segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Ensaio sobre a cegueira, utopias e catástrofres

Lauro Antonio, de Portugal, especial para o blog.

Ensaio sobre a cegueira [em cartaz em Goiânia]

A história da literatura, a do cinema, enfim toda a história da arte está repleta de utopias e de antecipações catastróficas do futuro. Umas e outras querem no fundo significar o mesmo: que o presente que se vive não é exemplar e que, de uma forma ou outra, urge modificar as coisas para que a vida do Homem na Terra possa ser melhor (o que anunciam as utopias, pelo lado positivo) ou para que a vida na Terra não seja um pesadelo (o que as antecipações catastróficas prevêem).

O romance de José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira” é do segundo tipo, podendo colocar-se ao lado de outras obras de antecipação como “O ÚIltimo Homem sobre a Terra” ou alguns romances e filmes de “mortos-vivos”, de “Metrópolis” ou de “Blade Runner”. Com algumas características a diferenciá-lo, certamente. Enquanto quase todos os outros partem de antecipações catastrofistas de cunho popular, esta assume o seu lugar erudito.

Todas querem dizer mais ou menos a mesma coisa: que, se não se arrepiar caminho, o futuro do Homem é sombrio, mas em Saramago não há simbologias associadas a vampiros ou mortos-vivos. Há cegos, com tudo o que a palavra comporta igualmente de simbólico (cegos = os que não vêem, os que ignoram o que os rodeia). Imagine-se que, um certo dia, uma epidemia de cegueira grassava entre os humanos. Não numa cidade particular ou país em especial, mas na Terra, na Humanidade.

Por isso o filme de Fernando Meirelles, rodado entre São Paulo (Brasil) e Montevideu (Uruguai), não precisa nunca qual a cidade em que estamos, e procura reunir um pouco de todas as raças, dos brancos aos negros, dos latino-americanos aos japoneses. A parábola diz respeito à Terra na sua globalidade, e à Humanidade. Se atentarmos melhor no discurso, percebe-se que se dirige a aspectos que constituem a essência do ser humano, no que este tem de pior: a necessidade de poder, a avidez, a tendência endémica para a maldade, a perversidade, a cupidez.

Quando todos ficam cegos, há logo quem se imponha, se auto nomeie “Rei” e submeta pela força os restantes, ou procurando roubar-lhes as riquezas (a propriedade privada) ou impondo-lhes a indignidade (as mulheres são obrigadas a entregarem-se aos senhores da camarata que detêm o poder, o revólver, por um lado, e a sabedoria, o cego de nascença que sabe como ninguém conviver com a desgraça da escuridão, ou da luz branca).

A parábola é óbvia, basta acompanhar com alguma atenção o percurso do livro ou o do filme: o homem tem de ser solidário para sobreviver, e, se for caso disso, os lobos têm de ser abatidos para que os cordeiros se salvem.De uma crueldade invulgar, com cenas que psicologicamente roçam o insuportável, o filme de Fernando Meirelles (que nos dera “”O Fiel Jardineiro” e “Cidade de Deus”, entre outros) assume-se como um exercício de escrita coerente e compacto, sem grandes deslizes e uma progressão dramática tensa e obsessiva.

A parábola da cegueira mexe com os espectadores, tal como mexe com os leitores (mas no cinema a cegueira é mais “visível”), pois continua a ser uma das ameaças mais temidas. Por isso livro e filme adquirem tamanho impacto e desespero. Depois, o significado torna-se muito claro. Os propósitos do livro eram demasiados evidentes, os do filme são-no igualmente. Não é preciso pensar muito para se chegar onde os autores querem chegar.

Neste aspecto, acho José Saramago um óptimo e fortíssimo inventor de boas histórias com moralidades sociais mais ou menos evidentes. Depois, dependendo dos títulos, a sua escrita tem pouco de subtil, não deixa grande lugar ao leitor, manipula-o deliberadamente com um maniqueísmo óbvio, esgrimindo “lições” compulsivas, que o tornam por vezes demasiado demagógico. É uma opinião pessoal, obviamente. Devo dizer que é um autor que não perco, mas que nem sempre chego ao fim.

O livro retirado deste seu romance é, porém, uma adaptação fiel ao espírito da obra, mas algo que me quadra melhor. Não será uma obra-prima perfeita, longe disso, mas é um filme que consegue marcar os espectadores de forma indelével. Os monólogos do velho negro são escusados, mas as personagens são muito bem trabalhadas, os actores bons, Julianne Moore brilhante (fico a aguardar pelas nomeações para a ver incluída na lista e é bem capaz de haver mais umas quantas surpresas, argumento adaptado, por exemplo).

Há cenas magníficas, a violação colectiva, a mulher morta a ser lavada, a insurreição da camarata 1, a cena de amor entre o médico e a mulher dos óculos escuros, logo a cena inicial do primeiro anúncio de cegueira, que nos introduz num ambiente de cortar à faca, e algumas mais. A segurança de Meireles a segurar a tensão num plano altíssimo é de assinalar.

A fotografia colabora enormemente para este clima, não só de cegueira colectiva, como de morbidez e viscosidade contagiante. No que a direcção artística funciona bem, igualmente. As cenas de ruas, com os amontoados de carros e lixo, o cenário desolador de porcaria acumulada nos corredores das camaratas, e no interior das mesmas, os supermercados esventrados, tudo contribui para restituir um ambiente de fim de mundo convincente e brutal.

Normalmente a imagem é mais demagógica que a palavra, porque mais evidente, porque mostra em vez de sugerir. Neste caso, porém, o cuidado de Fernando Meirelles e da sua equipa em manter o filme num nível de grande plausibilidade consegue tornar uma aposta difícil e perigosa numa aposta ganha.

4 Comentários

Lauro António disse...

Obrigado, Lisandro, pela transcrição. Sei que é polémica a opinião, mas é a minha. Abraço amigo de Lisboa.

Anônimo disse...

Prezado Lauro,

gostei muito de seu escrito, e não o vi como polêmico (palavra que tem, na verdade, conteúdo bem pejorativo). Você "apenas" contribuiu com reflexões detidas e bem fundamentadas para um pensar conjunto sobre o filme, ajudando a resgatá-lo de certas "cotações", com estrela, aplausos e tiros (!!!), de que a apreciação séria de filmes não tem a menor necessidade.

Lisandro Nogueira disse...

Caro Teixeira,
As avaliações vão continuar - agora com os bonequinhos; estamos aperfeiçoando. Tiramos os "tiros". Na verdade, os tiros ficaram engraçados, mas eram provisórios (dificuldades técnicas). Estamos agora, Teixeira, aguardando a apreciação sua do texto do Lauro Antonio. Vamos ao cinema!!!

Anônimo disse...

Caro Lisandro, protesto veementemente contra a retirada do boneco atirador!!! Acho você até muito politicamente correto ao insinuar que a atitude certa seria levantar-se e sair do cinema. Não!!! Filme ruim merece bala. Aliás, se tivesse uma bazuca seria ainda mais engraçado. É a única imagem que me vem ao pensar num filme como High School Musical.

Na verdade, tenho saudades mesmo é das estrelas. Era até meio poético.

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