{O Lisandro tirou uns dias de férias. Na sua ausência, vou administrar o blog - o que é uma honra. Entrou em cartaz o bom filme de Ang Lee: "Desejo e perigo" - em cartaz no Cine Lumière - Pedro Vinitz}.
O sexo, a imagem e sua trascendência
Paulo Santos Lima*
O cinema de Ang Lee é bastante curioso. Seus filmes, em princípio, parecem aqueles realizados por um artesão de estúdio, seguindo uma pauta bem formatada ao cinema de gênero. Mas ao mesmo tempo, entre coisa e outra que aparecem na tela, surge algo de diferente, que cria uma certa rachadura ou mancha na arquitetura construída.
Podemos chamar de um cinema “denorex”, cujo exemplo literal, ao nível da história contada, está em Banquete de Casamento (o cara que se declara gay na sua festa de casamento com uma pequena), e mostra-se de modo mais complexo em Hulk (careta na péssima dramaturgia mas traduzindo os HQs para o cinema a ponto de reproduzir com os movimentos de câmera e splitscreens um mirabolante exercício de leitura em “páginas” em formato 1:85).
Desejo e Perigo é outro “parece mas não é” de Ang Lee, cuja “trapaça” se faz ainda maior (talvez porque todo o filme pareça “maior”): pomposo, utilizando vários recursos narrativo-industriais, uma superprodução daquelas que nos fazem lembrar das altas somas despendidas. Estamos numa espécie de thriller dramático de espionagem que acontece entre os anos 30 e 40, durante a invasão japonesa na China, país já tumultuado pelos ingleses.
Acompanhamos a gênese militante da protagonista, Wei Tang (Wang Hui Ling), estudante em Hong Kong que parte para a resistência contra os invasores nipônicos. Sua primeira missão não será, assim, tão caloura: seduzir o colaboracionista Yee (Tony Leung), figurão do governo chinês, e atraí-lo para uma tocaia mortal. Ele, na maior tradição romanesca (e dos thrillers de espionagem da história do cinema), apaixonar-se-á pela bonitinha – o que não é, afinal, algo muito difícil.
Lee utiliza-se de uma gramática aparentemente tradicional, que narra um entrecho já bastante sedimentado pela história do cinema, utilizando consonantemente a trilha incidental e sonora com as ações, montagem colando aveludadamente os planos, códigos dramatúrgicos bem conhecidos etc.
Eis que surge o “treinamento” da protagonista: na cama, a virgem moça transa mecanicamente com um partidário para que pareça uma mulher casada e sexualmente madura. É uma cena (ainda) sob lençóis, mas bastante “extraterrestre” para um repertório até então mostrado tradicionalmente na tela. Isso é só um indício.
Se Ang Lee monta a sua narrativa na maior das transparências, inclusive deixando tudo bastante fluido e solene (sem sair da mesma seara geopolítica – alguém se lembra do curioso O Último Imperador, de Bertolucci?), o momento em que Yee e Wei finalmente se pegam na cama desvela algo que já estava interdito desde o início, no jogo de mahjong entre as mulheres que é filmado com uma câmera que mantém sua elegância num frisson de movimentos um tanto bruscos, decerto acelerados: uma brutalidade inominável. Brutalidade que estaria num outro tipo de cinema, menos iconográfico.
E daí vem a rasteira genial de Ang Lee, na medida em que a cena de sexo, carnal, no melhor exemplo de cinema físico, é ambígua — Yee maltrata a sua amante ou apenas a celebra de modo um tanto fora dos padrões? A doce Wei geme de dor, desespero ou prazer? Saberemos (em termos) lá pela frente. O que temos, de palpável, bem... são os corpos: as curvas, planícies e vales carnais, rala relva de pêlos axilares e pubianos de Wei, tudo muito bem inscrito na tela, com o corpo do austero Yee completando a geografia corporal nos atos sexuais.
Tudo isso, é bom lembrar, sob forte desconforto de uma trilha incidental que acompanha os bofetes e trancaços de Yee contra Wei, até chegarem ao momento supremo das manobras. Talvez seja sexo explícito, mas a câmera não chega a centímetros da penetração, e uma sombra ajuda a deixar a coisa menos evidente.
A partir dessa seqüência, o filme literalmente penetra fundo, como diz Wei sobre como Yee a invade como uma serpente; assim como, depois, quando ele chega ao êxtase, ela o tem nas mãos. Mantendo a mesma gramática, o filme mudará um pouco a sua caligrafia, com mais pulsação, tensão e imagens cáusticas (menos a de sexo e mais um plano no qual a câmera vai literalmente para o abismo).
É no terço final que fica claro que Desejo e Perigo versa sobre o amor e o sexo: o amor roubado de Wei pela militância política (ela gostava de um jovem colega, Kuang) e o sexo que será o caminho possível para vida e morte (é o sexo com Yee o que Wei tem de mais certo, o que justifica sua paixão por ele). O amor e o sexo que também estão na própria construção do filme, que em princípio e constrói romanticamente suas cenas para, no correr, descortiná-las de seu lamê e mostrar seu corpo, o que há por trás dos adereços.
Não é por menos que o último plano deste longa mostra um leito vazio, imagem subjetiva de alguém que pena por uma ausência; ausência que deixa deserta aquela cama, lugar de revelações e explosões de sentidos, ambigüidades e certezas. Já que o sexo faz transcender, Ang Lee, cineasta afinado ao cinema de gênero, tenta a imagem transcendental para fazer seu filme idem. Desejo e Perigo é belíssimo filme de alcova.
* Paulo Santos Lima é crítica da revista Cinética.
8 Comentários
Pessoal,
Administrar um blog não é fácil. Disseram-me que esse filme do Ang Lee é bem melhor do aquele dos rapazes do faroeste que se amam.
Aquele dos rapazes do faroeste que se amam não seria "Brokeback Mountain" que ganhou 3 Oscars em 2005, incluindo melhor diretor?
É isso mesmo: "Brokeback Mountain". Obrigado por lembrar.
Anônimo insinuou que o Oscar qualifica o filme como bom?
O anonimo está enganado. O Oscar é um festa da indústria do cinema. Obviamente que aparecem filmes bons. Mas esse filme "Desejo e perigo" é muito bom.
Apenas dei a informação do nome do filme, que pode ser encontrado em sites como IMDB que foi o lugar que procurei para dar esta informação. Adicionei a informação do Oscar como uma forma de lembrete, para os que não se lembravam.
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