artes liberais. Nessa noção, a pessoa é preenchida por algo que vem de fora, é regida por entidades, planetas", diz Naves.
Na mitologia e na astrologia, é Saturno, deus do tempo, que devora seus filhos, que traz a morte. No filme de Trier, é o planeta que vem acabar com o mundo.
"A grande ideia da melancolia é justamente a de embaralhar as fronteiras entre dois temperamentos que parecem opostos: o da pessoa deprimida e o da pessoa criativa", diz Frédéric René Guy Petitdemange, professor de História da Arte da Universidade Anhembi Morumbi.
Na semana passada, Petitdemange deu uma aula sobre a iconografia da melancolia na arte do Ocidente, baseada em uma exposição sobre esse tema realizada em Paris e Berlim, em 2006.
Para ele, a essência da melancolia -tristeza profunda ligada ao sentimento de vazio, à perda e à impossibilidade de encontrar sentido nos rituais sociais- não mudou. "A maneira de se discutir o tema pode mudar, mas são questões universais."
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segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Em terra de castor todo mundo é fantoche
Em terra de castor todo mundo é fantoche
Georgia Cynara
Aí é ladeira abaixo. O fantoche assume as rédeas da vida de Black, enquanto o filho mais velho do fantoche humano tende a seguir o caminho do pai, enquanto o caçulinha se diverte com o novo amiguinho dentuço e a mãe passa apoiar o “tratamento” do marido. Tudo isso costurado em uma narrativa de elementos redundantes, em que enquadramentos, diálogos, música, etc denotam um grande esforço - na mesma direção - para que o conflito pareça compreensível e autêntico, mas não imprevisível, apesar do esdrúxulo.
Destaque para a atuação do fantoche do castor. E quem não era fantoche nessa produção de 19 milhões de dólares? Momento hilário quando Walter se livra do seu companheiro peludo. Rimos quando era para chorar? Jodie Foster não demonstra ironia em sua abordagem - o que parece mais grave.
Há bons filmes sobre busca de identidade, loucura, crise familiar - o próprio recém-lançado Melancolia (Lars von Trier), a que também assisti no Projeto Cabine. Há também os difíceis. E os muito difíceis. Então a voz de Thom Yorke (Radiohead) ganha a tela, concordando com o espectador que tudo aquilo é muito constrangedor. De volta ao Silêncio dos Inocentes. Mostrar mais ▼
domingo, 14 de agosto de 2011
Um novo despertar (em cartaz)
Muppet Baby da depressão
Fabricio Cordeiro
Assistir a Um Novo Despertar uma semana depois de Melancolia pode ter algo de hilário. São, basicamente, filmes que procuram refletir sobre a muito bem adotada tendência a felicidades fingidas. Mas enquanto Lars Von Trier joga um mundo em nossas cabeças num espirituoso (e carinhoso?) apocalipse, Jodie Foster parece movida por alguma estranha carência de colo. Há a impressão de que algo muito importante precisa ser aprendido, uma dessas pra levar pra vida depois de carimbo de estrelinha no caderno.
Foster, sempre atriz de interesse, dirige este seu terceiro filme como quem espera um selo de aprovação do CVV. O protagonista dessa palestra motivacional é Mel Gibson em papel duplo: Walter Black, um homem depressivo por pacote completo de motivos, e o fantoche de castor que ele assume como personagem, iniciando todo um psicologismo sedex que ainda envolve esposa (Foster) e filho (Anton Yelchin), ambos descontentes. Castor em punho, Black parece melhorar, progresso acelerado por quatro ou cinco montagens em dois terços de filme.
O título original é “O Castor” e Gibson passa quase todo o filme falando pelo brinquedo, como se estivesse em um teste de casting dos Muppet Babies. Fica a dúvida entre olhar para o fantoche ou olhar para a cara de Gibson, exerciciozinho desconfortável, mas que parece almejado por enquadramentos e giros de câmera durante a ventriloquia de seu monólogo interior. “Eu não sou um fantoche”, diz o Gibson sotaquento, mas o close é no castor. Essas mastigações ganharão trinta minutos finais de um tipo de constrangimento alheio muito particular, com destaque para uma cena que, na memória mais recente, só fica atrás de Nicolas Cage vestido de urso batendo em mulher naquele inacreditável remake de O Homem de Palha.
Por fim, temos aqui uma amostra de cinema-quem-mexeu-no-meu- queijo capaz de reproduzir o mesmo discurso motivacional via três personagens, uma narração em off e o próprio filme em si, totalizando cinco ladainhas. Cruel.
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Insensato coração: cínicos e autênticos.
Cinícos e autênticos
entrevista para jornal O Popular*
Professor da UFG, Lisandro Nogueira publicou há alguns anos o livro O Autor na Televisão, resultado da sua dissertação de mestrado, defendida na USP, na qual analisa a obra do novelista Gilberto Braga. Hoje, o pesquisador, doutor em comunicação pela PUC-GO e crítico de cinema da TV Anhanguera, continua acompanhando atentamente a produção do autor de Insensato Coração. Nesta entrevista ao POPULAR, ele fala sobre a ficção seriada na televisão brasileira e, claro, das novelas de Gilberto Braga. Confira a seguir:
Quais os motivos para a grande audiência das telenovelas no Brasil?
A telenovela tem como base narrativa o melodrama, que teve origem no século. 18. É uma narrativa maleável, flexível e que se atualiza com enorme facilidade. Realiza comunicação rápida e realista com o público. Toca em temas emergentes, mas com superficialidade. No Brasil, tem grande apelo: são bem feitas tecnicamente e traduzem o cotidiano de maneira simples, de fácil assimilação. É o tipo de ficção pobre esteticamente que, no Brasil, conseguiu enorme êxito, entre outros motivos, devido ao baixo nível de escolaridade da população.
Décadas e novelas distintas e, mais uma vez, Gilberto Braga se sobressai com uma obra que retrata a realidade brasileira. Quais os pontos comuns e as diferenças entre as duas?
Gilberto Braga sempre dialogou com Hollywood - principalmente os filmes dos anos 50. Assimilou e se inspira nos textos de filmes de Douglas Sirk, Minelli, Hitchcock e Wilder. Vale Tudo e Insensato Coração reforçam o melodrama contemporâneo, ou seja, a substituição dos velho maniqueísmo do bem contra o mal para o novo maniqueísmo dos cínicos x autênticos. Mas Braga exagera na dose e se torna um moralista de mão cheia. Isto porque seu drama é simplório: os personagens agem sempre através de uma resolução pessoal, unicamente pela "vontade". Sabemos que não é bem assim nem nos grandes romances nem na vida real. Há uma superficialização na abordagem de temas fortes como corrupção e relações familiares. A diferença entre as duas é que ele aumentou o número de personagens cínicos.
O senhor ressalta que, como Gilberto Braga bebeu da fonte do escritor italiano Alberto Moraiva (1907/1990), ele retrata o mundo com um cinismo cortante. Poderia explicar essa linha de raciocínio?
Gilberto Braga, Sílvio de Abreu, Manoel Carlos são bem preparados intelectualmente. São leitores atentos, cinéfilos compulsivos e assíduos nos teatros. Inspiram-se bastante nas grandes obras. Moravia, no livro Os Indiferentes , não poupa ninguém na burguesia italiana dos anos 30, grande e pequena. Nem as crianças são boas e têm compaixão por alguém. Braga tira daí o chantilly, o recheio, e coloca no seu bolo televisivo. Se Moravia vai fundo com seus personagens perversos, Braga trabalha com a maldade num nível palatável, com a possibilidade do final sempre feliz.
Em 1988, em Vale Tudo , Nathalia Timberg era Celina, tinha um mordomo homossexual apaixonado pelo cinema e, para fugir do estresse, ia às compras. Agora, em Insensato Coração , é Vitória, que continua sendo assistida por um mordomo, com formação superior em hotelaria, e dispensou o ócio. É dona e administra um shopping. Gilberto Braga é um observador contumaz da contemporaneidade?
A telenovela brasileira é completamente diferente das outras do mundo afora. É muito superior e atualiza constantemente o velho melodrama. A TV Globo, nos anos 70, buscou no jornalismo, na publicidade, na literatura e no teatro os melhores quadros. Sim, são cronistas atilados e a diferença é que sabem traduzir grandes mudanças na sociedade para um formato que agrada imediatamente o público. As pessoas se identificam imediatamente com personagens bem construídos nesse modelo.
Qual a influência no Jornal Nacional , que está posicionado entre duas telenovelas?
Os autores das telenovelas sabem que o espectador acabou de ver notícias espetaculares. Eles aproveitam a indignação, nem sempre politizada, desse espectador. Canalizam esse torpor cheio de impotência e apresentam personagens que se "vingam" de maldades diversas. Desta forma, esses personagens angariam a adesão e o lugar cativo no coração de quem se sente injustiçado. É uma espécie de compensação que, quase sempre, se esgota ali mesmo na poltrona. Tanto é verdade que nós ficamos indignados com os problemas apresentados, mas não vamos para as ruas, desde sempre.
Uma questão ética de Insensato Coração gira em torno dos crimes cometidos pelo banqueiro Cortez. Caso ele não cumpra a pena na cadeia, isso é sinal de que o Brasil está pior do que o de Vale Tudo ?
É costume no Brasil os ricos não serem punidos. No folhetim do século 19, os ricos malvados, de vez em quando, pagavam caro pela prepotência. Em O Dono do Mundo (1991), Braga foi ousado, mas teve que recuar por causa da queda da audiência. Os rumos da telenovela são medidos pela audiência. Penso que o Brasil vive uma onda moralista, da supremacia do "politicamente correto". Não podemos ver o País só por esse ângulo e Braga exagera. O país melhorou muito, em todos os aspectos. São os bônus e ônus do processo democrático. As novelas retratam esse rico período da história brasileira.
Embora os personagens de Insensato Coração tenham posturas condenáveis, a figura do vilão, como a de Odete Roitman, de Vale Tudo , não ficou evidente. Há, sim, nomes como os de Léo e Cortez, mas nada que se compare ao ódio e o fascínio que Odete exercia. Os vilões estão mais próximos do mundo real?
A telenovela não cria nada de novo. Ela apenas atualiza um velho gênero do século 19. Os vilões são os mesmos. O que mudou foi a atualização dos bons contra os maus para os autênticos contra os cínicos. Sempre houve um fascínio pelos vilões, mas, no final, o que o espectador espera é a vitória do bem contra o mal. Braga tenta copiar o que aconteceu no cinema dos anos 90, adaptando o "psicopata" para os seus personagens cínicos.
* entrevista para jornal O Popular feita pelo jornalista Sebastião Vilela Abreu. Mostrar mais ▼