A certa altura de “Che”, em cartaz na cidade, o diretor de estúdio da rede americana CBS interrompe uma entrevista do guerrilheiro: “Corta!” Brevíssima, a cena pode passar despercebida, embora não esteja ali por acaso. É mais um momento em que o diretor Steven Soderbergh sublinha uma questão fundamental para a obra: toda história é uma história contada — e, portanto, sujeita à edição, à manipulação consciente e inconsciente, ao esquecimento e à interpretação.
O Che de Soderbergh não é o Che sanguinário da direita raivosa; tampouco o Che santificado da esquerda ingênua. O Che de Soderbergh é o Che midiático. É consciente da carga simbólica que a imagem do revolucionário carrega que o diretor parte para uma operação cinematográfica sutil. Não, Soderbergh não desconstrói o mito. O que ele faz é criar sua própria versão do mito, ressaltando, aqui e ali, a influência da mediação na construção da realidade.
Em resumo, o longa-metragem narra a transformação do médico argentino Ernesto Guevara no Comandante Che — líder guerrilheiro e herói popular em Cuba. O personagem é vivido pelo ator Benício Del Toro, premiado em Cannes 2008. Também produtor, Del Toro está envolvido no projeto desde o início da década, primeiramente com a intenção de representar a fase final da vida de Che, sobretudo sua passagem pela Bolívia, onde é assassinado. O trabalho de pesquisa, porém, levou à decisão de estender o período coberto pela obra e, consequentemente, à sua divisão em duas partes. O filme atualmente em cartaz em Goiânia é a “Parte 1”, de contextualização. A “Parte 2”, que materializa o projeto original, está prevista para estrear no Brasil em 31 de julho.
“Che”, portanto, é uma obra ainda incompleta. O que se pode depreender dessa metade inicial é que o processo de contar a história (storytelling) é tão importante para o diretor quanto a história em si e o realismo da representação. O uso do preto-e-branco e da câmera instável nas sequências novaiorquinas, por exemplo, pode ser relacionado ao gênero documental; já a cor e a luz das cenas em Cuba criam uma ambientação naturalista para o quadro. Os dois artifícios contribuem para o realismo. Mas a constante alternância de registros, ligados que estão aos saltos temporais (flashbacks e flashforwards), chama a atenção para a montagem e expõe o esqueleto do filme — o roteiro. O resultado é um distanciamento do storytelling clássico e a exigência de uma nova postura por parte do espectador, que se vê diante de outro tipo de organicidade. A imagem do Che de Soderbergh não é dada pronta. Ela se forma a partir de pedaços (às vezes complementares e por vezes contraditórios).
Para chegar a esse Che, é preciso coletar os fragmentos espalhados ao longo do filme em variadas instâncias representativas e narrativas. A encenação e o “voice over” são duas das principais; contudo, outras mediações estão incorporadas ao enredo, ainda que com papel menor ou mesmo simbólico (a entrevista, a reportagem de televisão, a transmissão radiofônica, a tradução do intérprete, etc). Ao compor visualmente esse mosaico, Soderbergh mostra um Che rodeado por “construtores de realidades e irrealidades” (repórteres, editores, fotógrafos, tradutores, professores e, claro, Fidel Castro, estrategista sempre atento ao “efeito psicológico” da ação).
É nesse contexto que nasce o mito de Che, alvo da investigação do filme. Se ele se parece verdadeiramente com o homem morto em outubro de 1957, em La Higuera, é outra história. Mas aqui está um bom ponto de partida para a reflexão.
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Marco Aurélio Vigário é jornalista, editor-executivo da Tribuna do Planalto e autor do blog www.primeiroplano.blogspot.com
14 Comentários
Pessoal,
esses alunos e ex-alunos do Lisandro são bons de estudo. O texto do W e esse do CHE estão muito bons.
O jornalista Marcus Aurélio acertou em cheio. O filme não é de direita e nem de esquerda. O Che que vemos é midiático, quase sem graça, quase um deus, quase um homem não humano. O filme prende a atenção mas é limitado. Há o respeito demasiado pelo mito. Não sabemos at hoje que é esse homem. Virou Mito mesmo. Parabéns aurelio
Cândido, seu comentário me dá espaço para desenvolver mais meu argumento. Na verdade, eu considero o filme interessante, pois, apesar de favorável à boa imagem de Che no cômputo geral, ele se mostra consciente da aura mítica que envolve essa figura. Não é inocente nesse ponto. Acredito que haja um diálogo com essa visão midiática do Che. Mais do que investigar o homem, Soderbergh investiga o processo de formação dessa carga simbólica que a imagem dele carrega. Cito alguns trechos que corroboram essa perspectiva no texto, mas posso, por exemplo, lembrar de outro agora: a mulher que procura Che não por estar doente, mas porque nunca havia visto um médico na vida. Soderbergh, aqui, não está falando do guerrilheiro ou do homem (ou não só), está falando de uma imagem e de como ela se enraiza no imaginário popular.
Sobre a questão específica de manter uma boa imagem de Che, acredito que o filme até aborda aspectos negativos da conduta e da moral dele, mas no cômputo geral, como disse, o filme é favorável a Che e à revolução cubana. Isso já fica claro no início, quando, por exemplo, são exibidas imagens da Cuba do ditador Fulgêncio Batista como um grande bordel a céu aberto. Essa é a visão dos guerrilheiros (se é verdade ou não, é outra história). Entrando no site oficial do filme, também é possível notar que ele tem o apoio do atual governo cubano, fazendo parte, inclusive, do movimento em comemoração ao cinquentenário da revolução. Será que teria esse apoio se não lhe fosse favorável? Acredito que não.
De qualquer forma, entendo a dificuldade de se falar sobre Che sem se apaixonar por esse grande personagem que ele é. É preciso registrar ainda que o filme é baseado sobretudo em escritos do próprio Che. Além de pesquisas em outras fontes (livros, entrevistas, arquivos de imagens, etc), tem também a consultoria do jornalista Jon Lee Anderson, que escreveu uma conceituada biografia sobre o guerrilheiro. A título de curiosidade, foi Anderson quem descobriu o local exato onde estavam enterrados os restos mortais de Che, exumados em 1997.
Resumindo, não descarto o filme. Acho que há muitos pontos positivos.
Obrigado pelo comentário. Abraço!
Ninguém tem coragem de falar que Che Guevara foi um facínora, para não dizer um grande fascista. Tinha aquela atmosfera sinistra, calada e violenta. O texto infelizmente não quis falar da terrível cena de matança.
Prof. Lisandro, tenho prazer de abrir seu blog. Já fiz outros comentários. Mas me deparo agora com atitude tão sem educação do senhor Candido Cesar. Não se pode chamar alguém com a história de Che daquela forma. Me recuso a tratar os mitos da história com essas palavras. Infelizmente existem pessoas que não sabem discutir as questões.
Marco: grande texto, dá prazer ler. É a melhor defesa que já vi do filme - e concordo com ela. O filme me lembra um pouco "A Rainha" de Stephen Frears já que, mesmo não carregando no maniqueísmo, os dois filmes acabam sendo levemente positivos para seus protagonistas (Elizabeth II e Che).
Outra coisa: Stephen Frears tem altos e baixos. Já de Steven Soderbergh, espero apenas lixo. Então, acabou ficando melhor do que eu apostava. A visão sobre Che também está menos ingênua do que a apresentada por Walter Salles em "Diários de Motocicleta", embora não dê para comprar um filme com o outro.
Por quê os facínoras da esquerda são perdoados como Che, Mao e outros? Por que essa defesa de líderes que mataram e fizeram muitas atrocidades? Se fui duro é porque não é possivel compartilhar com essa idéia de que Che, Mao e outros foram tão importantes na História. Peço desculpas se ofendi o prof.Edigar.
Penso que deveríamos tb. olhar o Che do filme. Como construção de realidade, é um filme regular que contribui para uma boa reflexão. Marco Aurélio deu início ao detectar o "Che midiático", nem esquerda e nem direita.
Eduardo, também gosto de "A Rainha" e concordo com você: "Che" é menos ingênuo que "Diários". A favor do filme do Walter Salles conta o fato de ser construído como um road movie. Grande abraço!
Parabens pelo seu texto Marco, eu vi o filme ontem e achei um CHE não somente tão midiático, mas também um CHE revolucionário, muito embora eu tenha corrido o risco de ter sido engolido pelo mito. A primeira parte foi muito bem.
Olá Carlos Eduardo,
Além de um grande torcedor do Vila Nova, é um grande cinéfilo. Apareça sempre por aqui.
Obrigado meu amigo Lisandro...cuja esperança de um Vila forte a gente nunca perde...rs
Estarei sempre por aqui e já até adicionei o blog como um dos meus favoritos...
abraços..
Esta nova série The Knick com Steven Soderbergh tem enlouquecido me que ela tinha ouvido falar sobre mim e eu achei muito interessante.
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