quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Não perca tempo

Jovens cinéfilos, o choque da psicanálise e o texto de Maria Rita Kehl.

Lisandro Nogueira

Se você não se sair bem, estaremos lá para te consolar; mas se você se sair bem, estaremos lá também para comemorar”

No início dos anos 80 vivíamos a agitação do período pós-abertura política. Foram anos intensos, novos e ambíguos. Era bom porque éramos jovens e coisas boas estavam acontecendo a todo o momento. Mas também era chato por causa das patrulhas ideológicas. O Cineclube Antonio das Mortes sofreu algumas chateações. Uma delas era a acusação de que exibíamos "filmes burgueses" e apoiávamos (boa parte dos membros) intensamente a chapa Deus, contra as três outras chapas, totalmente militantes e ligadas a partidos políticos.

Como afirmou Ricardo Musse, aqui no blog, o Cineclube surgiu do encontro da militância política com a cinéfilia. Mas nós sempre achamos os militantes "sem humor" bastante engraçados. O Aldo Arantes (PCdB), o José Serra (PSDB) e o José Dirceu (PT): ausência total de humor. Se levam demasiadamente a sério. Fellini neles!!

Tínhamos um palavra de ordem muito engraçada: "você aí sem humor, também não tem sabor". Uma frase parecida com "você aí parado, também é explorado". Fiz uma brincandeira com o valente Aldo Arantes e lembrei da palavra de ordem. Ele não achou graça nenhuma. Todavia, eu e alguns membros do PCdB e do PT rimos pra caramba. Isso foi em 2004 na campanha do Pedro Wilson para prefeito de Goiânia.

Um dos melhores momentos foi quando conhecemos Maria Rita Kehl em 1981 . Ela veio à Goiânia a convite do DCE-UFG. Foi uma surpresa: articulada, sutilmente elegante e inteligente. Seu compromisso com as idéias (Maria Rita, em minha opinião, desmontou o discurso feminista rígido em vários textos e palestras ao longo desses anos) e a fala psicanalítica nos encantou logo de cara (Nietzsche, Marx e Freud como suportes dos conceitos).

Se já vivíamos o cinema intensamente, a partir do contato com Maria Rita meu pensamento e visão de mundo levaram um bom e vitalizante choque. Fernando Pereira (hoje professor do Cepae-UFG), um dos meus melhores amigos, também ficou entusiasmadíssimo e, até hoje, não perde uma palestra ou conferência. Idem para Cristina Cento Fanti, minha irmã Socorro, Márcio Belém, Luciene Godoy, Maristela Novaes, Glacy Roure e tanta gente legal.

Décadas depois Maria Rita retornou. E voltou várias vezes para a nossa alegria. Em junho, daqui a quatro meses, ela retorna com Ismail Xavier. Será uma mesa conjunta para discutir Cinema e Psicanálise.


Ela me marcou também de forma simples e generosa. Estava preocupado com a defesa da tese de doutorado. Com um olhar firme e carinhoso, ouvi as palavras: “Se você não se sair bem, estaremos lá para te consolar; mas se você se sair bem, estaremos lá também para comemorar”. Foi um alívio ouvir aquela profunda e singela frase. Me libertou da expectativa tensa. Partimos para São Paulo com mais força. Deu certo e celebramos com uma boa pizza...

Publico abaixo um texto de Maria Rita Kehl. Autorizado por ela, via email [Oi Lisandro, quantas notícias boas! Claro que pode postar meu texto. Vai ser lindo falar na casa da Cora Coralina. Obrigada por tudo, Rita K.], a bela digressão me marcou bastante no início dos anos 90. É um texto sobre a psicanálise e tem um instigante título: "Não perca tempo".

Não perca tempo

Maria Rita Kehl*

Jean Cocteau em Ópio: “Viver é uma queda horizontal” (...) Tudo o que a gente faz na vida, até o amor, a gente faz no trem expresso que caminha para a morte”. Saber disso o tempo todo seria insuportável. Precisamos ignorar periodicamente a morte para conseguirmos viver. O capitalismo coloca um arsenal de mercadorias à nossa disposição e retira grande parte de seus lucros desse truque: iludir civilizações inteiras sobre a idéia do fim.

A tecnologia nos promete a realização imediata de todos os desejos: nós quase não acreditamos na morte como destino da carne. A tecnologia nos promete o horror da vida eterna já, e aqui mesmo.Vivemos a todo o vapor. Não a velocidade da “queda horizontal” (inevitável!) a que se refere Cocteau. Vivemos na velocidade de uma fuga. As duas funções básicas do “milagre” tecnológico são ilusórias. Encurtar necessário para as operações e tarefas da vida: a isso chamamos conforto.

Adiar a possibilidade da morte, e afastar seu espetáculo trágico do nosso convívio: proporcionar-nos um cotidiano alienado de seu próprio fim: a isso chamamos segurança.

Claro que o preço que se paga pelos truques é o trabalho. Em troca da ilusão de que o tempo é eterno, é algo que se espiche e se acumule segundo a mesma lógica da acumulação do capital, abrimos mão do tempo da experiência, do tempo “ocioso” e às vezes angustiante da subjetividade, da poesia.

O tempo presente passa a só ter valor em função de um futuro idealizado, garantido, “eterno”: o que nos faz “correr para o futuro” ajustados ao tempo da produção. O tempo do neurótico nunca é o presente. O neurótico não pode gozar com sua experiência.(...) (...)

A psicanálise, a princípio, parece um desmancha-prazeres. Acorda o sujeito de seu sonho de zumbi (ou não: quem procura um analista já foi acordado, de uma maneira ou de outra, por algum sofrimento que não pode evitar) para lhe acenar com limites, morte, castração, perdas.
Na sociedade do consumo e do narcisismo, esta parece uma prática para otários. Mas esta prática aponta para a rebeldia. Reinserido na sua história e confrontado com a morte, o analisado recupera a liberdade para viver o presente. Os fetiches da tecnologia são proteções contra o medo da castração.

A proposta da psicanálise é outra. Que se enfrente este medo; livre da proteção dos fetiches a vida se abre para a experiência. Por exemplo, para a experiência estética. Por exemplo, para o amor.

· Maria Rita Kehl é psicanalista é autora de diversos livros: entre eles “Deslocamentos do feminino”, “O ressentimento”, “Sobre ética e psicanálise”.
· Maria Rita Kehl escreveu o texto em agosto de 1994 na Folha de São Paulo. O texto completo em
www.uol.com.br

5 Comentários

Anônimo disse...

Boa tarde!! amigos do blog:
Como assistente do blog, procurei a melhor foto da Maria Rita. Apesar de ser bem jovem e não ter vivido os anos 80, me encantei com o olhar dela. Vou ler o livro "A mínima diferença". Lá, tem artigo sobre feministas e o "Nove semanas e meia de amor" (Kim Basinger está linda). Porém, o filme cansa. (Pedro Vinitz)

Anônimo disse...

Esta sim uma bela notícia: poder ouvir Maria Rita kehl nas reflexões do individual e do coletivo. "A psicanálise e o domínio das paixões" e "Ética e psicanálise" são conteúdos de cabeceira a que cheguei trilhando caminhos que vc apontou muito além do cinema.

João A Fantini disse...

Maria Rita nos lembra que, longe das imagens castradoras, a ;morte é a melhor conselheira,

Lola disse...

Bom saber que eu estou no caminho certo... o da rebeldia. E bom saber que os amigos de faculdade duram tantos anos. Como sempre, os textos de Maria Rita têm aquela capacidade de tocar não só a mente da gente, mas a alma tbm... Continuo passeando por aqui.
Bjos

Anônimo disse...

Lisandro, gostei tanto do seu comentário quanto da Maria Rita Kehl. Vou tentar colocar um comentário depois e tentarei ser mais assíduo na leitura de seus comentários no blog. E parabéns. Você sabe que sou um apaixonado por cinema, mas deve saber também que sou bem amplo nessa paixão e às vezes divergimos nesses gostos. Mas gosto de seus comentários.

Quero aproveitar e lhe pedir que confirme com a Maria Cristina se ela recebeu um livro que deixe com a secretária dela no consultório. O livro de crônicas sobre minha filha. Gostaria que vocês comentassem depois comigo.
Um abraço,
Romualdo Pessoa

PS.: Ah, e o melhor slogan de uma campanha seguramente foi aquele da chapa "porralouca": SÓ DEUS SALVA O DCE.

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