Duas ou três coisas sobre O Lutador
Marco Aurélio Vigário*
Para início de conversa, se há algo que possa se dizer sobre O Lutador, é que, assim como a luta livre, o filme está além da vitória e da derrota. A comparação é inevitável. A luta livre não é uma luta qualquer. O que está em jogo no ringue não é a medição da força física e da habilidade de sobrepujar o adversário; é, sim, a capacidade de provocar o público pagante, seja para o ódio ou a adoração, usando para isso todo o leque disponível à encenação dramática: golpes coreografados, diálogos ofensivos, luzes, objetos, figurino, maquiagem, etc. Não há sangue falso, contudo. O único sangue que jorra é o verdadeiro, e a platéia se regozija ainda mais quando isso acontece.
Protagonista de O Lutador, Randy, o Carneiro (Mickey Rourke), é uma lenda ainda viva desse mundo. Como na parábola bíblica em que Abraão sacrifica o animal ao seu Deus, Randy dá à multidão o que ela quer e recebe em troca o seu amor. O preço dessa relação sádica é a deterioração precoce de sua saúde física. Quando sofre um ataque cardíaco, Randy se vê então numa encruzilhada: de um lado, o mundo real e possível, a vida ordinária, a peleja cotidiana contra a decrepitude, a solidão e a angústia do irreconciliável; de outro, o mundo da luta livre, àquele ponto trágico, mas ainda cheio de brilho e excitação, de gritaria e reverência ao seu nome.
Muita gente sai decepcionada da sessão de O Lutador. Se o trailer promocional aponta para um enredo na linha de Rocky (1976), de Silvester Stallone, o filme de Darren Aronofsky desmente a propaganda desde o seu primeiro plano: câmera fixa, clima melancólico num vestiário praticamente vazio e o lutador de costas, exausto e tossindo, enquanto recebe o mirrado pagamento por mais uma noite de show.
Das luzes fortes dos ringues às sombras dos trailers alugados, essa câmera sóbria e realista acompanha toda a jornada de Randy até sua decisão final. Sem malabarismo visual, apresenta um pouco dessa América dos bastidores, das periferias, dos trabalhadores braçais e das dançarinas de boates. Sem discurso demagógico, diz algo sobre a dignidade e a solidariedade que sobrevivem à engrenagem produtiva.
Até agora tido como “cineasta-cabeça” por causa de filmes como Py (1998) e Fonte Da Vida (2006), Aronofsky mostra tudo isso de forma tão visceral e humana que, ao cabo de duas horas, a escolha de Randy não parece um escape covarde do mundo real. Parece, antes de tudo, a afirmação consciente de alguém que se nega à pequeneza e à humilhação.
Se há um filme minimamente sensível e honesto em cartaz no grande circuito hoje, esse filme é O Lutador.
* Marco Aurélio é jornalista e foi meu aluno no final dos anos 90.
17 Comentários
A programação das salas: horários, preços, etc, pode ser vista no link do lado direito. (Pedro Vinitz)
É um filme autêntico, forte e cheio de nuances, escolhas ou a falta dessas escolhas. Eu concordo plenamente que esse é o melhor filme em cartaz no circuito.
Um filme sobre um lutador escrito por um homem. Sensível a história? A conferir.
Marco, parabéns pelo texto. Provocando um diálogo, eu diria que não avalio o filme assim tão bem. A centralidade do protagonista acabou ofuscando as personagens secundárias. As relações de Carneiro com a filha e com a dançarina são pouco contundentes, diante da fortaleza que se ergue em torno do lutador, mas que é desperdiçada. Ele é uma figura complexa, que devemos aceitar um tanto a contragosto. Porém, o diretor parece ter receio de assumi-lo como tal. Logo, emoldura Carneiro em cenas de pouco brilho, como na maioria dos diálogos (o pior deles: a tentativa da dançarina de convencê-lo a não lutar, no final do filme). Carneiro está bem quando sozinho, pois Mickey Rourke está ótimo. Mas o filme é frágil, a meu ver, quando tenta ser uma narrativa mais próxima do cinema fácil tipo-Rocky Balboa (e isso, infelizmente, fica implícito nos piores momentos).
De certo modo, O Lutador acaba sendo uma realização semelhante ao que comentávamos aqui no blog sobre o cinema da Isabel Coixet: um adornamento conservador do cinema industrial (nesse caso, o do gênero, o dos confrontos físicos, das lutas), e que pouco traz de relevante, posto que a maneira como se apropria de uma linguagem mais ousada é orientada, sobretudo, pelo agrado a um público já indisposto aos excessos de Hollywood. Um público que, no entanto, não quer realmente mudar o olhar nem a experiência com os filmes.
Nesse sentido, dos filmes em cartaz, eu ainda fico com Foi apenas um sonho. O Sam Mendes pelo menos defende um cinema dramático sem camuflagens (e, neste filme, sem excessos) para deferir uma crítica dos EUA contemporâneo. O Lutador até tenta fazer isso (a luta de Carneiro com o Aiatolá é uma alegoria do Ocidente X Oriente, Cristãos-Judeus X Muçulmanos), mas aonde ele nos leva? Aronofsky se perdeu tb nesse ponto, me pareceu.
Olá, Lisandro, tudo bem?
Caso você não se lembre, aqui é o Gabriel Jubé, o filho do Geraldo...
Dei uma olhada no seu blog, gostei bastante do que eu vi, e achei melhor mandar um e-mail mesmo elogiando. A última crítica, de "O Lutador", por exemplo, achei ótima, exatamente o que eu pensei quando vi o filme. Já está no meu google reader !
O Blog é apenas para filmes que estão passando em Goiânia? Qualquer coisa posso escrever sobre algum filme que não esteja em cartaz ainda?
Pensei em escrever algo sobre o filme "Rocknrolla", do Guy Ritchie, posso mandar algo qualquer coisa?
Então, também mandei esse e-mail porque estava querendo uma ajuda (parece que sempre que eu estou em dúvida eu vou atrás de você...). Sabe como é, último ano, bate aquela insegurança...
Você tinha falado de alguns cursos no exterior sobre roteiro e produção audiovisual mesmo. Teria como você me passar o link dessas universidades para eu dar uma olhada?
Também estou procurando estágio, e, só por arriscar, você por acaso saberia de alguma produtora aqui por São Paulo que eu poderia ver?
Sei que é muita informação e perguntas ao mesmo tempo, mas é que realmente tinha muito o que falar =)
Abraços,
Gabriel Jubé.
Grande Rodrigo!
Entendo perfeitamente a sua crítica ao desenvolvimento dramático do filme e até certo ponto concordo com ela. De fato, os conflitos com a dançarina e com a filha não são sublinhados e “se resolvem” até muito facilmente.
De alguma forma, porém, acho que o filme sobrevive a isso, e até ganha com isso, mantendo-se firme à sua proposta de economia dramática. Se tem uma coisa que me chama a atenção é justamente a capacidade que O Lutador tem de ser enxuto e direto – talvez até minimalista, no sentido de que o enredo é conduzido com um mínimo de informação sobre a vida dos personagens. O filme está de fato centralizado em Randy (câmera colada nele durante 90% da projeção), com o objetivo de mostrar de perto uma trajetória fulminante em direção à tragédia.
Você me diz que os diálogos são “sem brilho” e eu te digo que talvez, mais do que isso, sejam “secos”, coerentes com a proposta do filme e com o perfil dos personagens, que transitam num mundo em grande parte árido. Quando Randy abre o jogo com Stephanie daquele jeito simplório e direto (“sou um velho pedaço de carne...”), confesso que ele me convence.
Acho que a principal crítica que você faz é sobre o filme como “adornamento conservador do cinema industrial” e sobre a utilização de uma linguagem ousada para agradar certa parcela do público sem, no entanto, questionar a forma de ver o cinema (o olhar domesticado), correto?
Bom, talvez seja verdade. Não considero O Lutador um filme radical ou de vanguarda. Mas acho que ele avança ao se distanciar do cinema clássico. Dentro do panorama do cinema industrial americano, O Lutador me parece um filme independente (tanto do ponto de vista econômico quanto estético), e isso já o torna digno de algum mérito.
Também não vejo na luta do Carneiro contra o Aiatolá uma alegoria política. Acredito que essa leitura pode levar a lugar nenhum mesmo. Aliás, não vejo no cinema do Aronofsky (incluindo aí Pi e Fonte Da Vida) um grande comentário político. Acho que há, sim, um grande comentário ético e filosófico (a questão da morte e do suicídio, por exemplo, que também está em Fonte Da Vida), social e comportamental... Mas não exatamente político, no sentido estrito do termo.
Um abraço! O diálogo continua!
A mensagem não é pra mim, mas agradeço ao Gabriel pelo elogio ao texto. E aproveito pra mandar um abraço ao Carlos, do Blog da Confraria, companheiro de muitas discussões cinéfilas. Não sabia que frequentava o blog. Bom vê-lo por aqui.
Mais um filme de luta. Agora luta livre. Como hollywood produz filmes em escalas exorbitantes. Si produzem e si premiam.
O Lutador é mais um filme ruim de entretenimento.
Por mim era banido do acordo social esses tipos de shows; luta livre, boxe, vale-tudo... e filme de luta.
Este comentário foi removido pelo autor.
Penso que Marco Aurélio e Rodrigo Cássio fazem o que é mais importante: o diálogo acerca de um filme muito visto. Concordo com as limitações apontadas pelo Rodrigo. Mas tb. concordo com M. Aurélio em relação ao esforço do filme para se afastar do lugar comum das produções industriais. Poderíamos afirmar que é mais um "filme de ator" produzido em Hollywood mas que possui tinturas ousadas para os padrões? Vou ver o filme de novo. Como afirma Antonio Candidado (para o terror de muitos alunos de literatura e cinema), um livro (ou um filme), caso tenhamos a pretensão de compreendê-lo e não somente de usufruí-lo rapidamente, necessita de dois olhares ou mais. O mais importante está acontecendo: o diálogo nos enriquece.
Oi Marco! Penso que estamos abordando o filme de uma maneira correta. É curioso como esse filme foi bem recebido pela crítica, e eu tenho pensado e discutido sobre ele nos últimos dias. Salvo a crítica da Contracampo, que, a meu ver, foi bastante justa e equilibrada, a tendência geral é certa conivência com o filme, em virtude da boa atuação do Mickey Rourke. Bom saber que você também observou as "amarras" pouco firmes do drama que envolve o Carneiro.
De fato, em certa perspectiva, concordo ser possível valorizar O Lutador como uma obra que está um passo além do grosso da produção hegemônica. Do mesmo modo, vejo o cinema da Isabel Coixet provido dessa sofisticação, que resulta em uma experiência estética mais rica do que a de um drama "comum", que não tem linhas de fuga aos princípios-chave do cinema-produto. Agora, em outra perspectiva, me parece que filmes como O Lutador se revelam instáveis no momento exato em que procuram se desprender desse formato mais desgastado do "drama".
Penso em um exemplo a partir da sua ótima observação sobre o caráter trágico de Carneiro. Concordo que se trata de um protagonista eminentemente trágico. O final do filme comprova isso. Contudo, no filme, o trágico é forçado a conviver com o melodrama, em uma relação que nada acrescenta (e essa é a minha crítica) à construção trágica de Carneiro. O trágico termina como um potencial da personagem, que precisa se afirmar em "más condições", libertando-se dos impedimentos que o próprio filme lhe impõem.
Se não no próprio Carneiro, onde estão os elementos melodramáticos de que falo? Sem dúvida, na filha e na dançarina. São elas as personagens marcadas pelo ressentimento, a punição, o desejo inibido. Tão logo Carneiro entra em contato com essas coadjuvantes, a sua dimensão trágica é contestada, sem que isso resulte em aprofundamento (no fundo, há, sim, uma indefinição, que parece insegurança do diretor em deixar fluir todo o potencial de Carneiro).
A cena final do filme, em que a dançarina (melodrama) tenta convencê-lo a não dar o passo trágico decisivo, não está lá em função do lutador, mas em função desse pretenso revestimento de Carneiro com os trajes do herói. Mas ele não é um herói, tal como um ser vitorioso que atinge o estado de superação tão comum nas narrativas esportivas (não é um Balboa, por exemplo). Não há recompensa para ele. Há, sim, a fatalidade, o destino, que é escolhido como convicção de uma identidade.
Esse contraste entre melodrama e tragédia, se ocorre, de fato, não soa contraditório no filme? O que você acha?
Sobre a alegoria, concordo que pode não ser algo intencional da parte do diretor. Mas ela está lá, seja na recorrência da bandeira americana ou no próprio espírito daquela modalidade de luta livre. Não é necessário apreender uma posição política do diretor, a partir disso, mas a leitura é viável!
Um abraço!
Lisandro: Sim, precisamos ver o filme novamente. Vamos fazer isso e seguir o debate! O que você pensa sobre a interpretação acima? Abraço.
Olá Marco e Rodrigo: poderíamos chamar tudo aquilo de Alegoria? Acho que não. Não chega a tanto. Outra coisa: o filme, apesar de bom, não comporta a dualidade Melodrama X Tragédia. Não seria um melodrama atualizado? O destino do personagem não é sua redenção dentro do esquema melodramático? Falar em tragédia não é um exagero? Caráter trágico está num bom tom. Desses filmes do Oscar, concordando com vocês, ainda prefiro o "Foi apenas um sonho". Bom debate!!
Concordo com você, Lisandro. Fica melhor falarmos de um "potencial trágico", ou de "caráter de tragédia", como você propõe. Pois o "entorno" de Carneiro é melodramático, e ele acaba enquadrado pelo gênero.
Nessa discussão, lembrei do J.C. Bernardet defendendo "Um Céu de Éstrelas", em uma dessas edições da Cinemais. Ele fala precisamente do elemento trágico que há neste filme. Comparando-o com "O Lutador", vejo o filme brasileiro como muito superior para o tipo de cotejo que lançamos aqui.
Rodrigo e Lisandro,
Quando uso o termo "trágico" no meu comentário, o faço de maneira pouco rigorosa. Num sentido acadêmico e mais rigoroso, sou obrigado a concordar com ambos: não é possível falar num personagem trágico de fato. Sua morte é, ainda, a afirmação de alguma coisa: de uma sobrevivência posterior como mito.
Sobre a questão da forma como o filme vem sendo recebido pela crítica, também me desagrada a ênfase na "ressurreição" de Mickey Rourke. Na Cinética, porém, há dois bons texto sobre essa questão do ator num sentido mais amplo. Eles propõem uma leitura do filme a partir de uma "dramaturgia do corpo".
Propõem também, do ponto de vista da alegoria, uma interpretação de O Lutador como "um filme sobre o cinema".
Achei ambas interessantes. Vi o filme duas vezes e sempre me passou pela cabeça essa ligação. Não fui capaz de elaborar nada melhor para defender isso no texto, mas me lembrei de Ferreira Gullar dizendo que a poesia não serve pra nada. Visto por um determinado ângulo, o cinema e a luta livre (a arte de forma geral) também não servem pra nada. Ainda assim são mundos incrivelmente ricos em sentido. A tal ponto que Randy, o Carneiro, escolhe mesmo "viver" dentro de um deles.
Olá Marco Aurélio,
você elaborou bem, sim!
Sobre essa análise do filme a partir do corpo, já tinha lido em revista americana. É uma das mais novas "modas" acadêmicas: discutir o corpo. Isso é bom. Mas vejo um problema em relação ao cinema: a análise "esquece do filme" e se concentra em discutir as teorias do corpo. Gostei da lembrança do Gullar. Porém, você mostrou que um filme pode ensejar milhares de visões. Bom debate!! E escreva mais textos para o blog.
Oi Marco Aurelio, obrigado pela lembrança e saiba que tenho profunda admiração a esse companheiro de tantas jornadas e discussões cinematográficas. Debater contigo é um enorme aprendizado.
E também acompanho esse blog do Lisandro, a quem encontro direto nos cinemas e também no Estádio, principalmente em dia de jogos do Vila Nova... estou sempre por aqui, mas o comentário
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