DEPRESSÃO: DA DOR DE VIVER PARA O VAZIO EXISTENCIAL
"A neurose, para resumi-la muito brevemente, e a depressão entra nisso também, é a busca de um mestre para nos escravizar ”.
Lisandro Nogueira
O senso comum e o discurso científico retiraram as palavras tristeza e melancolia do cotidiano. A palavra depressão tomou o lugar e as pessoas a pronunciam sem saber o real significado. Numa sociedade que exige a motivação durante 24 horas para se tornar competitivo e viver a plenitude do consumo, não há lugar para a inquietude criativa, a tristeza necessária e a curtição da vida com suas naturais oscilações.
Como a angústia faz parte da condição humana e a tendência é de esconde-la e coloca-la “debaixo do tapete”, todos os problemas estão aparentemente resolvidos pela intensa movimentação ( as pessoas não têm tempo para mais nada, a não ser correr em busca da sobrevivência e do medo terrível de “cair no vazio”). Em entrevista, feita em São Paulo, a psicanalista e poeta, Maria Rita Kehl, autora de Sobre Ética e Psicanálise, fala dessas questões e afirma que a depressão não será resolvida com os remédios (os remédios são importantes em casos específicos). A medicalização da vida, acentuada nos dias de hoje, não vai abrir as portas para uma vida mais feliz.
1. Hoje estamos sofrendo os efeitos de uma medicalização acentuada da vida, e uma banalização da idéia de depressão. Ninguém mais fica triste, todo mundo é “deprimido”. Parte da mídia ainda intensifica este discurso. Como você a senhora avalia este fenômeno?
A depressão é a versão patológica da subjetividade. Se o sujeito perdeu alguém e está de luto, diz-se logo que está deprimido para que ele se medique. O outro que está paralisado em um conflito a respeito de suas escolhas de vida também é percebido como deprimido – remédio nele. Com isto, exclui-se a dimensão da subjetividade rica e conflituada, complexa, confusa. O sujeito se libera das tarefas de reflexão, do pensamento, de colocar em palavras seus estados emocionais, de Ter que se entender com o Outro.
O paradoxo é que quanto mais as pessoas se esvaziam de sua condição de sujeitos, mais depressão se produz. Em vez de melhorarem os índices de depressão nas sociedades industrializadas – uma forma de sofrimento mental apontada pela OMS como a de maior crescimento estatístico no mundo, em dimensões epidêmicas – esta abordagem faz aumentar os casos de depressão. As pessoas se medicam, mas perdem a perspectiva de inventar sentidos para a vida, emprestar graça à vida. Sai-se da dor de viver para o vazio.
2. Nesse caso, qual o papel da mídia na divulgação dessa concepção de sujeito como máquina?
MRK – A mídia tem um papel central na sociedade de massas, como grande mediadora e niveladora das imensas diferenças sociais e culturais que a modernidade produziu. Sobretudo a televisão, que é a grande emissora de imagens e discursos que tentam explicar e dar consistência à vida social. No Brasil, onde a analfabetismo ainda é enorme, este papel se acentua – a televisão é que ordena o mundo para a maioria das pessoas, estabelece valores, explica fenômenos e principalmente, em aliança com a publicidade que a sustenta, é a televisão quem propõe sentidos para a vida das pessoas.
Com relação às questões da saúde psíquica, como em tudo o mais, a televisão trabalha com o ponto de vista que interessa à acumulação de capital. A aliança com os interesses da indústria farmacêutica é quase espontânea, isto é: TV e indústria estão imersos no mesmo caldo de cultura. Não quer dizer que o jornalista que faz uma reportagem no Fantástico sobre um novo antidepressivo esteja recebendo propina do laboratório. Quer dizer que o jornalista, o laboratório e a emissora de TV participam da mesma concepção da vida, de que o ideal é viver sem dor nenhuma, anestesiado contra todos os percalços da vida.
A proposta é viver em um mundo totalmente privatizado em que a dor fica fora – fica para o outro, não para mim. Neste mundo o importante é ser um “vencedor”, um privilegiado, capaz de tirar vantagens de todas as situações, etc. O cara que estiver fora disso – e normalmente todos estamos fora disso – precisa tratar da sua depressão.
3. É comum ouvir que a psicanálise faz do analisando um individualista. A senhora diz que a psicanálise é uma teoria das relações entre as pessoas, e não do indivíduo. Como é isso?
MRK – Deixe-me esclarecer que este não é meu modo particular de pensar, mas é um ponto de vista dominante na psicanálise, desde Freud, acentuado pela leitura de Freud feita por Lacan. Para Freud a psicanálise é uma espécie de “psicologia de grupo”. Só se pode entender o homem em relação ao contexto social em que ele vive. Mas isto ainda é pouco. O essencial é que nós não nos constituímos como humanos fora da relação com o outro. Se Robinson Crusoé tivesse um filho e o deixasse sozinho na ilha, em condições (fictícias) de ser alimentado e de sobreviver, ainda assim ele não se subjetivaria como humano.
A subjetividade humana é formatada no contato com o outro: nas demandas de amor dirigidas ao outro, nas defesas que erguemos contra a ameaça que o outro representa, na erotização que o outro produz em nossos corpos, organizando o circuito pulsional.
4. Não existe nisso um paradoxo?
MRK – Não é preciso praticar terapia de grupo para contestar o suposto individualismo da psicanálise – ela já é um percurso no qual o sujeito tem que se deparar com a alteridade (o outro).
A psicanálise visa à cura do sofrimento neurótico, dos excessos de dor psíquica que a neurose produz. Não é uma cura no sentido da eliminação de todo mal estar, de toda a dor de viver, porque os conflitos continuam a se apresentar ao sujeito depois do final da análise, e o inconsciente vai continuar a produzir efeitos. O que uma análise pode obter é que o sujeito se torne menos estranho a este Outro que o habita, que é o inconsciente. Que ele possa abrir mão pelo menos do excesso de defesas neuróticas. Com isto, é possível aliviar o analisando dos excessos sintomáticos de sofrimento.
Mas a questão da filiação da psicanálise ao individualismo contemporâneo é pertinente. Se o analista partir do pressuposto de que o inconsciente é “individual”, ele pode conduzir uma análise no sentido de manter esta ilusão, que é própria da cultura ocidental. O analisando, neste caso, pode terminar a análise sem reconhecer sua dependência em relação ao Outro e aos outros, imaginando-se o pai de si mesmo, autor de suas próprias idéias, dono de seu próprio destino.
Creio que uma análise bem conduzida produza justamente o efeito contrário: faz com que o sujeito tenha que se situar nesse cruzamento, no qual ele não está nem no lugar do indivíduo, que não deve nada a ninguém e não depende de ninguém, nem do lado da extrema alienação do sujeito que quer pensar como todo mundo, ser igual a todo mundo.
Esse é o paradoxo bonito. Você é um só, é único, você só tem essa vida, que para você é realmente uma grande coisa. Tem essa vida para levar da melhor maneira possível, tem que se responsabilizar pelo seu desejo, e para isto você não pode contar só com a sabedoria do eu, pois o inconsciente vai produzir efeitos ao longo de sua vida inteira. Ao mesmo tempo em que você é muita coisa pra você mesmo, você é pouca coisa! Cada um é uma gota d´água no oceano. O que é um ser humano na diante da humanidade? E o que pode o eu, o grande ego inflado das culturas do narcisismo, diante das forças do inconsciente? Um sujeito em análise sofre uma desilusão em relação ao seu narcisismo; percebe que sua vida é única, é tudo o que ele tem, e ao mesmo tempo é insignificante. E diante dessa insignificância ele vai Ter de construir alguma coisa, para que a sua passagem por esse mundo faça algum sentido.
5. O psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro “Sem fraude nem favor”, afirma que: “muitos começam a se convencer de que amar é sofrer e quem não quiser sofrer deve desistir de amar”. A Senhora, em seu livro “Sobre Ética e Psicanálise”, diz que a presença do próximo desestabiliza o sujeito. Como seria possível o amor, a aproximação, se esse outro nos desloca e nos desestabiliza?
MRK É claro que o outro nos desestabiliza. Mais nos desestabiliza quanto mais ele é importante para nós. Digamos que se o outro é uma pessoa para quem você telefona porque quer marcar uma consulta de emprego e ela diz que não pode falar com você agora, você fica preocupado porque talvez não consiga a entrevista, mas não fica sofrendo de dor. Se você liga para uma pessoa por quem está apaixonada e ela diz que não pode falar com você agora, aquilo é um golpe. A dor de que se trata aqui é a dor do narcisismo ferido. Esta é a desestabilização própria do amor. E no entanto, o outro nos desestabiliza na mesma proporção em que nos acrescenta. Vale a pena suportar a desestabilização que o outro me produz em função do que ele me acrescenta.
6. E no amor erótico?
MRK – È a mesma coisa, com o agravante de que no erotismo ocupamos freqüentemente a posição de objeto do desejo do outro, que é tão perigosa quanto fascinante. Essa mesma pessoa que me dá um lugar de ser, na forma de “ser o objeto” para ela de vez em quando me expulsa dalí, me puxa o tapete. Não estamos nem falando de uma grande briga, de um grande abandono. Ficamos fragilizados simplesmente porque o ser amado não reagiu como se esperava, não aceitou um convite, não manifestou desejo de nos ver, etc. A psicanálise, como uma prática que eu diria que é curativa, nos prepara um pouco para o outro, porque o que é a psicanálise? É um trabalho de elaboração da falta, que torna possível suportar essa condição.
A gente espera que, no amor, o outro venha e preencha a nossa falta, como se o amor resolvesse este problema. Ficamos surpresos quando a falta aparece de novo. Quando o outro nos falta ou nos contesta. Um percurso analítico deve tornar uma pessoa mais capaz de conviver com a falta no outro, que é o outro lado da moeda de sua própria falta. Isto nos torna mais capazes de conviver com o outro. Não quer dizer que tudo vai ser resolvido. Nem que por isso a psicanálise seja uma prática cuja finalidade é nos tornar bonzinhos. Pelo contrário, neste sentido a psicanálise nos torna menos convenientes para os outros, porque ficamos um pouco menos covardes. A psicanálise pode fazer de um sujeito tímido e passivo um sujeito brigüeto, por exemplo. Porque se ele agüenta perder uma briga, ele agüenta entrar numa briga. O problema é que se ele não agüenta perder ele nem entra na briga. Dito em outros termos, ele cede de seu desejo para não Ter que se deparar com a castração.
7. No seu último livro a Senhora afirma que a outra conseqüência desse nosso modelo de sociedade é a depressão. Citando a frase: “ O depressivo sofre de uma liberdade conquistada, porque não sabe desfrutá-la”.
MRK – Essa é uma citação da Elisabeth Roudinesco em seu livro Por que a psicanálise? A liberdade conquistada não é de um sujeito. É de nós todos, sujeitos da modernidade. Que vivemos, em uma formação social muito mais rica e diversificada do que os membros das sociedades pré-modernas. A quantidade de possibilidades, a multiplicidade de saber, a facilidade de circular no campo social, passando por vários lugares, não tendo que ocupar um só, são características da modernidade. A possibilidade de mudar de lugar ao longo de uma vida, mais de uma vez, nos dá liberdade mas também nos desampara. A modernidade não nos oferece nenhuma prescrição, nenhum script para nos fazer saber qual deve ser nosso caminho. Cada um tem de escolher, pagando o preço pelas escolhas, responsabilizando-nos pela conseqüências de seus atos.
O sujeito moderno é mais neurótico justamente na medida em que ele é mais responsabilizado. Então, ele fica mais angustiado, mais culpado. A neurose, para resumi-la muito brevemente, e a depressão entra nisso também, é a busca de um mestre para nos escravizar . O neurótico é um escravo à procura de um mestre que nos coloque limites à sua angustiante liberdade, que é a outra face de seu desamparo. Este é o sentido de dizer que o desejo humano é desejo do desejo de um Outro- gostaríamos de nos amparar da condição desejante nos submetendo ao desejo de um Outro. O depressivo é aquele que percebe o campo aberto á frente dele e percebe também o medo que ele tem de ocupar esse campo. Porque dá medo mesmo. Mas a gente tem de saber como enfrentar esse medo, apesar de nossa pequenez.
8. Desfrutar de uma liberdade ganha?
MRK – Sempre lembrando que essa liberdade tem um preço. Se o neurótico não quer pagar o preço ele se encolhe, se limita, abre mão da sua liberdade.
Quem é Maria Rita Kehl
É psicanalista, doutora pela PUC-SP e poeta. Seus ensaios foram publicados na antologia Os Sentidos da Paixão, O Desejo, O Olhar e Ética e Libertinos e Libertários ( Cia das Letras), Um país no Ar e o Cinema nos anos 80 (Brasiliense) e o Cinema no Século ( Imago). Publicou também três livros de poesia: O amor é uma droga pesada (Vertente). Processos Primários (Estação Liberdade) e Imprevisão do Tempo (Vertente).
É autora dos livros Deslocamentos doFeminino e Minima Diferença ( Imago), Sobre Ética e Psicanálise ( Cia das Letras) e O ressentimento (Casa do Psicólogo).* Entrevista realizada em SP. por Lisandro Nogueira e Luciene Godoy Ferraz - em novembro de 2002. Publicada no O Popular em dez. 2002
28 Comentários
Meu caríssimo Lisandro! Que prazer descobrir-te em blog! É uma forma de estar mais perto, visitar os blogs dos amigos. Só hoje tive o prazer de conhecer este e vim deixar um beijo de saudades e dizer que li e gostei, muita coisa interessante, muito cinema, que é do que a gente gosta, e poesia da boa. Voltarei
Maria Eduarda
Minha amiga Maria Eduarda, é um prazer recebê-la aqui no Blog. Você representa todas as mulheres de Portugal. Uma abraço, Lisandro.
Maria Rita está cada vez mais afiada e resume claramente as preocupações da psicanálise hoje. A psicanálise permanece como campo de resistência a redução do homem ao nível biologico não por teimosia, amor ao passado ou reserva de mercado, mas porque trata com com as pessoas que optaram por esse discurso da ciencia e hoje estão, muitas vezes, em situação pior.
O resto da lógica do capital (os desempregados, os deprimidos eternos, os psicoticos etc) não saem na mídia, a não ser como aqueles que não se apropriaram adequadamente ou a tempo das novas descobertas científicas.
Fomos reduzidos (psicanalistas) a fundamentalistas que querem se agarrar ao passado. Em toda entrevista, a velha desconfiança de que não fazemos parte do novo mundo. Como dizia o Francis, hummm........
Enfim, como cantou o Chico: a dor da gente não sai no jornal.
Já que a Maria Eduarda já cá esteve representando as mulheres de Portugal venho agora eu mandar um abraço para representar os mais jovens de Portugal. Assim fica toda a familia.
Um abraço do
Frederico Corado
Fantini, eu acho que sei de onde vem essa sensação de não-pertencimento dos psicanalistas. Acho que o diálogo com o discurso científico é bastante difícil. E a posição em relação a subjetividade também a deixa desprotegida contra os ataques do pós-modernismo. Acho que vale perguntar o que a psicanálise entende por "sujeito" e "ciência". Lembrando sempre que não há uma "psicanálise" como corrente ou discurso monolítico, é mais uma metonímia.
A psicanálise às vezes me fascina. Geralmente, nessa sociedade moderna que Maria Rita cita, as pessoas se angustiam por causa do amor. O amor perdido, o não correspondido, o amor que ainda não teve. E que contradição é o amor! Muitos têm medo de nunca ter um, outros têm medo de perder o que já tem e quantos sofrem apenas por ter medo. Penso que todos esses precisam de análise com a mesma dose. Na verdade, penso que o maior problema é justamente esse, o medo.
É Daniel, de fato as psicanálises são muitas, porém todas deveriam estar alertas contra o discurso da ciência que ganhou um estatuto de verdade do fim da história.
Quando perguntaram a Lacan na sua chegada aos EUA sobre o triunfo da psicanáise ele alertou sobre o possível fim dela e escreveu sobre o triunfo da religião. Enfim, a questão é a seguinte caro Daniel: a ciencia não dá nenhum sentido a vida, vide a expansão das religioes e seitas em todo o mundo..
e sem isso, como disse a Maria Rita, resta a depressão.
Off Topic, mas VIVA O BARUERI! E Viva o Túlio, que mesmo fora do Goiás, continua nos dando alegrias!
Off Topic: estamos (Vila Nova) em luto!!, caro Randal. Mas ainda vamos para a série
A.
Olá Frederico, Portugal no blog: que bom!! Vamos conversar sobre cinema e cultura. Um abraço, Lisandro.
Pois é, Fantini, esse discurso que prega a ciência como resposta para nossos problemas existenciais é um filho direto do cientificismo iluminista. Assim como a psicanálise é, também, uma filha do iluminismo. Esta tensão já está lá no velho Freud.
A noção de racionalidade é fundamental aqui e, neste particular, creio que a ciência recuou da pretensão de ser referência para a racionalidade. Talvez esteja aí uma resposta possível às religiões e ao irracionalismo pós-moderno. Uma outra idéia de racionalidade. Acho que a psicanálise pode ajudar - e muito - nesta discussão.
Do contrário resta-nos apenas a religião. Mas ela não consegue tampouco explicar o mundo senão nos forçando a abandoná-lo. Creio que esta seja a questão para o pensamento contemporâneo.
Olá Daniel,um trecho do seu comentário me chamou a atenção: "...a ciência recuou da pretensão de ser referência para a racionalidade". Posso estar enganado, mas a acentuada "medicalização da vida" é amparada no discurso científico. Os psiquiatras em geral têm esse discurso do amparo na ciência. Penso que a epidemia de diagnósticos de depressão, a equivocada formação dos novos psis (psiquiatras, psicólogos e psicanalistas) e a elevada pretensão de estar "fazendo ciência", é baseada numa festejada racionalidade. Não por acaso, os psiquiatras clássicos e intimamente ligados ao grande sistema da "indústria dos remédios", não cansam de fazer apologia da nova ciência. Não muito longe, mas em outra chave, boa parte dos psicólogos advogam a tese da "boa conduta racional". Por outro lado, concordo com você que a psicanálise pode, e muito, contribuir para pensar uma outra "racionalidade". Pena que, de uma maneira geral, ela esteja muito ligada a normatizações dos comportamentos contemporâneos e bastante dividida em grupos e mais grupos que se distanciam cada vez mais.
Lisandro, o que é a racionalidade científica? É método. E o método está fundamentado numa epistemologia, isto é, numa teoria do objeto - como ele é possível, de que modo podemos reconstruí-lo em teoria e o que se pode entender como conhecimento derivado deste objeto. O método científico fundamenta-se numa epistemologia que referencia uma idéia de verdade. A ciência clássica fundamentava essa noção de verdade a partir da idéia de natureza.
Quem deu forma a esse ideal epistemológico foi Newton, nos Principia Mathemática com suas regras para pensar corretamente. Segundo o Newton, fazemos ciência quando submetemos nossas teorias às seguintes regras: 1) simplicidade; 2)universalidade (uniformidade e homogeneidade); 3) experiência. Ora, isso aí é também uma idéia de como a natureza funciona, ou seja, como o objeto se estrutura para nos referenciar o conhecimento. É uma teoria da verdade.
Pois bem, essa idéia de natureza - metafísica em sua essência - não sobreviveu às descobertas da física no início do século XX. Assim, uma verdade universal, simples e de acordo com a experiência perdeu seu sentido para a ciência.
A força do discurso científico associada à noção de saúde - talvez a noção que substitui a de natureza para o conhecimento dos psis - não é, acredito eu, epistemológica. Tem a ver muito mais com elemento socioculturais da modernidade.
Por um lado, há o elemento experimental - quase positivista - da medicação. Sem dúvida os remédios antidepressivos funcionam alterando a química corporal e produzindo os efeitos esperados. Por outro lado, há uma concepção sobre os modos de vida na modernidade que reforça a idéia de uma racionalidade das soluções, do auto-conhecimento. Giddens chama isso de "reflexividade". Nele entra não só um discurso cientificista dos efeitos imediatos, mas também as soluções mágicas das religiões e da auto-ajuda.
Como os médicos em geral não pensam sobre si mesmos no contexto mais geral da modernidade, tornam-se presas fáceis deste discurso falsamente reflexivo. Não é culpa da ciência, ela já entrou em crise e encontrou modos de repensar sua prática. É menos um problema da ciência do que da modernidade que transformou o método científico em discurso mágico para fundamentar uma noção de indivíduo e de saúde como fruição de prazer, de consumo desimpedido. Acho que é por aí.
Professor,
Antes de qualquer coisa,como eu demorei pra comentar aqui não?Enfim, o tema me ganhou.
A primeira coisa que me veio na cabeça quando comecei a ler a entrevista da psicanalista Maria Rita Kehl foi a relação que se pode estabelecer entre ela e os textos de Ben Singer. Tanto num contexto do ambiente ideal/propício para o cinema, quanto no da influência do jornalista sobre a vida do sujeito moderno.
Quando se lê "Modernidade,hiperestímulo e o início do sensacionlismo", duas coisas ficam claras:como o ambiente urbano afeta o homem e como essa transformação da cidade cria,no homem, um "apetite por choques intensos" e a consequente aceitação e gosto pelo novo fascínio: o cinema.
A motivação que B.S. chama de 'desamparo ideológico' e que M.R.K entitula 'vazio existencial' é a mesma. São ambas consequencias do impacto das transformações da sociedade sobre o homem.
O capitalismo e agilidade descritos por B.S. são a origem da descartabilidade do homem, o qual passa a ser uma mercadoria num contexto social. Ele estuda e especializa-se para oferecer e vender,ou não, seu conhecimento por determinado preço.
A 'liberdade' que o homem passa a experimentar é,de fato, dúbia e paradoxal.De um lado, ele pode ser o que quiser.De outro,contudo,caso ele não o seja, certamente um outro sujeito será em seu lugar.No momento em que o homem se vê detro dessa realidade,apesar de ser um mundo moderno e cheio de possibilidades,é,para ele, principalmente um choque e um confronto com uma sociedade em que ele sente um vazio sem tamanho por ser perfeitamente substitutível.
O capitalismo,reforçado pela mídia, exige do sujeito "motivação durante 24 horas para se tornar competitivo e viver a plenitude do consumo".Essa exigência não deixa brechas para que a tristeza e a melancolia tenham espaço nas relações socias.Daí,aquele que apresente tais 'sinais' é visto como doente/deprimido a ser medicado. A sociedade espera que a angústia que o homem venha a sentir seja "colocada para debaixo do tapete" e que o sujeito torne-se,novamente,produtivo.
Cabe a imprensa,seja através do jornalismo ou do cinema,desmistificar tais idéias para que a sociedade deixae de ver o homem deprimido como uma máquina com necessidade de reparos.
Ficou muito "jornalismo-heróico".Pode me bater.
Caro Daniel,
Os remédios são feitos por cientistas: passam pelas fases do Newton. Eles pretendem curar uma doença universal (a depressão, segundo eles, biológica - está no organismo),fazem experiências em laboratórios, comprovam a veracidade e aplicação das fórmulas com testes e mais testes. Fazem a verificação científica das descobertas. Então podemos chamar de ciência ou apenas de técnica? O discurso médico da psiquiatria descarta ser somente uma técnica. Outra coisa: é possível separar a ciência da modernidade? As "teorias da verdade" não estariam validando todo esse processo de "cientifização" do mundo? Ou não dão conta no novo processo do mundo? Tenho dúvidas se a ciência pode ser vista "em separado". Mas penso que você pode esclarecer melhor essas questões.
Olá Estela, bela lembrança a do Singer (Ben Singer - texto do livro "O cinema e a invenção da vida moderna" - Cosac & Naify - org. por Ismail Xavier). Penso que o cinema e o jornalismo podem contribuir para pensar essas questões já antigas. Esse ideário científico é quase hegemônico e podemos repensá-lo com os instrumentos que possuimos. Temos uma necessidade enorme de novas reflexões que possam abarcar toda essa complexidade. Mesmo porque o preço que pagamos é grandioso e nos debilita no cotidiano. Outra coisa: o conceito de depressão precisa de novas abordagens. Não há dúvida que a vida cotidiana é estimuladora de comportamentos "depressivos". Mas combater só os sintomas é uma atitude limitada. Os sintomas se tornaram um "modo de vida" e estão se enraizando - já podemos falar de uma "sociedade depressiva"?
ps- não ficou "jornalismo-heróico", não.
Lisandro, o que eu quero separar é o seguinte: ciência é método, e isso não vai mudar. Os remédios são importantes e provam que o método científico funciona. Se você estiver com febre precisará de um antibiótico, do contrário pode morrer. Este é o escopo do saber científico: usar ferramentas metodológicas para solucionar um problema bastante específico. É o que os americanos chamam "tinkering", ou seja, hipóteses, testes, revisões, outros testes, confirmações, novas hipóteses e daí o círculo recomeça.
O que acabou, penso eu, foi a pretensão da ciência de explicar o "homem" como se fosse uma categoria universal. Não há mais uma teoria unificada na ciência, assim como havia com Newton.
O ponto aqui é identificar quando o discurso científico tornou-se um discurso sobre o Homem, sobre o mundo, com a pretensão de explicá-lo em termos científicos. Há um fetiche da ciência, e interessa saber como ele veio a ser. Mas esse discurso "mágico" não é ciência. É ideologia.
A depressão possui uma componente bioquímico? Sim. Mas ela é só isso? Não, dizem os psicanalistas. A depressão extrapola os limites do método científico, acessando discursos cuja noção de verdade se afasta daquele ideal newtoniano. A ciência não tem problema com isso, mas a ideologia que eu chamo cientificista tem. Não vamos jogar a criança fora junto com a água da bacia.
Olá Daniel, bom esclarecimento. Sim, é ideologia. Mas ainda não consigo ver essa separação tão clara. A ciência promove tb. ideologias. Ou estou enganado? Ela não é imune e se mistura com o cientificismo. Em alguns momentos, como esse que vivemos agora, ela está fortemente ligada com o grande aparato médico da psiquiatria. Concordo com os seus termos. Mas penso ser complicado vê-la (ciência) tão isenta de todo esse processo.
Aí, meu caro, entramos nos meandros de uma sociologia da ciência. Esse discurso ideológico tem um alvo bem claro: o desenho institucional de financiamento das pesquisas, seja ele privado ou estatal. Esse discurso cientificista defende, com unhas e dentes, a relevância do saber científico para a sociedade. Invista em ciência que os ganhos são não apenas garantidos, mas quantificáveis. Como você acha que a tecnologia que alimenta nossa sala (wireless, ar condicionado, frigobar) veio a ser? No contexto estritamente mercadológico.
As ciência humanas, por não poderem apresentar a mesma validade e confiabilidade metodológica das outras ciências, está perdendo a batalha. O mais pernicioso, como você mesmo sabe, é a importação de um modelo produtivista baseado nos "nutshells" ou papers. É impossível discutir academicamente uma tese sobre cinema num paper de 20 páginas. A morte do ensaio é um termômetro do quando estamos perdendo terreno no âmbito acadêmico para esse discurso ideológico que embrulha o conhecimento científico num pacote "mágico" de soluções universais e finais para os males da civilização.
Mas como eu disse para você e o Pierre, o que podemos fazer é ser sinceros quanto às nossas questões intelectuais pessoais, e procurar vivê-las de modo a ceder o mínimo possível aos nossos inimigos. Em qualquer lugar é sempre possível tocar o projeto de tornar-se um ser humano melhor. Isso é o relevante.
Dando meu pitaco:
Sou simpático à MRK. Ela, em minha juventude, teve um impacto importante. Falava-me de Jung e era um novo horizonte. Mas era um tempo em que acreditava mais no sujeito do que agora. Acho, hoje, que ela acerta mais quando erra (como é lindo jogar com palavras!). O sujeito não existe (leiam isso como uma tese humeano-nistscheana). A entrevista mostra o quanto a psicanálise se contorce para acomodar opostos e tudo em nome da "profundidade" (teria sido melhor assumir a poesia!). No meio do texto ela fala de que não há sujeito, fala que somos nas relações com o outro, mas tudo na teoria, e no iício e fim da entrevista, gira em torno do sujeito, do indivíduo (inconsciente, "resolver as suas dores" etc). Como apontam os filósofos que mencionei, nossa linguagem é que cria o sujeito. Em certo sentido , então, essa é uma armadilha, mas uma da qual MRK não se dá conta. A intuição correta me parece a de que não temos uma alma e que são nossas relações que podem ir bem ou mal. O inconsciente é público e não privado! Esse discurso não tem nada de oposto ao cientificismo. Ele é perfeitamente naturalizável, pois diz que nosso "interior" é reflexo de nossa conexões com o exterior. Enquanto as ciências humanas não abdicarem de um reino mítico de investigação ao qual nosso acesso tem de se dar apenas por metáforas e jogos de palavras (um acesso poético, por exemplo) não faremos progresso cognitivo. Isso é teologia laica. A tendência a lidar com contraditórios e apresentar isso como conhecimento é um desastre. Faço andarem juntos o eu e os outros, o reconhecer que sou relações e o conhecer-me a mim mesmo, o aceitar e o ser mais brigüento, o fim do sujeito e a crítica ao capitalismo que destrói o sujeito. Depois disso, dou ao discurso um tom edificante e pronto, todo mundo já pode me aplaudir, porque, afinal, só desejo melhorar o homem. Essa sopa dá bom entretenimento, boa poesia, até, se houver talento, mas esclarece muito pouco. É, pois, má filosofia, má ciência e má teoria. E no entanto, ela, e até a psicanálise, conseguem dizer coisas interessantes sobre o homem e o fazem porque a prática terapêutica toca necessidades profundas e naturais nossas. Assim, acerta no erro: acerta no contato humano e erra na teoria. Esclareço, por fim, a minha dicotomia.
Apesar da condição de, para mim, musa, como poeta e como mulher, de Maria Rita Kehl, simpatizo mais com a posição de Adriano, no mínimo (apesar de que ele não citou esse autor), porque aceito a lição de Popper sobre a psicanálise não poder ser falsificada (o que também vale para o marxismo).
Mas queria dirigir ao Adriano (e a outras pessoas com perspectiva semelhante) uma pergunta e um comentário: qual o problema de uma "teologia laica" (por que isso foi usado em seu discurso para estigmatizar algo?), se partirmos do pressuposto de que a(s) divindade(s) é um assunto importante demais para ficar sob o controle dos eclesiásticos? Comentário: sua preocupação, a julgar por essa observação a MRK, parece resumir-se ao "progresso cognitivo", e a querer sempre "esclarecer, esclarecer". Não há muito mais em jogo?
Bom, penso que o que está em jogo não é a verdade. Sobre verdade todos concordam - ao menos quando os interlocutores são bons - não há consenso nem mesmo dentro do discurso das ciências duras.
O problema é o Sentido. Isso o discurso cientifico não dá, e pior, procura escamotear. Não dá para reproduzir e esbarra sempre no discurso religioso.
Talvez, depois do sexo na época freudiana, o sentido seja hoje o 'segredo sujo'..
(achou exotérico? procure um cientista ateu)
Bom demais visitar o seu blog, Lisandro. Adorei a entrevista com MRK e mais ainda os comentários! Bons textos e boas discussões. Acho que a afirmação do vazio possibilita esta riqueza de posições. Um beijo.
Olá Luciana,
Venha sempre!!! É um prazer recebê-la. Esses debates são importantes. Não deixe de participar dos comentários dos filmes. Um abraço,
Caro João,
com "teologia laica" queria indicar a inclinação, comum nas ciências humanas, para o discurso sem objeto: tem-se uma gramática, mas não uma semântica.
Se entendo bem o se clamor pelo "mais", concordo. A vida é mais do que ciência. Nesse sentido, é arte tb, mas não se pode querer, impunemente, fazer os dois, arte e ciência. Em geral, quando se o tenta, não se faz nenhuma delas. O jogo da ciência é esclarecer, o da arte não.
Exato Adriano. A ciência sempre esquece que não basta 'descobrir' algo. É preciso usar uma linguagem qualquer para comunicar e aí, para dor de alguns cientistas, tem que recorrer ao jogo de significantes reunidos em um discurso onde o sentido é dado de outro lugar, onde as coisas e objetos não tem o status Real que estes cientistas confundem com a verdade. Daí o recurso, por exemplo, das imagens do cérebro serem oferecidas como uma prova 'real' das descobertas. Porém sempre, o que está em jogo, é a leitura - em palavras - que será feita delas....
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