segunda-feira, 20 de abril de 2009

"Pragmatismo de pobre e ressentimento da classe média"


Entrevista com Ismail Xavier


O crítico Ismail Xavier diz que o cinema brasileiro atual coincide com o momento político do Brasil ao consolidar o "pragmatismo de pobre e o ressentimento da classe média" como temas recorrentes

Silvana Arantes


Observados com cuidado, os personagens centrais dos filmes nacionais recentes são basicamente dois: o "pobre pragmático" e o sujeito da "classe média ressentida".
Ao povoar a tela com esses tipos, os cineastas brasileiros estabelecem sua conexão com o "momento político brasileiro", em que a oposição "pragmatismo de pobre x ressentimento de classe média" é a tônica.
Ou, ao menos, foi a tônica do debate em torno da reeleição presidencial de Lula, ele mesmo uma liderança "mais pragmática do que doutrinária". Com essa reflexão, o professor e crítico Ismail Xavier abre novo capítulo na análise sistemática do cinema brasileiro, que ele pratica na academia (leciona na USP) e no ensaísmo.
A produção nacional a partir dos anos 90 cancela, portanto, as aspirações de transformação coletiva próprias do cinema novo, nos 60, e dá lugar a um "cinema culpado", com o afã de se "legitimar", cortejando o êxito popular. Xavier aborda o fenômeno, na seguinte entrevista.


FOLHA - O "pragmatismo de pobre contra o ressentimento da classe média", que o sr. identifica como tema recorrente da safra atual, se opõe ao "cinema-ONG", que, em sua leitura, marcou a virada dos 90?
ISMAIL XAVIER -
Sim. Lá eu me referi ao primeiro momento da retomada da produção nacional (1993-2001), em que o cinema brasileiro conduziu um concerto do ressentimento tocado por uma galeria de personagens que se perdem por estarem presos ao passado ou por não se conformarem com uma perda ou desvantagem, partindo para ações vingativas e cobranças malconduzidas ("Ação entre Amigos", "Cronicamente Inviável", "A Ostra e o Vento").
Nesse momento, "Central do Brasil" (1998) representou a contracorrente, pois aí o tema era a superação do ressentimento. A partir de 2001, esta tônica vem conviver com filmes com a figura do pobre oprimido que dá a volta por cima e se reinventa ("Madame Satã") ou o jovem de classe média que se libera do cárcere e do pai ressentido ("Bicho de 7 Cabeças").
A comédia popular de Guel Arraes traz Suassuna como expressão da idéia da esperteza do camponês que responde a um poder mais forte ainda personalizado [o coronel]. O pragmatismo do pobre envolve personagens contemporâneos que, dentro de um quadro de violência urbana, crise de valores e hegemonia do consumo, viabilizam uma saída -de sobrevivência (Buscapé, em "Cidade de Deus"); de alpinismo social ("O Homem que Copiava") ou de reinvenção de si mesmo para preservar uma liberdade de movimentos ("O Céu de Suely").
O caso de "O Céu de Suely" se insere na nova configuração de um sertão pop nos filmes pernambucanos, que começou com "Baile Perfumado" (1997), onde já se valorizava o pragmatismo de Benjamim Abrahão como paradigma da esperteza do cineasta na viabilização do projeto de filmar Lampião.
"Cinema, Aspirinas e Urubus" é a expressão mais clara do salto havido de um sertão mítico para este sertão contaminado do moderno. Mergulha-se mais fundo nos traços transnacionais do "road movie" e no diálogo com Wim Wenders.
FOLHA - Como se dá a conexão entre a recorrência temática do "pragmatismo de pobre x o ressentimento de classe média" no cinema com o momento político do país?
XAVIER -
Não tenho um modo de explicar essa conexão, mas temos um sintoma a estudar, que é essa pauta da reconciliação e do pragmatismo como dados hegemônicos na vida política e no imaginário do cinema.
Havia antes a idéia de que o cineasta tinha um mandato da sociedade. Ele representava valores de transformação, falava em nome das classes populares, do Brasil excluído.
Isso se dissolveu e hoje se tem um cinema mais preocupado em se legitimar. É um cinema culpado. Ele precisa provar que tem legitimidade. Precisa de uma penetração social que o justifique, diante de um quadro legislativo no qual determinadas leis o viabilizam. É a idéia de que, se o cinema brasileiro não ampliar sua comunicação com o público, a Lei do Audiovisual vai se deslegitimar.
Acredito que esse projeto de reconciliação tem a ver com o quadro geral da política do país. O que se tornou hegemônico na política brasileira é o pragmatismo. Não por acaso, a grande liderança que marcou a política brasileira nos últimos anos é Lula, que sempre foi mais pragmático do que doutrinário.

FOLHA - Como se deu o "mergulho mais profundo" no diálogo dos cineastas dos 90 com Wim Wenders?
ISMAIL XAVIER -
Este diálogo começa a ser construído com Walter Salles e se aprofunda com Karim Aïnouz, que radicalizou uma dramaturgia dos espaços e dos encontros reticentes. Cada um a seu modo, "Central do Brasil" (1998) e "Terra Estrangeira" (1996) [ambos de Salles], trabalham situações de migração. "Central do Brasil" numa chave que lembra "Alice nas Cidades" [Wenders, 1973] -o encontro do adulto com uma criança que está abandonada, embora num sentido completamente diferente.
Podemos ver a presença de Wenders também em Karim Aïnouz, onde se tem a conexão entre imigração, encontros e desencontros e a pauta de personagens angustiadas, porém capazes de gerar uma saída.
Há ainda a questão da exploração do espaço. É um cinema que quer elaborar a passagem dos personagens, mas sempre com maior ênfase a uma documentação do espaço do que propriamente em desenvolver os conflitos dramáticos.
É um cinema de escoamento do tempo e de contemplação, de interiorização da paisagem.
Em Wenders, essa questão do espaço é fundamental. Não diria que há intenção disso, mas em "Cinema, Aspirinas e Urubus" (Marcelo Gomes, 2005) há simetrias claras com "No Decurso do Tempo" [Wenders, 1976]. Você tem o encontro de duas pessoas; uma delas trabalha com cinema. Há a formação de uma amizade, a construção de uma relação que tem o sentido prático e o do afeto, ao mesmo tempo.

FOLHA - O sr. disse, no Festival de Brasília 2006, que "Serras da Desordem" (Andrea Tonacci) é seu filme brasileiro recente favorito. Por quê?
XAVIER -
"Serras da Desordem" é dotado de uma convivência de temporalidades. Ele tem conexão clara com os trabalhos anteriores de Tonacci, marcados pela vontade de construir uma experiência em que o espectador é convidado a acompanhar o processo e ir montando o jogo, cujas regras só vão ficando claras à medida que o filme avança, como já acontecia com "Bang Bang" (1971). Lá, com carga maior de agressividade.
Com a trajetória de Carapiru [o protagonista do filme é o personagem real Carapiru, índio da aldeia Awá Guajá que foge durante um ataque de jagunços e passa dez anos errante], o filme expressa a vontade de tornar clara a dimensão de violência contida nessa expansão de uma sociedade que pautou sua relação com a natureza por uma idéia de dominar.
Mas, em nenhum momento, Tonacci se coloca na posição de quem realmente conhece Carapiru. O personagem permanece opaco. Não temos a ilusão de ter acesso. Não se sabe o que houve com ele durante os dez anos em que perambulou, e não há da parte de Tonacci nenhuma ansiedade de perguntar.
Não há, ao longo da relação entre Carapiru e o filme "Serras da Desordem", a ilusão de que vamos chegar ao momento em que ele vira uma personagem transparente.
Paradoxalmente, Tonacci monta um jogo em que Carapiru é o [ator Paulo César] Pereio [o personagem à deriva de "Bang Bang"], às avessas -permanece uma pessoa que está representando e não está. É ator e não é.

FOLHA - Mas "Serras da Desordem" caminha para ter distribuição nanica no circuito de salas. É um exemplo de que se aprofunda a distância entre o gosto do público e os filmes que a crítica julga relevantes?
XAVIER -
Falar no cinema no singular é sempre uma simplificação. Há o cinema-poesia, o cinema-ensaio, o cinema-melodrama, as formas da comédia, a reportagem. Faz-se com o cinema o que se faz com a palavra escrita, da comunicação mais cotidiana à ciência, do passatempo à arte que exige uma reflexão mais atenta.
Uma cinematografia precisa de todos esses pólos de produção, como a vida literária. Não se pode julgar Guimarães Rosa ou Clarice Lispector pela quantidade de livros vendidos. O que dizer da poesia? Imagine uma literatura só de Paulos Coelhos ou um cinema só de fórmulas.
O erro está em projetar os critérios de um circuito no outro. Prefiro "Serras da Desordem" e "Filme de Amor" (Julio Bressane) ou "O Céu de Suely" (Karim Aïnouz) ou o cinema de Beto Brant. É a estes filmes que me dedico, pois fazem pensar e me ensinam muita coisa. É por causa disto que vou ao cinema -como formação, enriquecimento de repertório.
Mas há quem prefira sempre "mais do mesmo" ou tome o cinema apenas como negócio, que também é. É outro jogo, do qual estou fora.
Quem questiona o custo social destas experiências, a rigor, está questionando o custo social da educação, da saúde, da segurança, da pesquisa científica, o que é absurdo.


* publicado na Folha de São Paulo -03.2.2007

22 Comentários

José Teixeira Neto disse...

Quando o teórico (e também crítico) Ismail Xavier afirma "havia antes a idéia de que o cineasta tinha um mandato da sociedade. Ele representava valores de transformação, falava em nome das classes populares, do Brasil excluído. Isso se dissolveu", ele lamenta a mudança, mas não se questiona sobre o tal mandato, auto-outorgado. Parece-lhe natural alguém erigir-se a si mesmo em paladino dos oprimidos ou do povo como um todo. Quando digo "acha natural", quero significar: não submeteu ao crivo da crítica, abdicou, em parte, do pensamento independente, ou seja, admitiu a militância na teoria. Ismail é um gigante da pesquisa no Brasil, mas também ele tem seus aspectos menos consistentes.

Rodrigo Cássio disse...

Olá, José Teixeira

Grande tema. Não penso que Ismail deixa de fazer a crítica da militância. Vejamos a análise de "Barravento" em Sertão-Mar: Ismail admite uma atualização da sua própria perspectiva, que torna mais complexa a própria noção de mandato social auto-imposta pelos cineastas (no caso, Glauber).

Em Alegorias do Subdesenvolvimento, o que temos não é justamente um balanço daquele cume (chamado cinema marginal) ao qual o cinema novo foi conduzido em virtude da militância?

Além do mais, este imperativo da auto-crítica, que você parece defender, também precisa ser justificado. Por qual motivo se deve abandonar a "militância" (ou, trocando os termos, o "embate crítico", o "confronto com a ordem estabelecida") na arte e na teoria?

Não vejo "pensamento independente" como algo oposto à "militância na teoria", tal como você propõe. Antes pelo contrário. Militância e independência podem coexistir, desde que bem conjugadas.

E acho que são bem conjugadas, quando, por exemplo, demonstramos que a liberação estética do cinema moderno brasileiro resultou em obras muito superiores, para a arte do cinema, em relação à homogeneidade dos "filmes de resultado" de hoje (pra usar um termo de Ismail).

Lisandro Nogueira disse...

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Lisandro Nogueira disse...

Caros José Teixeira e Rodrigo Cássio: quero saudar a volta de José Teixeira ao blog. Vamos continuar esse debate: me recordo de um texto de Jean-Claude Bernardeth no livro "Cineastas e imagens do povo". Ele faz uma análise do filme "Opinião pública". Qual o lugar do cineasta nos diagnósticos da nação? Se ele dá a "voz ao povo" (a voz da experiência), quais os motivos para exaltar em demasia a "voz do saber" (a voz da suposta competência intelectual e científica)? E mais: quais os motivos para tão poucos filmes sobre a classe média? (a classe dos cineastas). No cinema moderno alguns cineastas fizeram críticas sociais intensas e interessantes sem essa "delegação". Os filmes brasileiros que ficaram na história têm muito pouco dessa auto-delegação. Os cineastas, em entrevistas, até se proclamaram representantes do povo (Glauber) mas seus filmes caminharam em outra direção.

José Teixeira Neto disse...

Prezado Rodrigo,
legal que você tenha recorrido à leitura de outras obras do professor Ismail para refletir sobre minha observação, muito mais modesta, que se apoia apenas em duas ou três linhas da entrevista aqui publicada. Isso dá um alcance mais ambicioso à sua fala, que devo reconhecer.
Fiz, na verdade, apenas duas afirmações, ou insinuações, que rememoro: 1) "o mandato popular dos cineastas foi auto-outorgado" e 2) "o professor Ismail admitiu a militância político-ideológica na teoria".
Você interessou-se mais pela segunda, embora, creio, a primeira tenha um alcance mais geral, pois baseia-se no registro de grande parte dos artistas e intelectuais do romantismo para cá. Ela cobra também de todos nós uma atenção especial porque a ideia de serem necessários paladinos, num processo de emancipação, beira o paradoxo. E o pior: os paladinos autonomeiam-se a si mesmos do papel e das bandeiras.
Por outro lado, tive dificuldade em entender o que você quis dizer com "demonstramos que a liberação estética do cinema moderno brasileiro resultou em obras muito superiores, para a arte do cinema, em relação à homogeneidade dos 'filmes de resultado'" Quando se deu essa liberação?
Vamos conversando: tudo isso dá bastante pano pra manga.

Rodrigo disse...

Oi José Teixeira,

Desculpe, mas a mensagem será grande (haja pano pra essa manga!):

Penso que as duas questões estão conectadas: de um lado, a liberação estética de que falei; de outro, a existência dos "paladinos", que você aponta muito bem como uma herança do romantismo, presente nas lutas dos anos 1960.

Sobre a primeira, especificamente, penso que a existência de líderes em um projeto emancipatório não é necessariamente um paradoxo; a não ser, talvez, que o objetivo da emancipação seja algo como a extinção da liderança (e mesmo assim, "talvez"). Não é disso que se trata, mesmo quando partimos de uma perspectiva crítica como foi a do cinema novo; isto é, mesmo se o nosso lugar de fala é o marxismo e as suas intenções revolucionárias, tal como foram apropriadas na América Latina (vejamos, por exemplo, o que se entendia por "revolução" no Brasil sessentista, o programa do PCB, as teses que tomavam o “desenvolvimento” como uma etapa prévia obrigatória, etc).

Continuando numa linha mais conceitual, penso que o problema maior, em todo caso, é que a recusa da liderança como algo legítimo para a emancipação tende a omitir os discursos em conflito no tecido social: omite-se o processo de solidificação de uma hegemonia e as possibilidades de resistência a ela. Um "paladino" é teoricamente aceitável quando assumimos que o acesso a certas instâncias discursivas é privilégio de alguns, e uma concreta impossibilidade para outros.

Não precisaríamos defender o nosso "paladino" como dono de uma verdade absoluta para acatarmos essa ideia. Basta notar que as atualizações da sociedade de massas sempre foram marcadas pelo empobrecimento da cultura, em diversos âmbitos, inclusive o intelectual/crítico. Recusar a pertinência de um líder não seria recusar a possibilidade do melhor? Do diferente? (não no sentido romântico, mas no sentido da diversidade intrínseca ao humano). A meu ver, a emancipação não pressupõe esse mundo insosso onde ninguém pode ter mais que um outro (mais aptidão para a liderança, por exemplo), mas sim um projeto de civilização calcado numa racionalidade coerente com a condição humana de igualdade – a igualdade de condições, que permite ao diferente que se manifeste.

O problema, em suma, não é a possibilidade da liderança, mas a maneira como ela pode ser exercida.

Quanto ao segundo tópico, este mesmo empobrecimento da experiência intelectual se desenvolve no plano estético. A validade atual do conceito de indústria cultural (o conceito sério, e não a banalização que ele sofre, hoje) talvez seja confirmada pelo cinema brasileiro. A despeito de certas produções relegadas à margem do cinema oficializado pelas leis de incentivo, penso que o cinema novo e o cinema marginal não encontram sua devida ressonância, ainda agora: não foram sequer absorvidos, como projetos estéticos, por muitos cineastas.

Certamente, foi a instabilidade dos anos 1960/70 que permitiu ao cinema brasileiro atingir aquele ápice (mais um dos nossos ciclos? iniciado e terminado?). Do outro lado, é a nossa estabilidade atual que nos contempla com filmes menos ousados e demasiado “corretos” para serem obras de arte, e não meras mercadorias culturais.

Passo a bola pra você, agora. Gostaria bastante de saber a sua opinião sobre o tema.

Abraços.

José Teixeira Neto disse...

Respondo primeiro a você, Lisandro. Depois me debruço sobre as formulações do Rodrigo. Na verdade, só faço um comentário ao que você disse e à linha de pesquisa vislumbrada na entrevista de Ismail Xavier. Podemos dizer que, sem fazer nenhuma hierarquização de valor entre Ismail e Jean-Caude Bernardet, os dois pertencem a duas gerações distintas do trabalho crítico e acadêmico sobre cinema no Brasil. Podemos acrescentar que, sem desmerecer em nada a contribuição de Jean-Claude, o trabalho de Ismail supera em rigor e abrangência o do belgo-brasileiro. No entanto, quando vemos Ismail trabalhando com categorias sociológicas como "pobres pragmáticos" e "classe média ressentida", parece estar prevalecendo no interior do trabalho, mais complexo e sofisticado, de Ismail o projeto de investigação bernardetiano. Quanto a mim, sou mais simpático ao projeto pré-universitário de Paulo Emílio Salles Gomes...

Lisandro Nogueira disse...

Olá José Teixeira,
Realmente Paulo Emílio é excelente. Mas penso que "Cineastas e imagens do povo", do Jean-claude Bernardet, consiga realizar uma boa crítica do documentário brasileiro dos anos 60. Bernardet pensou assuntos diversos como "autoria" "cinema marginal e psicanálise", "o que é cinema", "cinema iraniano", "cinema brasileiro" e "história do cinema brasileiro". Ou seja, diversidada forte e instigante. A pegada "sociológica" do Bernardet é mais "imediata" e a do Ismail mais elaborada.

José Teixeira Neto disse...

Caro Rodrigo, começo reproduzindo aqui as duas primeiras definições que o "Dicionário Houaiss" dá de "paladino:

1) Cavaleiro errante da Idade Média que vagava em busca de façanhas que lhe comprovassem o valor e a correção (Rubrica: história. Diacronismo: arqueologia verbal)
2) Cada um dos 12 pares de Carlos Magno, na tradição das canções de gesta (de 1881. Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: história da literatura)

Acho muito importante não confundirmos líder com paladino. Um paladino (além de tudo anacrônico) era Dom Quixote. Nas periferias das cidades brasileiras encontram-se justiceiros, outra espécie de paladino.
O mérito (?) da ação do paladino recai sobre si mesmo, e não sobre a sociedade ou o setor social apenas beneficiado passivamente por ele.
O líder é o representante, o que interage com o grupo social do qual faz parte, seja ou não membro de uma organização que dá os parâmetros de sua ação

Continua...

José Teixeira Neto disse...

É curioso virmos parar nessa discussão propriamente política, saindo de uma conversa sobre cinema. O antecedente mais ilustre dessa confusão é Glauber Rocha, o qual, centrado em seu forte personalismo, realmente confundia a instância do agir artístico com o ativismo político-panfletário. Chegando ao ponto de filiar-se, com carteirinha e tudo, a um partido político, o PDS, o partido de apoio ao governo Geisel. E merece respeito por isso. Cabe, porém, a nós discernir as coisas.

Continua...

Lisandro disse...

José Teixeira,
Acertou em cheio!! gosto da lembrança da personalidade de Glauber Rocha. Há um culto a sua personalidade, muitas vezes delirante e irresponsável, e esquecem de seus filmes - importantíssimos e bons esteticamente. O ativismo político-panflentário dele beirava muitas vezes ao autoritarismo e a atitudes malucas.

José Teixeira Neto disse...

Rodrigo, não sou anarquista (você assistiu "A nós, a liberdade", de René Clair, "Zero de conduta", de Jean Vigo, "L'âge d'or", de Buñuel?), embora respeite o pensamento gerado em torno do anarquismo (há gente boa envolvida). Defendo, portanto, a necessidade de lideranças organizadas para que a eficácia da ação social e política possa alcançar a máxima consequência. Esta é, no entanto, uma lógica interna ao grupo envolvido nessa luta. Nada diz de seu valor de um ponto de vista mais amplo, para não falar no ponto de vista da humanidade, que não devemos perder de vista. O enfoque leninista da organização partidária e das massas pode ter sido mais bem-sucedido que o de Rosa Luxemburgo, mas de modo nenhum podemos julgá-lo superior em relação a uma luta que tenha como parâmetro a humanidade.
E há outros enfoques da ação política, além desses mencionados. Há o modo social-democrata, o modo liberal (a meu ver, o modo anarquista é uma exacerbação do modo liberal), o modo conservador, o modo democrata-cristão, e todas as demais nuances que pode ter a ação política numa democracia – valor que interessa, e muito, preservar e ampliar.

Continua...

José Teixeira Neto disse...

Rodrigo e Lisandro, afirmei os pressupostos, mas não formulei explicitamente: a liderança não contradiz (pelo contrário, reforça-a) a emancipação, mas os paladinos contradizem!
Mas essa impregnação do trabalho artístico e intelectual por ditames da política começa no final do século XVIII, com a emergência consumada da burguesia, que chega à hegemonia, seja pela via da ruptura revolucionária, seja pela conquista gradativa de instâncias de poder. Passa-se a ver a criação de poesias, romances, peças de teatro, sinfonias, quadros e esculturas como forma de orientar e pré-configurar os alvos da luta social, em especial as lutas nacionais, além de incitar o público emocionalmente. Mas os artistas não eram vistos como diretamente políticos. A força política de sua arte dava-se pelos méritos intrinsecamente artísticos, e não por "mensagens" propagandísticas superpostas às obras de modo postiço. A "arte" de propaganda teve de aguardar a emergência do comunismo e do fascismo, bem posteriores, para surgir.

Continua...

José Teixeira Neto disse...

Tudo isso para dizer que a ideia de engajamento na arte é, por assim dizer, "natural" desde a emergência da burguesia no cenário histórico, sendo, no entanto, no Brasil dos anos 60, marcada pelo voluntarismo – daí a crítica ao professor Ismail. Esse voluntarismo autocentrado conduziu também à luta armada, que por si só já vale como exemplo do descaminho que o subjetivismo (e o apoio em teorias altamente questionáveis – a apologia da violência, além de atributo dos ditadores, marcou o surgimento de algo tão anti-social como o fascismo) pode trazer.
Seguindo esse raciocínio, acabei levado a concordar, embora com base em pressupostos diferentes, com a formulação de Rodrigo Cássio segundo a qual houve uma libertação estética. Sim, houve. Com a eclosão do cinema marginal (Sganzerla, Bressane, Reichenbach, Candeias, Tonacci, Visconti, Neville e outros) aconteceu uma libertação de um certo cinema, que merece o nome de "vanguarda artística" (não mais apenas política), em relação aos ditames políticos e de linguagem do Cinema Novo. A cada libertação, não cabe alimentar nostalgias em relação ao passado.

José Teixeira Neto disse...

Prezado Rodrigo, deixei passar sem comentário a sua observação talvez mais fecunda: "foi a instabilidade dos anos 1960/70 que permitiu ao cinema brasileiro atingir aquele ápice (mais um dos nossos ciclos? iniciado e terminado?). Do outro lado, é a nossa estabilidade atual que nos contempla com filmes menos ousados e demasiado 'corretos' para serem obras de arte, e não meras mercadorias culturais".
Ela também se presta a uma volta ao conceito de indústria cultural, mencionado por você em outro parágrafo. Com relação a isso, eu diria que não foi propriamente a "instabilidade" (que nos faz pensar nos aspectos político e econômico de um período marcado pela implantação de uma ditadura e pelas diversas reações que acarretou) que teve o mérito pela efervescência de propostas artísticas inovadoras nos anos 60 – nesse caso, teríamos de louvar a instabilidade e lamentar a normalidade democrática a duras penas reconquistada. Creio que o principal fator a contribuir para aquele florescer foi não estar ainda consolidada àquela época a indústria cultural (especialmente ainda não estava plenamente desenvolvido o potencial da Rede Globo e da Editora Abril, polos desse processo). Há também, na minha opinião, um fator, vamos dizer, "espiritual" na onda dos "filmes menos ousados" dos últimos tempos. Vicejou, desde os anos 70, além da conta um pensamento (e uma sensibilidade) apenas negativo, do contra (a ditadura, o capitalismo, o "sistema", a normalidade, as tradições, a articulação, a coerência, a forma), que se mostra incapaz de fomentar o surgimento não só do novo, mas especialmente de obras de qualidade.

Rodrigo Cássio disse...

Caro José Teixeira,
Concordo com você: a incipiência da indústria cultural nos anos 1960 viabilizou o cinema novo e o cinema marginal. Talvez não tanto como uma condição para a existência desses movimentos, mas principalmente como uma condição para que eles capitaneassem a chegada do cinema moderno ao Brasil. Digo isso porque também é importante notar que o cinema novo/marginal não esteve sozinho no cenário de realização de filmes, e o esforço de uma produção mais vinculada à indústria cultural coexistia já nos anos 1960.

O que também me leva a crer que a possibilidade da ruptura, hoje, entendida como possibilidade de existência, pode ser até maior do que a que houve naquelas décadas (pensemos no cinema digital). O problema de hoje seria o enfrentamento de uma indústria cultural já forte, assim como a redefinição (atualização) de conceitos importantes que vêm de antes do cinema moderno (como o de transparência). A partir de certo ponto, os desafios do cinema de ruptura são outros. A meu ver, isso passa pela identificação dos novos chavões dos filmes convencionais, como o adensamento do espetáculo (as imagens impactantes, os efeitos especiais), e o retraimento das narrativas, que ficam submissas a esse gozo mecânico com a imagem. Por outro lado, os desafios continuam os mesmos, na medida em que a atualização do formato convencional leva adiante muitas das balizas já presentes no passado, como o melodrama.

Também concordo que não é a mensagem engajada que faz de Glauber - pra seguir neste exemplo - um grande cineasta, mas a sua liberdade criativa. Não sei até que ponto esse "espírito negativo" que você identifica na nossa época é um fator contrário às obras de arte no cinema, mas reconheço que o cinema brasileiro é marcado por esse espírito, e essa marca é o que nos permite, por exemplo, cotejar os anos 1990 e os 1960.

Em certo sentido, eu penso que se cobra muito do cinema brasileiro, e muitas vezes sem razão. Não defendo uma nostalgia em relação ao cinema moderno, mas um aprofundamento do diálogo. Algo que permita a continuidade de projetos de ruptura, sufocados pela ideia comum da "qualidade", este fantasma antigo (vide Brasil em Tempo de Cinema). E esse aprofundamento pode ser visto em filmes que se destacam menos nas bilheterias, mas fazem questão de serem autorais. Filmes perdidos por aí, de passagem, em uma sala ou outra.

Um abraço

José Teixeira Neto disse...

Prezado Rodrigo Cássio,

aí estão alguns pequenos comentários a trechos de sua mensagem:

1) "O que também me leva a crer que a possibilidade da ruptura, hoje, entendida como possibilidade de existência, pode ser até maior do que a que houve naquelas décadas (pensemos no cinema digital)"
* Acredito firmemente nessa possibilidade.

2) "O problema de hoje seria [...] a redefinição (atualização) de conceitos importantes que vêm de antes do cinema moderno (como o de transparência)"
* Você não gostaria de escrever um artigo detalhando essa redefinição?

3) "Os desafios do cinema de ruptura são outros. A meu ver, isso passa pela identificação dos novos chavões dos filmes convencionais, como o adensamento do espetáculo (as imagens impactantes, os efeitos especiais), e o retraimento das narrativas, que ficam submissas a esse gozo mecânico com a imagem"
* Em minha opinião, a identificação desses novos chavões, bem ilustrados por você (os efeitos especiais são dez mil vez mais dignos de atenção que as estruturas melodramáticas), tem um papel muito mais fecundo na análise das novas produções. E o retraimento não é só da narrativa, é de todo elemento ficcional e de encadeamento das ideias. Supõe-se, em muitos exemplos, que a mera exposição de aspectos do real prescinda do trabalho formal (muito além de imagístico, inclui o que entendemos, fora do cinema, por ideia, conceito, pensamento) de busca e construção do artístico na obra. Muitos filmes de ficção comprazem-se em tentar parecer documentários. No teatro também se assiste a fenômeno análogo: o importante são atores e o cenário, o texto pode ser qualquer coisa, como palavras de línguas inventadas, textos improvisados sem consistência pelos atores (os quais sempre que dão entrevistas percebemos precisarem de scripts...).
Identificar problemas como esses já é uma grande ajuda para facilitar o surgimento de uma nova produção, mais significativa. Mas penso que também podemos pautar-nos por casos especialmente interessantes de obras já existentes, para, com base nelas, propormos um cinema menos de ruptura, e mais de aprofundamento. Tenho em mente, em primeiro lugar, a obra de Sérgio Rezende, Murilo Salles, Walter Lima Jr., Carlos Alberto Prates Correia, o Fernando Meirelles de "Cidade de Deus" (mas não o de "Ensaio sobre a Cegueira").

Lisandro Nogueira disse...

Caros: apenas uma obervação: O uso dos os efeitos especiais é cada vez mais intenso. Mas são tb. subordinados a um esquema melodramáticos cada vez mais sofisticado. Podemos pensar que esse esquema afirma uma aliança, ou uma junção, de personagens tradicionais do melodrama com novas "personas" contemporâneas": psicopatas, perversos, etc - mas não só isso. O melodrama continua forte e os efeitos especiais são um suporte luxuoso para a sua atualização. Surge aí uma questão: quando falamos de melodrama é comum pensarmos o "melodrama antigo", romanceado. O gênero é fortíssimo e tem a capacidade inegável da atualização. Outra questão: até os videogames, em alguns casos, possuem um esquema de melodrama. Ah, lembrando: "X-men", o novo, é recheado de efeitos especiais. Todavia, o que prevalece?

Rodrigo Cássio disse...

José Teixeira,

Concordo com o Lisandro quanto ao melodrama. Por isso, escrevi logo abaixo do trecho que você destacou: "Por outro lado, os desafios continuam os mesmos, na medida em que a atualização do formato convencional leva adiante muitas das balizas já presentes no passado, como o melodrama."

E isso é muito importante, pois evidencia que o projeto ideológico no qual o cinema industrial nasceu continua o mesmo, em essência. A própria sofisticação da linguagem do cinema com os efeitos especiais deixa ver a ampliação de uma característica marcante desse projeto, que é a tecnologização intensiva da vida.

Creio que isso tem a ver com o debate do outro post (acima), sobre as vanguardas. Não faz mais pleno sentido, de fato, o ato desvelador que justificou os projetos mais radicais da ruptura em décadas de modernismo (incluindo o cinema). O realismo de hoje é revigorado. É nesse sentido que eu considero a transparência um conceito a ser meditado: ela existe, de fato, nos filmes que continuam o projeto estético do cinema clássico. Mas, como conceito, ela adquiriu nuances decisivas. A ruptura como acusação de uma impossibilidade da mímese já foi realizada. Podemos perguntar: o que pode ser feito agora?

Lembro de uma cena muito boa do último filme do Sam Mendes, "Foi apenas um sonho". É quando as personagens de Kate Winslet (April) e Leonardo DiCaprio (Frank) têm uma discussão extrema, e fica claro que uma reconciliação seria impossível. Ambos não se falam mais, até o dia seguinte, quando April recebe Frank na cozinha, café pronto e sorrisos, como se tudo estivesse bem. Essa cena acerta em cheio ao se referir ao poder da hegemonia de se manter vigente, ainda agora: não precisamos acreditar nela, desde que ajamos como se acreditássemos.

Os filmes que considero mais adiantados nesse processo de atualização da ruptura são aqueles que já guardam distanciamento dos conceitos tradicionais, e desafiam a elaboração de novas categorias interpretativas. O último filme do Andrea Tonacci me parece o melhor exemplo no cinema brasileiro.

Lisandro disse...

O filme do Tonacci será exibido no Fica: assim como "Mutum", "Filmefobia", "Garapa" e ....."Tropa de elite" (rs, rs)

José Teixeira Neto disse...

Prezado Lisandro, vou partir de uma passagem de sua penúltima fala para fazer certo número de comentários, embora alguns pontos, que poderiam ser ditos agora, fiquem para depois, quando das observações que serão feitas à fala de Rodrigo Cássio que veio a seguir: "O uso dos efeitos especiais é cada vez mais intenso. Mas é tb. subordinado a um esquema melodramático cada vez mais sofisticado. Podemos pensar que esse esquema afirma uma aliança, ou uma junção, de personagens tradicionais do melodrama com novas 'personas'contemporâneas". Em primeiro lugar, creio que seria mais adequado chamar de "tipos", em vez de "personas" (máscaras) os inúmeros psicopatas e perversos variados que povoam muitos filmes contemporâneos.
Em segundo lugar, reconheço sem dificuldade a permanência das estruturas melodramáticas de narração na produção atual, e, portanto, a sua força inegável.
Lembro também um leitor-participante (Thiago) do Blog que afirmou não ser, na opinião dele, sua intenção (de você, Lisandro) combater o melodrama, e sim apenas estudá-lo em suas múltiplas aparições.
Mas eu continuo achando que você move uma verdadeira cruzada contra o melodrama, e não apenas procura pesquisá-lo.
Quanto a isso, o que eu tenho a dizer (e reafirmando que é muito mais merecedor de um trabalho intelectual crítico o uso, cada vez maior mesmo, dos efeitos especiais e da tecnologia como um valor em si) é que as estruturas melodramáticas são elementos apriorísticos que, juntamente com certo conteúdo moral (a vitória do bem, o final feliz), ajudam a tornar mais vendável o produto cultural, prevalecendo-se do terreno já aplainado pelo costume para conseguir mais aceitação mercadológica. Mas o fundamental não é o uso pelo mercado, e sim o aspecto a priori, da mesma forma que, na poesia, temos os sonetos (2 estrofes de 4 versos e 2 estrofes de 3), na música o uso dos refrões, rimas e estribilhos, na pintura a escolha de gêneros como paisagem, retrato, naturezas-mortas. É por isso que fiz questão de esboçar um paralelo entre você e vanguardistas mallarmeanos do final do século XIX. Levada até as últimas consequências a sua posição, inúmeras vezes reiterada, a abdicação total dos elementos apriorísticos na produção cultural levaria ao produto mais descabelado do experimentalismo que, talvez, nem o adorniano mais ensandecido poderia defender...

Lisandro disse...

Caro José Teixeira, com a experiência na "clinica", ou seja, na sala de aula percebo q. a "estrutura clássica" no cinema é extremamente forte - daí a noção de olhar domesticado. Ao contrário do que você afirma, trabalho arduamente todos os dias para que os alunos não pensem que o "experimentalismo" e as "vanguardas" sejam o melhor dos mundos. Existem vanguardas e experimentalismos muito ruins, assim como existem melodramas bons e melodramas péssimos. A idéia da formação comporta identificar os vários vetores e incentivar o "próprio olhar" É só isso...

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