domingo, 1 de fevereiro de 2009

O cinema como formação

Entrevista com Ricardo Musse

Lisandro Nogueira

O Cineclube Antonio das Mortes foi fundado em 1977 por jovens estudantes da Universidade Federal de Goiás. Todos aqueles que passaram pelo cineclube, de uma forma ou de outra, fazem, criticam e apreciam o cinema. Ricardo Musse (foto) foi um dos fundadores. Hoje é professor no curso de sociologia da USP. Na entrevista especial para o blog, Musse, articulista do jornal Folha de SPaulo, afirma a importância da formação cultural, conta sobre o início do cineclube e defende a "qualificação do olhar" em relação ao "olhar domesticado"*

1. Como e onde surgiu a idéia de criar o cineclube Antonio das Mortes?Por que esse nome?

O cineclube surgiu, em 1977, na confluência de dois movimentos distintos: uma nova geração de cinéfilos, freqüentadores das sessões de cinema de arte no Cine Rio, e o movimento estudantil, que incentivou (e financiou) sua criação como forma de ocupar a antiga sede do então proscrito DCE.
Por conta do meu trânsito nos dois grupos, procurei contribuir para articular essas duas forças tentando aparar arestas entre os dois propósitos, tarefa facilitada pelo entrecruzamento e simbiose que logo se deu entre os projetos. Os “cinéfilos”, como Belém e Herondes, se politizaram ainda mais, e os militantes se aproximaram do cinema (Gusmão), alguns para sempre (Beto Leão).
Convém relembrar um episódio interessante. Então caloura de Letras, a hoje senadora Lucia Vânia foi assistir São Bernardo no cineclube e levou o marido, na ocasião governador e homem de confiança dos militares. Contive à custo as vaias e as manifestações de animosidade. O que poucos perceberam na ocasião é que aquela visita legitimava a retomada do prédio pelos estudantes. O nome Antonio das Mortes foi um achado que espelha bem essa associação entre cinema e política.

2. Qual a importância do cineclube na sua formação intelectual?

O cineclube foi nosso principal meio de aprendizado intelectual e cultural. Contribuiu também para direcionar parte da militância para formas de ação política que privilegiam a realização de valores preconizados pela arte.
O decisivo aí é que não éramos espectadores passivos. A responsabilidade pela programação e pela coordenação dos debates que se davam após cada sessão nos levou a estudar cinema a sério. Durante um ano, nos reuníamos nas tardes de sábado para discutir um livro recém-lançado de um jovem professor da USP, na ocasião, quase um anônimo: A experiência cinematográfica, de Ismail Xavier.
A conjugação dessa leitura com os debates semanais no cineclube impulsionou nossa curiosidade para a estética, em suas várias ramificações. Afinal, um conhecimento menos superficial do cinema pressupõe, no mínimo, o domínio de noções básicas de literatura, teatro, música, fotografia, artes plásticas etc.

3. Quais os cinemas que influenciaram decisivamente a sua formação?

A proposta do cineclube era exibir filmes e cinematografias que se contrapunham ao padrão estabelecido pelo cinema norte-americano. Era algo do tipo “os cinemas nacionais contra Hollywood”. A principal peça de resistência era o Cinema Novo brasileiro, secundado pelo alemão. Sob influência do livro do Ismail, procuramos mostrar e discutir também o cinema de vanguarda soviético, o expressionismo alemão, o neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa.

4. Você defende, assim como eu, que é possível a qualificação do olhar em
relação ao "olhar domesticado"?


A maioria esmagadora da produção cinematográfica mundial consiste de filmes que se apresentam como mero entretenimento, cujo propósito de distrair e dirigir nossa atenção não é muito diferente dos videogames, mas que no fundo pregam uma visão conformista, passiva perante a arte e a vida. T. W. Adorno denominou isso de indústria cultural.
Muitos filmes, no entanto, se colocam na contramão desse propósito, procurando ampliar a experiência e a autonomia dos espectadores. A passagem de um modelo para outro não é fácil, nem advém da quantidade. Exige um salto, uma mudança radical de hábito, uma atitude que possibilite desscondicionar as sensações, os afetos e o olhar. A premissa desse salto é ao mesmo tempo seu resultado mais consistente: a reflexão crítica e autônoma.

* Sobre o "Olhar domesticado" e a "qualificação do olhar", ler dois textos meus no blog (lisandro).

7 Comentários

Lisandro Nogueira disse...

O prof. Ricardo Musse escreve tb. na revista eletrônica "Trópico".

Fernando disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lisandro Nogueira disse...

Caro Fernando,
O Ricardo é um marxista de fato. O duro é conviver com os submarxistas - que são maioria. Adorno é importaante mas não suficiente para o compreender o complexo cultural contemporâneo. Aliás, Adorno escreveu um artigo, na New German Critique, em 1965, elogiando o Cinema Novo Alemão. Ele dizia que esse cinema era uma espécie de antídoto da indústria cultural. Poucos Adornianos-Marxistas citam esse texto.

Lisandro Nogueira disse...

Fernado,
seu pedido (Ricardo Musse voltar para o cinema) é delicado mas fundamental: o cineclube revelou que só temos um partido: o PC. O partido do cinema. Ricardo Musse vai voltar a militar nele quando completar 55 anos. Enquanto isso, seu pensamento oscila entre o marxismo, as artes, o futebol e o café e o vinho.

Anônimo disse...

Caros blogueiros: é de fato interessante a entrevista.
Em uma resposta, Musse coloca como ponto central dos anos românticos a conexão entre militantes e cinéfilos, ou revolução e estética, ou agir e contemplar. Parece que estamos ainda hoje entre o mesmo conflito, sem esquecer que a sabedoria está no meio.
Wolney Unes.

Anônimo disse...

Mestre Lisandro,
Afora os textos de sua autoria, as entrevistas são, a meu ver, a melhor coisa do blog. Aprecio também, é claro, as contribuições de outras cabeças-pensantes, mas me decepciono um pouco quando entro aqui e não encontro nem uma nova entrevista nem um novo texto seu. E essa entrevista com Ricardo Musse, meu guia intelectual desde os tempos do cineclube, só não é melhor porque ficou curta; aliás, curtíssima. Mesmo consideradas a precisão vocabular e a capacidade de síntese dele. Espero, e desejo, que esta seja o "piloto" de uma série de entrevistas com ele. Como o país todo sabe, o Ricardo possui um cabedal imenso sobre os mais variados temas. Sobre o cinema, então, que o que mais procuro aqui, seu manancial é inesgotável. Que venham, pois, mais entrevistas desse nível.
Abraços a todos
Herondes Cezar

Lisandro Nogueira disse...

Olá Herondes,
vamos fazer mais entrevistas com o professor Ricardo Musse. Ele merece!! (lisandro nogueira)

Postar um comentário

Deixe seu comentário abaixo! Participe!

 

Blog do Lisandro © Agosto - 2009 | Por Lorena Gonçalves
Melhor visualizado em 1024 x 768 - Mozilla Firefox ou Google Chrome


^