Cópia infiel
 Marcelo Ribeiro*
Quando comecei a assistir Cópia fiel (Copie conforme, 2010), de Abbas Kiarostami,  estava atento às implicações do título em torno da questão da cópia.  Afinal, o cinema é, de certa forma, uma arte da cópia – uma questão que  não escapa de forma alguma a um autor como Kiarostami, considerado por  muitos um cineasta intelectual e sem dúvida um dos responsáveis pela  noção de “cinema iraniano” cultivada por certo circuito cinéfilo: um  cinema precioso mas incompreendido como uma pedra opaca. Para mim, o  título do filme e a assinatura de Kiarostami prometiam uma investigação  reflexiva dos sentidos da cópia, nas relações entre o aparelho  cinematográfico e a vida que ele busca re-apresentar.
O cinema aparece, em primeiro lugar,  como cópia da realidade, de seu movimento e de sua duração, tornando  inegável (embora não exclusiva nem necessariamente predominante) sua  dimensão mimética. Em segundo lugar, a produção de um filme – da  narrativa clássica modelada no romance e no teatro dramático ocidentais  do século XIX até os critérios artísticos que frequentemente remetem ao  modelo das vanguardas (surrealismo, dadaísmo etc.), passando pelas mais  diversas estéticas cinematográficas – passa em alguma medida pela  cópia de outras artes, de outros textos e de suas constelações de  sentido – um processo que faz parte do que se costuma chamar de  intertextualidade. Em terceiro lugar, mas não menos importante, o cinema  tem na cópia seu núcleo irredutível, sua força motriz, seu princípio  (re)produtivo. 
A cópia constitui, como reprodutibilidade técnica, aquilo  que está no cerne da existência de qualquer filme: seu valor de  exposição, sua demanda e seu desejo de visibilidade. Um filme existe  apenas como uma multiplicidade de cópias, em maior ou menor quantidade  (num movimento de proliferação cuja potência os meios digitais  disseminam, tanto no sentido de difundir quanto no sentido de  rarefazer).
Pensando nisso e talvez influenciado pela grata memória de Close-up  (1990) – a história de Hossain Sabzian, que finge ser o famoso diretor  iraniano Mohsen Makhmalbaf diante de uma família de boas condições de  vida (toda a parte do filme que foi encenada pelas próprias pessoas  envolvidas, interpretando a si mesmas) e vai a julgamento, num processo  que a câmera de Kiarostami não apenas registra e transforma, mas  reinventa e torna possível em sua singularidade de acontecimento – eu  esperava que Cópia fiel explorasse outros sentidos da questão  da cópia. 
Mas Kiarostami foi além de minhas expectativas, propondo um  jogo sinuoso em que o espectador ocupa um lugar central. À instabilidade  das fronteiras entre arte e vida que está no cerne de Close-up  - até o ponto em que cai por terra qualquer teoria mimética da arte (em  que a arte imita a vida como sua cópia, em que a vida constitui a causa  e a arte, o efeito, em que vida e arte se opõem como original e cópia) –  Cópia fiel acrescenta um suplemento, insinuando a emergência  de uma zona de indiferenciação em que arte e vida se confundem, em que  toda arte se revela como pulsação de vida e em que toda vida se revela  como arte de viver.
O início do filme – que parece enganosamente sugerir uma exploração mais didática  da questão da cópia, por inscrevê-la nas falas das personagens – mostra  a chegada de James Miller para o lançamento de seu livro sobre a cópia  na arte, passando a seu encontro com Elle, a dona de uma galeria de arte  que se interessa pelo assunto e pretende discuti-lo com o escritor. Um  intelectual e uma profissional da arte se encontram e o diálogo entre  eles, inicialmente adiado por conta do filho de Elle que a impede de  permanecer até o final do lançamento, terá lugar na galeria e, em  seguida, num passeio de carro e a pé pelas ruas pitorescas da pequena  cidade, entre restaurantes, cafés e as inúmeras atrações turísticas em  que se converteram os monumentos arquitetônicos, artísticos e religiosos  que compõem o cenário da maior parte do filme. 
Para entender o aparente  didatismo do início, é crucial reconhecer que não se trata de um  momento menor, alheio ao resto do filme, além de ser imprescindível  entender o caráter estratégico da construção dramática desse que é o  primeiro filme de Kiarostami feito na Europa. Ao centrar seu filme numa  história de amor, Kiarostami estabelece estrategicamente uma relação  intertextual com o gênero dos dramas românticos, que aproxima seu filme  do público acostumado com algumas das mais difundidas convenções  dramáticas euro-ocidentais e parece fazer mais transparente a pedra  opaca do “cinema iraniano” - num movimento que esse trailer (que o Fabrício Cordeiro me mostrou) leva ao limite:
Qualquer interpretação do filme passa  por alguma compreensão do que está em jogo no fato de filmar na Europa,  num contexto tão frequentemente identificado com as origens da  modernidade e investido com a aura de unicidade do conceito tradicional  de arte (um conceito que, diga-se de passagem, o cinema perturba, se é  que não faz desmoronar por completo). A partir da marcante sequência no  café em que se torna impossível não se perguntar sobre o que é realidade  e o que é encenação dentro do universo ficcional do filme, introduzindo  uma incerteza no cerne da construção dramática, parecem se delinear  pelo menos três tendências de interpretação do filme, entre as quais se  desenrola um jogo que me parece impossível – e indesejável – decidir.
É possível interpretar o filme como uma  construção dramática disjuntiva: a história de um casamento de cerca de  15 anos – o que teóricos do cinema de inclinação formalista como David Bordwell e Kristin Thompson  chamam de fábula: o conjunto de eventos que constituem a narrativa que  está sendo contada, reunidos de uma forma cronológica – que se desenrola  para o espectador em pouco mais de uma hora, de forma elíptica,  condensada e metafórica – o que os mesmos teóricos chamam pelo termo  russo syuzhet, que pode ser traduzido (mal) pela noção de  trama, desde que entendida no sentido da forma pela qual o filme  apresenta os eventos da fábula (podendo inverter, por exemplo, sua  cronologia, introduzir saltos temporais e elipses etc.). 
É como se o  tempo de um amor pudesse ser condensado e deslocado, dentro do trabalho  de sonho do cinema, numa série de palavras-chave – a promessa, o  comprometimento, a desilusão, o desentendimento, a persistência… – que  permanecem inacessíveis para o espectador, que pode apenas repudiar o  filme como uma confusão ou assumir o transe do encantamento.
Por outro lado, é possível interpretar o filme como uma construção dramática integrada, em que a fábula tende a coincidir com o syuzhet:  o filme pode ser a história de dois desconhecidos que entram num jogo  de sedução ambivalente. Nessa chave interpretativa, a narrativa pode ser  entendida de forma linear e literal, sem elipses ou metáforas. Apesar  de parecer próxima das convenções euro-ocidentais de drama romântico,  essa interpretação é renovada por uma série de sutilezas estéticas e  elementos poéticos que Kiarostami introduz: seus planos cuidadosos  diante das texturas luminosas do mundo investem o jogo de sedução com a  delicadeza de uma busca dos sentidos do amor. 
Aqui, o momento inicial de  encontro entre os dois equivale ao fundamento de realidade sobre o qual  se ergue seu jogo de encenação e de simulação. À medida que James e  Elle se conhecem e se descobrem, o que se revela é a essência teatral de  todo amor, em que toda entrega não passa de uma aposta com um estranho e  toda abertura ao outro passa pela tela de uma fantasia.
Ainda interpretando o filme como uma  construção dramática integrada, é possível entender sua narrativa de  forma ligeiramente diferente da anterior: em vez do encontro e do jogo  entre dois estranhos, estaríamos diante de um casal que procura renovar  seu amor desgastado por anos de convivência, pela desilusão e pelo  desentendimento. Aqui, é no momento inicial que encontramos a encenação,  quando os dois fingem não se conhecer, até que irrompe a realidade da  corrosão do relacionamento pelo tempo e pela sedimentação do ínfimo e do  imponderável, da sequência do café em diante. Assim, James e Elle já  têm um relacionamento, seu amor está em crise e eles se propõem um jogo:  a encenação de seus primeiros passos como casal. 
Na encenação, James e  Elle buscam viver de novo, viver novamente, viver de forma nova: como se  fosse possível copiar fielmente o roteiro do itinerário afetivo que  inaugura seu amor e, na cópia, em vez de encontrar o mesmo, o desgaste  que os separa, redescobrir a si mesmos e ao outro naquilo que permanece  desconhecido e, como tal, guarda a potência da sedução.
Em torno do tema do amor, que persiste nas interpretações que sugeri, Cópia fiel  multiplica as instâncias da cópia, disseminando uma série de formas do  espelho. Num sentido metafórico, James e Elle se veem em outros casais,  assim como nas representações do amor presentes em algumas das obras de  arte: as promessas ansiosas do amor encarnadas pelos dois jovens que se  casam, as ternuras da convivência madura encarnadas por um casal mais  velho e as idealizações do amor que o fixam em estátuas com motivos  variavelmente clássicos e religiosos. 
Entretanto, é num sentido formal  que a disseminação das formas do espelho abre, em Cópia fiel, uma zona de indiferenciação entre arte e vida que está repleta de potência, no encanto do seu jogo:  nos planos que servem de base para o poster do filme, assim como  acontece em outros planos similares com James, vemos Elle se olhando no  espelho, se maquiando, se penteando. Nesses planos, as personagens olham  para a câmera, que ocupa a posição do espelho. 
O olhar das personagens  implica os espectadores na tessitura da imagem e, pela mediação do olhar  da câmera, é nosso olhar – nosso corpo, nossa sensibilidade – que se  encontra acolhido no jogo e é a própria imagem de nossos amores e  desamores que podemos redescobrir no filme. Afinal, no fundo das  aparências, o que interessa em Cópia fiel é justamente a  potência do cinema como cópia infiel da vida, como uma casa de espelhos  que, devolvendo-nos a imagem distorcida de nossos passos no mundo, nos  instiga a buscar a possibilidade de viver novamente: a diferença na  repetição; a mesma vida, outra.
* Marcelo Ribeiro é professor e pesquisador de cinema. 
 

 




12 Comentários
Lisandro, muito obrigado por publicar meu texto aqui no blog. É um espaço de debate que admiro muito e do qual já faz tempo que eu gostaria de participar, como você deve saber. Espero que os leitores gostem do texto e, principalmente, que ele suscite um debate mais amplo sobre esse belo filme de Kiarostami. Abraço!
Esse aí eu vi ao lado do autor do texto. Marcelo e eu empolgadíssimos depois de uma sessão doméstica de um Kiarostami que se excita com as próprias aberturas do filme.
Até lembro de comentar que me lembrou um pouco o Linklater "europeu", só que com mais caminhos. Depois, também me lembrou elementos que o Haneke vem comentando e apontando em toda a sua obra, só que sem o seu requinte de crueza e certa crueldade (no bom sentido).
Assisti Cópia Fiel pela primeira vez ao lado dos camaradas aí de cima. Mas só o primeiro terço do filme. Sei que é um absurdo, mas tinha um compromisso no dia.
Confesso que os deixei, naquele dia, sem estar muito impressionado com o filme. Depois, quando o exibimos no Cineclube Cascavel (a estréia de Cópia Fiel em Goiânia), conferi que se trata mesmo de outra bela produção do Kiarostami!
filme genial do Kiarostami e que cresce sempre mais a cada revisão. Kiarostami continua com seu jeito peculiar de lidar com os atores, investigação que me lembra o que faz Eduardo Coutinho nos seus últimos longas. É uma injeção de frescor na filmografia dele, que vinha com experimentos fortes mas não tão saborosos quanto este último como Shirin e Five. Final poderosíssimo.
Amigos, o Fabiano Camilo fez um excelente comentário sobre minha crítica do filme, lá no incinerrante:
http://incinerrante.com/copia-infiel/#comment-193256709
O que vocês acham?
E um texto do Diego Viana acaba de entrar na conversa. Muito bom:
http://www.amalgama.blog.br/08/2010/copie-conforme-abbas-kiarostami/
Com todo respeito aos textos (o teu tá ótimo mesmo, Marcelo), o melhor texto que li sobre o filme é o do Dimas Tadeu (um colega de twitter que conheci em novembro passado, em SP):
http://pipocamoderna.mtv.uol.com.br/?p=72735
Fabrício: Não entendi o que o Dilmas Tadeu viu de tão desafiador no filme para a teoria da aura do Benjamin. Com certeza há uma discussão da reprodutibilidade no Kiarostami, mas isso não me parece conduzir aos caminhos que o texto dele tentou traçar. Apesar disso, é um texto bem elegante e agradável.
Preciso ver de novo o filme. Mas, de início, o que me desperta para uma linha de leitura é o que o Marcelo disse abaixo:
"a emergência de uma zona de indiferenciação em que arte e vida se confundem, em que toda arte se revela como pulsação de vida e em que toda vida se revela como arte de viver."
Cópia Fiel fala da vida como obra de arte. O diálogo dentro do automóvel sinaliza isso. A vida, tanto quanto a arte, poderia ser definida por autenticidade ou reprodução? O filme se torna grande ao deixar em aberto a possibilidade de as personagens reconstruírem a si mesmas, nesse espelho que o Marcelo comenta. Mas quero rever. E escrever também.
Abraços, amigos.
Fabricio e Rodrigo,
Concordo com sua argumentação, Rodrigo, o texto do Tadeu é muito bom, mas, a meu ver, exagera com esse toque "Benjamim".
Os convido para o debate de quarta: "Os sonhadores". Cine-UFG, 17h30.
Fabrício, eu tinha lido o texto do Tadeu muito tempo antes de escrever o meu e, claro, a referência se perdeu na memória. Mas, ao contrário de você, não gosto do texto dele.
Acho que o que mais me incomoda é a ideia de que "Kiarostami resolve contestar Benjamin", como ele escreve. Por um lado, não penso que a relação entre o que o filme sugere e o pensamento de Benjamin seja de contestação. Por outro lado, não penso que o filme pretenda (ou, para todos os efeitos, que seja capaz de) captar qualquer "essência humana", nem que no filme se inverta a tese do declínio da aura a ponto de se poder afirmar, como faz o Tadeu, que agora é na técnica que a aura "talvez tenha ido pairar".
Aliás, o texto do Tadeu parece pressupor que é bom reencontrar a aura na técnica, mas penso que, em primeiro lugar, os argumentos de Benjamin vão no sentido contrário, sugerindo que o declínio da aura é algo de positivo e promissor, porque carrega um potencial emancipador (eis a potência revolucionária do cinema para Benjamin). Em segundo lugar, o filme de Kiarostami de forma alguma transforma a técnica em refúgio da aura, nem tampouco projeta uma noção de técnica que, "em sua originalidade, é artística", seja lá o que isso quer dizer.
Haveria mais a dizer sobre o texto dele, claro, mas fico por aqui, por ora.
Abraços!
P.S.: Chama o Tadeu pro debate! rs
P.S. 2: Respondi ao comentário do Fabiano Camilo no incinerrante: http://incinerrante.com/copia-infiel/#comment-196002428
Cara, pensei sim em chamar o Tadeu pro debate. Acho que ele ia gostar desse feedback, até porque suas pontuações são bem boas. Mas ainda sou fã desse texto dele. Vou convidá-lo.
Toda a força do cinema do Kiarostami me parece residir num espaço impróprio para a análise. É difícil, Marcelo, analisar isso, mas você mata a charada em poucas linhas no final do texto. Filme certamente cheio de nuances e de poucas saídas fáceis. Saboroso.
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