segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Depressão: da dor de viver para o vazio existencial

DEPRESSÃO: DA DOR DE VIVER PARA O VAZIO EXISTENCIAL

"A neurose, para resumi-la muito brevemente, e a depressão entra nisso também, é a busca de um mestre para nos escravizar ”.

Entrevista* com a psicanalista Maria Rita Kehl

Lisandro Nogueira

O senso comum e o discurso científico retiraram as palavras tristeza e melancolia do cotidiano. A palavra depressão tomou o lugar e as pessoas a pronunciam sem saber o real significado. Numa sociedade que exige a motivação durante 24 horas para se tornar competitivo e viver a plenitude do consumo, não há lugar para a inquietude criativa, a tristeza necessária e a curtição da vida com suas naturais oscilações.

Como a angústia faz parte da condição humana e a tendência é de esconde-la e coloca-la “debaixo do tapete”, todos os problemas estão aparentemente resolvidos pela intensa movimentação ( as pessoas não têm tempo para mais nada, a não ser correr em busca da sobrevivência e do medo terrível de “cair no vazio”). Em entrevista, feita em São Paulo, a psicanalista e poeta, Maria Rita Kehl, autora de Sobre Ética e Psicanálise, fala dessas questões e afirma que a depressão não será resolvida com os remédios (os remédios são importantes em casos específicos). A medicalização da vida, acentuada nos dias de hoje, não vai abrir as portas para uma vida mais feliz.

1. Hoje estamos sofrendo os efeitos de uma medicalização acentuada da vida, e uma banalização da idéia de depressão. Ninguém mais fica triste, todo mundo é “deprimido”. Parte da mídia ainda intensifica este discurso. Como você a senhora avalia este fenômeno?

MRK – Tenho observado que isto não é apenas efeito da expansão da indústria farmacêutica, mas do ideário científico. O discurso científico hoje está no lugar da verdade, lugar que ficou vazio nas sociedades laicas modernas. A ciência ocupou este lugar em função do ideal de objetividade que ela representa. No discurso das ciências bio-médicas, o homem – não só o corpo, mas tudo o que é da ordem do humano – é representado como uma máquina funcionante. Ora, nós sabemos que somos afetados não só pela ação do mundo exterior mas por nossos próprios estados internos. Somos afetados pelas paixões, pela tristeza, pela alegria, pelas fantasias, pelos desejos. Tudo isso precisa encontrar lugar na linguagem para ser suportável. Mas de acordo com o ideário científico, muito caro à ordem capitalista, nós somos máquinas em perfeitas condições de funcionamento que, de vez em quando, sofrem distúrbios. Trata-se então de consertar o distúrbio, repor a substância química que está faltando para o bom funcionamento voltar.


A depressão é a versão patológica da subjetividade. Se o sujeito perdeu alguém e está de luto, diz-se logo que está deprimido para que ele se medique. O outro que está paralisado em um conflito a respeito de suas escolhas de vida também é percebido como deprimido – remédio nele. Com isto, exclui-se a dimensão da subjetividade rica e conflituada, complexa, confusa. O sujeito se libera das tarefas de reflexão, do pensamento, de colocar em palavras seus estados emocionais, de Ter que se entender com o Outro.

O paradoxo é que quanto mais as pessoas se esvaziam de sua condição de sujeitos, mais depressão se produz. Em vez de melhorarem os índices de depressão nas sociedades industrializadas – uma forma de sofrimento mental apontada pela OMS como a de maior crescimento estatístico no mundo, em dimensões epidêmicas – esta abordagem faz aumentar os casos de depressão. As pessoas se medicam, mas perdem a perspectiva de inventar sentidos para a vida, emprestar graça à vida. Sai-se da dor de viver para o vazio.

2. Nesse caso, qual o papel da mídia na divulgação dessa concepção de sujeito como máquina?


MRK – A mídia tem um papel central na sociedade de massas, como grande mediadora e niveladora das imensas diferenças sociais e culturais que a modernidade produziu. Sobretudo a televisão, que é a grande emissora de imagens e discursos que tentam explicar e dar consistência à vida social. No Brasil, onde a analfabetismo ainda é enorme, este papel se acentua – a televisão é que ordena o mundo para a maioria das pessoas, estabelece valores, explica fenômenos e principalmente, em aliança com a publicidade que a sustenta, é a televisão quem propõe sentidos para a vida das pessoas.


Com relação às questões da saúde psíquica, como em tudo o mais, a televisão trabalha com o ponto de vista que interessa à acumulação de capital. A aliança com os interesses da indústria farmacêutica é quase espontânea, isto é: TV e indústria estão imersos no mesmo caldo de cultura. Não quer dizer que o jornalista que faz uma reportagem no Fantástico sobre um novo antidepressivo esteja recebendo propina do laboratório. Quer dizer que o jornalista, o laboratório e a emissora de TV participam da mesma concepção da vida, de que o ideal é viver sem dor nenhuma, anestesiado contra todos os percalços da vida.


A proposta é viver em um mundo totalmente privatizado em que a dor fica fora – fica para o outro, não para mim. Neste mundo o importante é ser um “vencedor”, um privilegiado, capaz de tirar vantagens de todas as situações, etc. O cara que estiver fora disso – e normalmente todos estamos fora disso – precisa tratar da sua depressão.

3. É comum ouvir que a psicanálise faz do analisando um individualista. A senhora diz que a psicanálise é uma teoria das relações entre as pessoas, e não do indivíduo. Como é isso?

MRK – Deixe-me esclarecer que este não é meu modo particular de pensar, mas é um ponto de vista dominante na psicanálise, desde Freud, acentuado pela leitura de Freud feita por Lacan. Para Freud a psicanálise é uma espécie de “psicologia de grupo”. Só se pode entender o homem em relação ao contexto social em que ele vive. Mas isto ainda é pouco. O essencial é que nós não nos constituímos como humanos fora da relação com o outro. Se Robinson Crusoé tivesse um filho e o deixasse sozinho na ilha, em condições (fictícias) de ser alimentado e de sobreviver, ainda assim ele não se subjetivaria como humano.
A subjetividade humana é formatada no contato com o outro: nas demandas de amor dirigidas ao outro, nas defesas que erguemos contra a ameaça que o outro representa, na erotização que o outro produz em nossos corpos, organizando o circuito pulsional.

4. Não existe nisso um paradoxo?

MRK – Não é preciso praticar terapia de grupo para contestar o suposto individualismo da psicanálise – ela já é um percurso no qual o sujeito tem que se deparar com a alteridade (o outro).
A psicanálise visa à cura do sofrimento neurótico, dos excessos de dor psíquica que a neurose produz. Não é uma cura no sentido da eliminação de todo mal estar, de toda a dor de viver, porque os conflitos continuam a se apresentar ao sujeito depois do final da análise, e o inconsciente vai continuar a produzir efeitos. O que uma análise pode obter é que o sujeito se torne menos estranho a este Outro que o habita, que é o inconsciente. Que ele possa abrir mão pelo menos do excesso de defesas neuróticas. Com isto, é possível aliviar o analisando dos excessos sintomáticos de sofrimento.


Mas a questão da filiação da psicanálise ao individualismo contemporâneo é pertinente. Se o analista partir do pressuposto de que o inconsciente é “individual”, ele pode conduzir uma análise no sentido de manter esta ilusão, que é própria da cultura ocidental. O analisando, neste caso, pode terminar a análise sem reconhecer sua dependência em relação ao Outro e aos outros, imaginando-se o pai de si mesmo, autor de suas próprias idéias, dono de seu próprio destino.


Creio que uma análise bem conduzida produza justamente o efeito contrário: faz com que o sujeito tenha que se situar nesse cruzamento, no qual ele não está nem no lugar do indivíduo, que não deve nada a ninguém e não depende de ninguém, nem do lado da extrema alienação do sujeito que quer pensar como todo mundo, ser igual a todo mundo.


Esse é o paradoxo bonito. Você é um só, é único, você só tem essa vida, que para você é realmente uma grande coisa. Tem essa vida para levar da melhor maneira possível, tem que se responsabilizar pelo seu desejo, e para isto você não pode contar só com a sabedoria do eu, pois o inconsciente vai produzir efeitos ao longo de sua vida inteira. Ao mesmo tempo em que você é muita coisa pra você mesmo, você é pouca coisa! Cada um é uma gota d´água no oceano. O que é um ser humano na diante da humanidade? E o que pode o eu, o grande ego inflado das culturas do narcisismo, diante das forças do inconsciente? Um sujeito em análise sofre uma desilusão em relação ao seu narcisismo; percebe que sua vida é única, é tudo o que ele tem, e ao mesmo tempo é insignificante. E diante dessa insignificância ele vai Ter de construir alguma coisa, para que a sua passagem por esse mundo faça algum sentido.

5. O psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro “Sem fraude nem favor”, afirma que: “muitos começam a se convencer de que amar é sofrer e quem não quiser sofrer deve desistir de amar”. A Senhora, em seu livro “Sobre Ética e Psicanálise”, diz que a presença do próximo desestabiliza o sujeito. Como seria possível o amor, a aproximação, se esse outro nos desloca e nos desestabiliza?

MRK É claro que o outro nos desestabiliza. Mais nos desestabiliza quanto mais ele é importante para nós. Digamos que se o outro é uma pessoa para quem você telefona porque quer marcar uma consulta de emprego e ela diz que não pode falar com você agora, você fica preocupado porque talvez não consiga a entrevista, mas não fica sofrendo de dor. Se você liga para uma pessoa por quem está apaixonada e ela diz que não pode falar com você agora, aquilo é um golpe. A dor de que se trata aqui é a dor do narcisismo ferido. Esta é a desestabilização própria do amor. E no entanto, o outro nos desestabiliza na mesma proporção em que nos acrescenta. Vale a pena suportar a desestabilização que o outro me produz em função do que ele me acrescenta.

6. E no amor erótico?

MRK – È a mesma coisa, com o agravante de que no erotismo ocupamos freqüentemente a posição de objeto do desejo do outro, que é tão perigosa quanto fascinante. Essa mesma pessoa que me dá um lugar de ser, na forma de “ser o objeto” para ela de vez em quando me expulsa dalí, me puxa o tapete. Não estamos nem falando de uma grande briga, de um grande abandono. Ficamos fragilizados simplesmente porque o ser amado não reagiu como se esperava, não aceitou um convite, não manifestou desejo de nos ver, etc. A psicanálise, como uma prática que eu diria que é curativa, nos prepara um pouco para o outro, porque o que é a psicanálise? É um trabalho de elaboração da falta, que torna possível suportar essa condição.


A gente espera que, no amor, o outro venha e preencha a nossa falta, como se o amor resolvesse este problema. Ficamos surpresos quando a falta aparece de novo. Quando o outro nos falta ou nos contesta. Um percurso analítico deve tornar uma pessoa mais capaz de conviver com a falta no outro, que é o outro lado da moeda de sua própria falta. Isto nos torna mais capazes de conviver com o outro. Não quer dizer que tudo vai ser resolvido. Nem que por isso a psicanálise seja uma prática cuja finalidade é nos tornar bonzinhos. Pelo contrário, neste sentido a psicanálise nos torna menos convenientes para os outros, porque ficamos um pouco menos covardes. A psicanálise pode fazer de um sujeito tímido e passivo um sujeito brigüeto, por exemplo. Porque se ele agüenta perder uma briga, ele agüenta entrar numa briga. O problema é que se ele não agüenta perder ele nem entra na briga. Dito em outros termos, ele cede de seu desejo para não Ter que se deparar com a castração.

7. No seu último livro a Senhora afirma que a outra conseqüência desse nosso modelo de sociedade é a depressão. Citando a frase: “ O depressivo sofre de uma liberdade conquistada, porque não sabe desfrutá-la”.

MRK – Essa é uma citação da Elisabeth Roudinesco em seu livro Por que a psicanálise? A liberdade conquistada não é de um sujeito. É de nós todos, sujeitos da modernidade. Que vivemos, em uma formação social muito mais rica e diversificada do que os membros das sociedades pré-modernas. A quantidade de possibilidades, a multiplicidade de saber, a facilidade de circular no campo social, passando por vários lugares, não tendo que ocupar um só, são características da modernidade. A possibilidade de mudar de lugar ao longo de uma vida, mais de uma vez, nos dá liberdade mas também nos desampara. A modernidade não nos oferece nenhuma prescrição, nenhum script para nos fazer saber qual deve ser nosso caminho. Cada um tem de escolher, pagando o preço pelas escolhas, responsabilizando-nos pela conseqüências de seus atos.
O sujeito moderno é mais neurótico justamente na medida em que ele é mais responsabilizado. Então, ele fica mais angustiado, mais culpado. A neurose, para resumi-la muito brevemente, e a depressão entra nisso também, é a busca de um mestre para nos escravizar . O neurótico é um escravo à procura de um mestre que nos coloque limites à sua angustiante liberdade, que é a outra face de seu desamparo. Este é o sentido de dizer que o desejo humano é desejo do desejo de um Outro- gostaríamos de nos amparar da condição desejante nos submetendo ao desejo de um Outro. O depressivo é aquele que percebe o campo aberto á frente dele e percebe também o medo que ele tem de ocupar esse campo. Porque dá medo mesmo. Mas a gente tem de saber como enfrentar esse medo, apesar de nossa pequenez.

8. Desfrutar de uma liberdade ganha?
MRK – Sempre lembrando que essa liberdade tem um preço. Se o neurótico não quer pagar o preço ele se encolhe, se limita, abre mão da sua liberdade.


Quem é Maria Rita Kehl

É psicanalista, doutora pela PUC-SP e poeta. Seus ensaios foram publicados na antologia Os Sentidos da Paixão, O Desejo, O Olhar e Ética e Libertinos e Libertários ( Cia das Letras), Um país no Ar e o Cinema nos anos 80 (Brasiliense) e o Cinema no Século ( Imago). Publicou também três livros de poesia: O amor é uma droga pesada (Vertente). Processos Primários (Estação Liberdade) e Imprevisão do Tempo (Vertente).
É autora dos livros Deslocamentos doFeminino e Minima Diferença ( Imago), Sobre Ética e Psicanálise ( Cia das Letras) e O ressentimento (Casa do Psicólogo).* Entrevista realizada em SP. por Lisandro Nogueira e Luciene Godoy Ferraz - em novembro de 2002. Publicada no O Popular em dez. 2002

28 Comentários

Maria Eduarda Colares disse...

Meu caríssimo Lisandro! Que prazer descobrir-te em blog! É uma forma de estar mais perto, visitar os blogs dos amigos. Só hoje tive o prazer de conhecer este e vim deixar um beijo de saudades e dizer que li e gostei, muita coisa interessante, muito cinema, que é do que a gente gosta, e poesia da boa. Voltarei
Maria Eduarda

Lisandro Nogueira disse...

Minha amiga Maria Eduarda, é um prazer recebê-la aqui no Blog. Você representa todas as mulheres de Portugal. Uma abraço, Lisandro.

João A Fantini disse...

Maria Rita está cada vez mais afiada e resume claramente as preocupações da psicanálise hoje. A psicanálise permanece como campo de resistência a redução do homem ao nível biologico não por teimosia, amor ao passado ou reserva de mercado, mas porque trata com com as pessoas que optaram por esse discurso da ciencia e hoje estão, muitas vezes, em situação pior.
O resto da lógica do capital (os desempregados, os deprimidos eternos, os psicoticos etc) não saem na mídia, a não ser como aqueles que não se apropriaram adequadamente ou a tempo das novas descobertas científicas.
Fomos reduzidos (psicanalistas) a fundamentalistas que querem se agarrar ao passado. Em toda entrevista, a velha desconfiança de que não fazemos parte do novo mundo. Como dizia o Francis, hummm........
Enfim, como cantou o Chico: a dor da gente não sai no jornal.

fcorado disse...

Já que a Maria Eduarda já cá esteve representando as mulheres de Portugal venho agora eu mandar um abraço para representar os mais jovens de Portugal. Assim fica toda a familia.
Um abraço do
Frederico Corado

Daniel Christino disse...

Fantini, eu acho que sei de onde vem essa sensação de não-pertencimento dos psicanalistas. Acho que o diálogo com o discurso científico é bastante difícil. E a posição em relação a subjetividade também a deixa desprotegida contra os ataques do pós-modernismo. Acho que vale perguntar o que a psicanálise entende por "sujeito" e "ciência". Lembrando sempre que não há uma "psicanálise" como corrente ou discurso monolítico, é mais uma metonímia.

Anônimo disse...

A psicanálise às vezes me fascina. Geralmente, nessa sociedade moderna que Maria Rita cita, as pessoas se angustiam por causa do amor. O amor perdido, o não correspondido, o amor que ainda não teve. E que contradição é o amor! Muitos têm medo de nunca ter um, outros têm medo de perder o que já tem e quantos sofrem apenas por ter medo. Penso que todos esses precisam de análise com a mesma dose. Na verdade, penso que o maior problema é justamente esse, o medo.

João A Fantini disse...

É Daniel, de fato as psicanálises são muitas, porém todas deveriam estar alertas contra o discurso da ciência que ganhou um estatuto de verdade do fim da história.
Quando perguntaram a Lacan na sua chegada aos EUA sobre o triunfo da psicanáise ele alertou sobre o possível fim dela e escreveu sobre o triunfo da religião. Enfim, a questão é a seguinte caro Daniel: a ciencia não dá nenhum sentido a vida, vide a expansão das religioes e seitas em todo o mundo..
e sem isso, como disse a Maria Rita, resta a depressão.

Anônimo disse...

Off Topic, mas VIVA O BARUERI! E Viva o Túlio, que mesmo fora do Goiás, continua nos dando alegrias!

Lisandro Nogueira disse...

Off Topic: estamos (Vila Nova) em luto!!, caro Randal. Mas ainda vamos para a série
A.

Lisandro Nogueira disse...

Olá Frederico, Portugal no blog: que bom!! Vamos conversar sobre cinema e cultura. Um abraço, Lisandro.

Daniel Christino disse...

Pois é, Fantini, esse discurso que prega a ciência como resposta para nossos problemas existenciais é um filho direto do cientificismo iluminista. Assim como a psicanálise é, também, uma filha do iluminismo. Esta tensão já está lá no velho Freud.

A noção de racionalidade é fundamental aqui e, neste particular, creio que a ciência recuou da pretensão de ser referência para a racionalidade. Talvez esteja aí uma resposta possível às religiões e ao irracionalismo pós-moderno. Uma outra idéia de racionalidade. Acho que a psicanálise pode ajudar - e muito - nesta discussão.

Do contrário resta-nos apenas a religião. Mas ela não consegue tampouco explicar o mundo senão nos forçando a abandoná-lo. Creio que esta seja a questão para o pensamento contemporâneo.

Lisandro Nogueira disse...

Olá Daniel,um trecho do seu comentário me chamou a atenção: "...a ciência recuou da pretensão de ser referência para a racionalidade". Posso estar enganado, mas a acentuada "medicalização da vida" é amparada no discurso científico. Os psiquiatras em geral têm esse discurso do amparo na ciência. Penso que a epidemia de diagnósticos de depressão, a equivocada formação dos novos psis (psiquiatras, psicólogos e psicanalistas) e a elevada pretensão de estar "fazendo ciência", é baseada numa festejada racionalidade. Não por acaso, os psiquiatras clássicos e intimamente ligados ao grande sistema da "indústria dos remédios", não cansam de fazer apologia da nova ciência. Não muito longe, mas em outra chave, boa parte dos psicólogos advogam a tese da "boa conduta racional". Por outro lado, concordo com você que a psicanálise pode, e muito, contribuir para pensar uma outra "racionalidade". Pena que, de uma maneira geral, ela esteja muito ligada a normatizações dos comportamentos contemporâneos e bastante dividida em grupos e mais grupos que se distanciam cada vez mais.

Daniel Christino disse...

Lisandro, o que é a racionalidade científica? É método. E o método está fundamentado numa epistemologia, isto é, numa teoria do objeto - como ele é possível, de que modo podemos reconstruí-lo em teoria e o que se pode entender como conhecimento derivado deste objeto. O método científico fundamenta-se numa epistemologia que referencia uma idéia de verdade. A ciência clássica fundamentava essa noção de verdade a partir da idéia de natureza.

Quem deu forma a esse ideal epistemológico foi Newton, nos Principia Mathemática com suas regras para pensar corretamente. Segundo o Newton, fazemos ciência quando submetemos nossas teorias às seguintes regras: 1) simplicidade; 2)universalidade (uniformidade e homogeneidade); 3) experiência. Ora, isso aí é também uma idéia de como a natureza funciona, ou seja, como o objeto se estrutura para nos referenciar o conhecimento. É uma teoria da verdade.

Pois bem, essa idéia de natureza - metafísica em sua essência - não sobreviveu às descobertas da física no início do século XX. Assim, uma verdade universal, simples e de acordo com a experiência perdeu seu sentido para a ciência.

A força do discurso científico associada à noção de saúde - talvez a noção que substitui a de natureza para o conhecimento dos psis - não é, acredito eu, epistemológica. Tem a ver muito mais com elemento socioculturais da modernidade.

Por um lado, há o elemento experimental - quase positivista - da medicação. Sem dúvida os remédios antidepressivos funcionam alterando a química corporal e produzindo os efeitos esperados. Por outro lado, há uma concepção sobre os modos de vida na modernidade que reforça a idéia de uma racionalidade das soluções, do auto-conhecimento. Giddens chama isso de "reflexividade". Nele entra não só um discurso cientificista dos efeitos imediatos, mas também as soluções mágicas das religiões e da auto-ajuda.

Como os médicos em geral não pensam sobre si mesmos no contexto mais geral da modernidade, tornam-se presas fáceis deste discurso falsamente reflexivo. Não é culpa da ciência, ela já entrou em crise e encontrou modos de repensar sua prática. É menos um problema da ciência do que da modernidade que transformou o método científico em discurso mágico para fundamentar uma noção de indivíduo e de saúde como fruição de prazer, de consumo desimpedido. Acho que é por aí.

Anônimo disse...

Professor,
Antes de qualquer coisa,como eu demorei pra comentar aqui não?Enfim, o tema me ganhou.
A primeira coisa que me veio na cabeça quando comecei a ler a entrevista da psicanalista Maria Rita Kehl foi a relação que se pode estabelecer entre ela e os textos de Ben Singer. Tanto num contexto do ambiente ideal/propício para o cinema, quanto no da influência do jornalista sobre a vida do sujeito moderno.
Quando se lê "Modernidade,hiperestímulo e o início do sensacionlismo", duas coisas ficam claras:como o ambiente urbano afeta o homem e como essa transformação da cidade cria,no homem, um "apetite por choques intensos" e a consequente aceitação e gosto pelo novo fascínio: o cinema.
A motivação que B.S. chama de 'desamparo ideológico' e que M.R.K entitula 'vazio existencial' é a mesma. São ambas consequencias do impacto das transformações da sociedade sobre o homem.
O capitalismo e agilidade descritos por B.S. são a origem da descartabilidade do homem, o qual passa a ser uma mercadoria num contexto social. Ele estuda e especializa-se para oferecer e vender,ou não, seu conhecimento por determinado preço.
A 'liberdade' que o homem passa a experimentar é,de fato, dúbia e paradoxal.De um lado, ele pode ser o que quiser.De outro,contudo,caso ele não o seja, certamente um outro sujeito será em seu lugar.No momento em que o homem se vê detro dessa realidade,apesar de ser um mundo moderno e cheio de possibilidades,é,para ele, principalmente um choque e um confronto com uma sociedade em que ele sente um vazio sem tamanho por ser perfeitamente substitutível.
O capitalismo,reforçado pela mídia, exige do sujeito "motivação durante 24 horas para se tornar competitivo e viver a plenitude do consumo".Essa exigência não deixa brechas para que a tristeza e a melancolia tenham espaço nas relações socias.Daí,aquele que apresente tais 'sinais' é visto como doente/deprimido a ser medicado. A sociedade espera que a angústia que o homem venha a sentir seja "colocada para debaixo do tapete" e que o sujeito torne-se,novamente,produtivo.
Cabe a imprensa,seja através do jornalismo ou do cinema,desmistificar tais idéias para que a sociedade deixae de ver o homem deprimido como uma máquina com necessidade de reparos.

Anônimo disse...

Ficou muito "jornalismo-heróico".Pode me bater.

Lisandro Nogueira disse...

Caro Daniel,
Os remédios são feitos por cientistas: passam pelas fases do Newton. Eles pretendem curar uma doença universal (a depressão, segundo eles, biológica - está no organismo),fazem experiências em laboratórios, comprovam a veracidade e aplicação das fórmulas com testes e mais testes. Fazem a verificação científica das descobertas. Então podemos chamar de ciência ou apenas de técnica? O discurso médico da psiquiatria descarta ser somente uma técnica. Outra coisa: é possível separar a ciência da modernidade? As "teorias da verdade" não estariam validando todo esse processo de "cientifização" do mundo? Ou não dão conta no novo processo do mundo? Tenho dúvidas se a ciência pode ser vista "em separado". Mas penso que você pode esclarecer melhor essas questões.

Lisandro Nogueira disse...

Olá Estela, bela lembrança a do Singer (Ben Singer - texto do livro "O cinema e a invenção da vida moderna" - Cosac & Naify - org. por Ismail Xavier). Penso que o cinema e o jornalismo podem contribuir para pensar essas questões já antigas. Esse ideário científico é quase hegemônico e podemos repensá-lo com os instrumentos que possuimos. Temos uma necessidade enorme de novas reflexões que possam abarcar toda essa complexidade. Mesmo porque o preço que pagamos é grandioso e nos debilita no cotidiano. Outra coisa: o conceito de depressão precisa de novas abordagens. Não há dúvida que a vida cotidiana é estimuladora de comportamentos "depressivos". Mas combater só os sintomas é uma atitude limitada. Os sintomas se tornaram um "modo de vida" e estão se enraizando - já podemos falar de uma "sociedade depressiva"?
ps- não ficou "jornalismo-heróico", não.

Daniel Christino disse...

Lisandro, o que eu quero separar é o seguinte: ciência é método, e isso não vai mudar. Os remédios são importantes e provam que o método científico funciona. Se você estiver com febre precisará de um antibiótico, do contrário pode morrer. Este é o escopo do saber científico: usar ferramentas metodológicas para solucionar um problema bastante específico. É o que os americanos chamam "tinkering", ou seja, hipóteses, testes, revisões, outros testes, confirmações, novas hipóteses e daí o círculo recomeça.

O que acabou, penso eu, foi a pretensão da ciência de explicar o "homem" como se fosse uma categoria universal. Não há mais uma teoria unificada na ciência, assim como havia com Newton.

O ponto aqui é identificar quando o discurso científico tornou-se um discurso sobre o Homem, sobre o mundo, com a pretensão de explicá-lo em termos científicos. Há um fetiche da ciência, e interessa saber como ele veio a ser. Mas esse discurso "mágico" não é ciência. É ideologia.

A depressão possui uma componente bioquímico? Sim. Mas ela é só isso? Não, dizem os psicanalistas. A depressão extrapola os limites do método científico, acessando discursos cuja noção de verdade se afasta daquele ideal newtoniano. A ciência não tem problema com isso, mas a ideologia que eu chamo cientificista tem. Não vamos jogar a criança fora junto com a água da bacia.

Lisandro Nogueira disse...

Olá Daniel, bom esclarecimento. Sim, é ideologia. Mas ainda não consigo ver essa separação tão clara. A ciência promove tb. ideologias. Ou estou enganado? Ela não é imune e se mistura com o cientificismo. Em alguns momentos, como esse que vivemos agora, ela está fortemente ligada com o grande aparato médico da psiquiatria. Concordo com os seus termos. Mas penso ser complicado vê-la (ciência) tão isenta de todo esse processo.

Daniel Christino disse...

Aí, meu caro, entramos nos meandros de uma sociologia da ciência. Esse discurso ideológico tem um alvo bem claro: o desenho institucional de financiamento das pesquisas, seja ele privado ou estatal. Esse discurso cientificista defende, com unhas e dentes, a relevância do saber científico para a sociedade. Invista em ciência que os ganhos são não apenas garantidos, mas quantificáveis. Como você acha que a tecnologia que alimenta nossa sala (wireless, ar condicionado, frigobar) veio a ser? No contexto estritamente mercadológico.

As ciência humanas, por não poderem apresentar a mesma validade e confiabilidade metodológica das outras ciências, está perdendo a batalha. O mais pernicioso, como você mesmo sabe, é a importação de um modelo produtivista baseado nos "nutshells" ou papers. É impossível discutir academicamente uma tese sobre cinema num paper de 20 páginas. A morte do ensaio é um termômetro do quando estamos perdendo terreno no âmbito acadêmico para esse discurso ideológico que embrulha o conhecimento científico num pacote "mágico" de soluções universais e finais para os males da civilização.

Mas como eu disse para você e o Pierre, o que podemos fazer é ser sinceros quanto às nossas questões intelectuais pessoais, e procurar vivê-las de modo a ceder o mínimo possível aos nossos inimigos. Em qualquer lugar é sempre possível tocar o projeto de tornar-se um ser humano melhor. Isso é o relevante.

Adriano disse...

Dando meu pitaco:

Sou simpático à MRK. Ela, em minha juventude, teve um impacto importante. Falava-me de Jung e era um novo horizonte. Mas era um tempo em que acreditava mais no sujeito do que agora. Acho, hoje, que ela acerta mais quando erra (como é lindo jogar com palavras!). O sujeito não existe (leiam isso como uma tese humeano-nistscheana). A entrevista mostra o quanto a psicanálise se contorce para acomodar opostos e tudo em nome da "profundidade" (teria sido melhor assumir a poesia!). No meio do texto ela fala de que não há sujeito, fala que somos nas relações com o outro, mas tudo na teoria, e no iício e fim da entrevista, gira em torno do sujeito, do indivíduo (inconsciente, "resolver as suas dores" etc). Como apontam os filósofos que mencionei, nossa linguagem é que cria o sujeito. Em certo sentido , então, essa é uma armadilha, mas uma da qual MRK não se dá conta. A intuição correta me parece a de que não temos uma alma e que são nossas relações que podem ir bem ou mal. O inconsciente é público e não privado! Esse discurso não tem nada de oposto ao cientificismo. Ele é perfeitamente naturalizável, pois diz que nosso "interior" é reflexo de nossa conexões com o exterior. Enquanto as ciências humanas não abdicarem de um reino mítico de investigação ao qual nosso acesso tem de se dar apenas por metáforas e jogos de palavras (um acesso poético, por exemplo) não faremos progresso cognitivo. Isso é teologia laica. A tendência a lidar com contraditórios e apresentar isso como conhecimento é um desastre. Faço andarem juntos o eu e os outros, o reconhecer que sou relações e o conhecer-me a mim mesmo, o aceitar e o ser mais brigüento, o fim do sujeito e a crítica ao capitalismo que destrói o sujeito. Depois disso, dou ao discurso um tom edificante e pronto, todo mundo já pode me aplaudir, porque, afinal, só desejo melhorar o homem. Essa sopa dá bom entretenimento, boa poesia, até, se houver talento, mas esclarece muito pouco. É, pois, má filosofia, má ciência e má teoria. E no entanto, ela, e até a psicanálise, conseguem dizer coisas interessantes sobre o homem e o fazem porque a prática terapêutica toca necessidades profundas e naturais nossas. Assim, acerta no erro: acerta no contato humano e erra na teoria. Esclareço, por fim, a minha dicotomia.

Anônimo disse...

Apesar da condição de, para mim, musa, como poeta e como mulher, de Maria Rita Kehl, simpatizo mais com a posição de Adriano, no mínimo (apesar de que ele não citou esse autor), porque aceito a lição de Popper sobre a psicanálise não poder ser falsificada (o que também vale para o marxismo).
Mas queria dirigir ao Adriano (e a outras pessoas com perspectiva semelhante) uma pergunta e um comentário: qual o problema de uma "teologia laica" (por que isso foi usado em seu discurso para estigmatizar algo?), se partirmos do pressuposto de que a(s) divindade(s) é um assunto importante demais para ficar sob o controle dos eclesiásticos? Comentário: sua preocupação, a julgar por essa observação a MRK, parece resumir-se ao "progresso cognitivo", e a querer sempre "esclarecer, esclarecer". Não há muito mais em jogo?

João A Fantini disse...

Bom, penso que o que está em jogo não é a verdade. Sobre verdade todos concordam - ao menos quando os interlocutores são bons - não há consenso nem mesmo dentro do discurso das ciências duras.
O problema é o Sentido. Isso o discurso cientifico não dá, e pior, procura escamotear. Não dá para reproduzir e esbarra sempre no discurso religioso.
Talvez, depois do sexo na época freudiana, o sentido seja hoje o 'segredo sujo'..
(achou exotérico? procure um cientista ateu)

Unknown disse...

Bom demais visitar o seu blog, Lisandro. Adorei a entrevista com MRK e mais ainda os comentários! Bons textos e boas discussões. Acho que a afirmação do vazio possibilita esta riqueza de posições. Um beijo.

Lisandro Nogueira disse...

Olá Luciana,
Venha sempre!!! É um prazer recebê-la. Esses debates são importantes. Não deixe de participar dos comentários dos filmes. Um abraço,

Adriano disse...
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Adriano disse...

Caro João,

com "teologia laica" queria indicar a inclinação, comum nas ciências humanas, para o discurso sem objeto: tem-se uma gramática, mas não uma semântica.
Se entendo bem o se clamor pelo "mais", concordo. A vida é mais do que ciência. Nesse sentido, é arte tb, mas não se pode querer, impunemente, fazer os dois, arte e ciência. Em geral, quando se o tenta, não se faz nenhuma delas. O jogo da ciência é esclarecer, o da arte não.

João A Fantini disse...

Exato Adriano. A ciência sempre esquece que não basta 'descobrir' algo. É preciso usar uma linguagem qualquer para comunicar e aí, para dor de alguns cientistas, tem que recorrer ao jogo de significantes reunidos em um discurso onde o sentido é dado de outro lugar, onde as coisas e objetos não tem o status Real que estes cientistas confundem com a verdade. Daí o recurso, por exemplo, das imagens do cérebro serem oferecidas como uma prova 'real' das descobertas. Porém sempre, o que está em jogo, é a leitura - em palavras - que será feita delas....

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