Belle de  jour
É possível  decifrar quem somos através de nossos sonhos? 
Adele Lazarin*
     Em  alguns filmes de Luis Buñuel, com O discreto charme da burguesia(1972)   e O fantasma da liberdade(1974), somos contemplados com muitas  cenas absurdas e em alguns casos, uma certa "falta" de linearidade na  história. Não é aquele cinema que estamos acostumados a ver todos  os dias. Num primeiro momento, a falta de lógica aparente na tela nos  faz pensar se mergulhamos na cabeça e nos sonhos de alguém, sem  censuras,  sem cortes, talvez até sem nexo.
      O  filme A bela da tarde é um pouco diferente. O longa de 1967  tem sim, a sua parcialidade de irrealidade, porém ele segue outra linha.   Nesse filme acompanhamos a trajetória de apenas um personagem, e vemos  mais que os seus sonhos, vemos as suas fantasias. Diferente dos outros  filmes já citados, Buñuel segue uma narrativa um pouco mais linear e nos conta a  história de Séverine (Catherine Deneuve), ao mesmo tempo em que somos  brindados com os devaneios da personagem.
      De  acordo com o professor Eduardo Peñuela Cañezal, “O Surrealismo [...]  baseia seus princípios na crença de que existe uma realidade superior,  à qual se chega por associações de coisas aparentemente desconexas  ou, então, [...] da decifração dos significados enigmáticos que  se elaboram nos sonhos”. Se analisarmos o cinema surreal dessa forma,  poderemos então compreender a protagonista de A bela da tarde?  Quem é Séverine? O que ela realmente deseja? 
      Séveri  Serizy é uma bela e jovem burguesa, recém casada com o médico  Pierre Serizy (Jean Sorel). Aos olhos dos outros ela é uma mulher fiel,  casta, intocável. E de fato ela é assim. Ela até se recusa a dormir  com o seu marido (ou falando mais abertamente, se recusa a ter relações  sexuais com ele). Ela teme se envolver com ele? Ou ela teme o que  deixará  de ser e representar para o marido? 
      Mas  se ela de fato é essa mulher tão pura, então como explicar os  sonhos que ela tem durante todo o filme? Logo no início, Buñuel nos  presenteia com uma cena em que Séverine é humilhada e violentada,  e o que poderia ser considerado pior, ela sente prazer nisso. O que  talvez perturbe mais o expectador durante o filme não é a irrealidade,  mas sim o conteúdo dessa irrealidade. Talvez alguns até se surpreendam  em ver algo que eles intimamente sonhem, mas fiquem chocados em ver  essas fantasias tão abertamente expostas.
      Em  busca disso que ela tanto deseja, Séverine vai parar na casa de Madame  Anais. Lá ela aprende a trabalhar como prostituta, junto com outras  meninas. Porém ela só pode permanecer durante o período da tarde,  se tornando dessa forma a Belle de Jour, ou Bela da Tarde. Mas ao  contrário  das outras meninas, Séverine não trabalha por que precisa de dinheiro.  Ela trabalha porque quer. 
     Eu  acho interessante a forma como Buñuel conduz a sua personagem até  o bordel. Um amigo de Pierre, Henri Husson, lhe dá o endereço. Ele  mesmo diz que já freqüentou o lugar. Por que Buñuel faz isso? Por  que ele precisa que esse personagem, que deseja Séverine, lhe indique  o caminho? Talvez porque essa ação seja o prenúncio de outra. Talvez  algo importante aconteça para a história, e Buñuel sugere isso, com  um personagem que conhece Séverine e que talvez volte a freqüentar  a casa de Madame Anais. O cineasta faz isso em outros momentos do filme,   cenas que indiquem coisas que podem acontecer no futuro.
      Quando  me pergunto quem é Séverine, lembro de algo que Henri Husson  lhe diz. Ele fala que Séverine gosta de ser humilhada. Antes disso,  ele diz que a desejava, mas isso quando ele acreditava que ela era  casta.  Quando ele a considerava intocável. O que mais o impressiona não é  descobrir que um de seus melhores amigos está sendo traído, e sim  que sua mulher idealizada não é quem ele pensa que é. 
      Mas  eu vejo Séverine de duas maneiras. Primeiro como uma mulher Helena.  Chamando-a por esse nome, me refiro à Helena de Tróia. Muitos autores  às vezes se referem a algumas personagens como Helenas. Helena foi  uma mulher linda e desejada por homens, da mesma forma que Séverine.  Séverine era desejada em seus dois papeis, tanto como mulher fiel,  quanto prostituta. Quando se sente a vontade em seu novo trabalho ela  é a mais requisitada pelos clientes de Madame Anais.
      Em  alguns mitos, Helena é enganada por Afrodite, a deusa do amor,  a seguir com Paris para Tróia. Em outros, ela vai por conta própria.  O que importa é que ela tomou uma decisão que interferiu nos destinos  de vários homens. Talvez a escolha dela tenha sido impensada, ingênua,  ou egoísta. Da mesma forma agiu Séverine. Ao decidir bater na porta  de Madame Anais, para realizar um desejo íntimo seu, ela determinou  o destino de outros homens, inclusive o de seu marido.
      Mas  eu também comparo Séverine à Colombina da Comédia dell’arte.  Nesse teatro italiano, o Pierrot é apaixonado pela Colombina, que o  ama, mas também ama o Arlequim. Em algumas peças, a Colombina foge  com o Arlequim, mas depois retorna para o Pierrot, assim como Séverine  retorna ao marido. Podemos dizer que o triste Pierrot simboliza o  amor, o espiritual. Já o alegre Arlequim representa a  paixão, o carnal. Ora, a Colombina, nunca será completa  apenas com o amor de um. Ela precisa tanto do Arlequim quanto do  Pierrot.  E assim acontece com Séverine.
      Séverine  ama o marido. Ela mesma diz que não o abandonará. Porém o que existe  entre eles corresponde mais ao espiritual. Ela não consegue se  “entregar”  a Pierre (engraçado como o nome dele parece com o Pierrot), mas o ama.  No entanto, Séverine também precisa de seu trabalho para se sentir  completa. É ali que ela “encontra o Arlequim” e satisfaz a sua  paixão e os seus desejos. É até possível ver como ela se transforma  ao longo do filme. Quando conhecemos Séverine, ela é apática e sem  confiança. Até o tempo que ela hesita para chegar à porta de Madame  Anais e depois aceitar o trabalho só confirma isso. Mas depois vemos  uma mulher alegre e segura de si.
     E  o que é mais impressionante: a forma como Séverine age diante essa  situação, com tanta simplicidade, até nos faz acreditar que ela não  está traindo o marido. Ou que simplesmente tudo esteja de acordo um  com o outro e as coisas devem funcionar assim e pronto. Nada mais  natural.
* Adele Lazarin é membro do grupo de extensão "Cine-UFG, debates". 
 

 




3 Comentários
Devo ser muito sincero nesse momento quando leio o texto da Adelia Lazarin. Esse é o pior filme do cineasta espanhol Luis Buñuel.
Alfredo,
aproveitando a sua sinceridade e curioso pela sua resposta, pergunto: para chamar "A Bela da Tarde" o pior filme do Buñuel você usa quais parâmetros?
Senhor Alfredo, o blog acolhe textos, artigos e comentários com o maior prazer. Gostaríamos que fosse mais preciso em seus comentários. Eles são muitos gerais e não permitem um bom debate.
Vamos ao bom debate!!
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