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O legado do capitão Nascimento
Rodrigo Cássio*
Um amigo cinéfilo chama a atenção para o novo sucesso de vendas no mercado de filmes piratas de São Paulo: Rota Comando, um filme sobre o batalhão de choque da polícia paulista. Ligo a TV na Fox e assisto a série 9mm: São Paulo, produção brasileira e estadunidense. Passada também em São Paulo, a série mostra o cotidiano dos policiais que se envolvem na resolução de crimes terríveis do Brasil suburbano.
Qualquer semelhança dessas produções com Tropa de Elite não é mera coincidência. Ao contrário, é fácil perceber a influência do filme de José Padilha em ambos, seja na câmera-na-mão ágil, nas atuações impetuosas que marcam certo tipo de presença da polícia em cena, e, sobretudo, no esquema melodramático que imerge a trama na polaridade do bem contra o mal – cujo pano de fundo, sobrepujante em Tropa de Elite, é a moralização do espectador que não suscita dúvidas quanto à maneira adequada de confrontar os problemas sociais expostos na tela.
Pessoalmente, tenho um pouco de enfado quando se trata de discutir o filme de Padilha – algo que já foi feito exaustivamente, na época de seu estrondoso lançamento.
As apropriações do filme a um discurso tacanho da pior direita possível estão inteiramente representados em um artigo de Reinaldo Azevedo, cujas falácias foram rebatidas, ponto a ponto, em um post brilhante no Catatau. Os limites de Tropa de Elite, como cinema, prejudicam todas as tentativas de considerar relevante o seu discurso sobre a violência urbana, a vida nas favelas ou as condições da polícia nesse contexto. O próprio filme dá vazão àqueles que o interpretam a partir de infinitos interesses, mas sempre ignorando o valor da apreciação estética e da reflexão sobre a arte e suas maneiras de significar a experiência.
Nesse sentido, é muito conveniente a quem considera que os nossos problemas se resumem à imoralidade ou a falta de punição (ou seja: mais e melhor polícia! mais e melhores leis!) perceber em Capitão Nascimento um arauto da redenção social brasileira, anunciada há muito pelos nossos teleapresentadores sensacionalistas – de Carlos Massa a José Luiz Datena – sob a fachada do “jornalismo cidadão”.
Tropa de Elite não se distingue, fundamentalmente, do tipo de entretenimento camuflado de crítica social praticado nesse meio. Se há algo que explica o quanto o filme foi bem sucedido, pelo viés ideológico, é a delongada acomodação dos espectadores a esta maneira de perceber o mundo que recusa as nuances, o pensamento, o aprofundamento – trata-se aqui da pequenez de um homem que, infelizmente, não vai além da sua funcionalidade produtiva; homo laborans que toma a pólis como adversária ou lugar de penitência, e, por isso, não tem condições de tomar a si mesmo como ser político. Por isso, em lugar da política, a pura violência, cinicamente travestida de ação corretiva.
Desse modo, a empreitada de obras congêneres, ambientadas agora em São Paulo, encontra em Tropa de Elite não apenas uma referência estética, mas uma visada mercadológica acertada, que supre uma demanda de filmes de ação de caráter muito próximo – em termos de experiência sensorial – daquilo que o cinema hollywoodiano oferece há muito tempo.
Com estas produções (e a elas podemos associar outro marco de sucesso da década que se encerra: Cidade de Deus e seus herdeiros audiovisuais diretos), o cinema brasileiro pode encontrar os trilhos de uma indústria cultural com sentido “clássico”: de um lado, a reprodução da sensibilidade volatilizada do dia-a-dia moderno, impregnada nos trabalhadores que, hoje, se não são fabris como no século XIX, devotam a “produtividade” e a “eficiência” com o mesmo ritmo das máquinas que precisam dominar; de outro, o contato direto com a realidade mais próxima, as cidades brasileiras em que habitamos, os medos que sentimos, as soluções ideologicamente “limpas” para que nada do que nos incomoda seja realmente modificado em seus alicerces, mas tão somente na positividade do que foi proposto como objetivo do “todo social”: a aparência de que tudo está bem, quando tudo o que há é o espectro das vidas particulares, que ora podem ser afirmadas como modelos heróicos (a dimensão da honestidade de Capitão Nascimento e do Bope) ora podem ser descartadas como elementos podres da totalidade (os que levam os tiros, os que consomem as drogas).
Em uma história contada em “ciclos”, como a do cinema brasileiro, é difícil fazer previsões infalíveis. Mas não se trata de prever os seus rumos – antes seria o caso de olhar para o seu passado próximo. Quando Ivana Bentes lançou a polêmica hipótese da cosmética da fome – um artefato dos anos 1990 para “encaixar” a pobreza, antes tematizada pelo cinema novo, no contexto do neoliberalismo e da suposta retração das ideologias – não estaria ela se referindo a um movimento muito mais amplo, que extrapola a abordagem imagética do sertão e da favela construídos naqueles filmes?
A luta por reconhecimento do cinema brasileiro recente, e sua suposta diversidade, não seria toda ela um conjunto de esforços que, salvo exceções, mantém sua unidade apenas pelo interesse em atualizar um velho sentido de cinema, este realmente rechaçado pela arte mais criativa dos anos 1960? Cidade de Deus e Tropa de Elite não seriam os pontos máximos desse esforço, que melhor alcançaram o modelo de viabilidade – comercial e estética, para nós que não temos os “efeitos especiais” – em face de um público ainda dominado pelo que se pode chamar, em linhas muito tortas, de um “gosto” pelo “espetáculo” cujas raízes estão na pior faixa do cinema hollywoodiano?
* Rodrigo Cássio é formado em jornalismo e filosofia. Mestrando em cinema na Facomb-UFG.
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13 Comentários
Pessoal,
O texto do Rodrigo é bem equilibrado e mostra a faceta suja do filme "Tropa de elite".
"Tropa de elite"
Ser comercial é ser imoral?
Ou
Ser imoral é ser comercial?
Esta é a questão!
O artigo é ingênuo. Falta complexidade. É preciso entender as questões com menos maniqueísmo. Ainda mais coisas da cultura e do cinema. O filme Tropa de Elite é fraco. Hoje, porém, é preciso ver o entorno das coisas com menos maniqueísmo. Falta complexidade.
O artigo é ingênuo. Falta complexidade. É preciso entender as questões com menos maniqueísmo. Ainda mais coisas da cultura e do cinema. O filme Tropa de Elite é fraco. Hoje, porém, é preciso ver o entorno das coisas com menos maniqueísmo. Falta complexidade.
Olá Saulo,
Penso que a "moralidade" e o caráter comercial de um filme são coisas diferentes. No caso de "Tropa de Elite", não vejo um filme imoral, mas sim bastante apelativo. Ele quer dar respostas prontas e definitivas a problemas bem mais complexos.
Quanto ao sucesso comercial do filme, creio que se deu por uma série de fatores que, de algum modo, apontam para o que é o gosto do grande público de hoje. Mas a fragilidade do discurso do filme não tem relação direta com isso. Ele poderia ser bem sucedido comercialmente, e mais meditado em sua suposta "crítica social".
Rodrigo, parabéns pelo artigo. Não tivemos muito tempo de cultivar uma amizade assim que o conheci, mas suas idéias, as quais tenho acesso à distãncia, me fazem ter a certeza da afinidade em muitos aspectos.
Caro Edigar,
Agradeceria se você me mostrasse em quais pontos o artigo é maniqueísta e ingênuo, e qual é a complexidade que eu não consegui abarcar. Se você apenas desqualifica o artigo, pouco diz sobre ele. Mas se você puder oferecer críticas mais embasadas, pode até ser que eu me torne, aos poucos, mais astucioso, centrado e complexo. Verdadeiramente ficaria grato pela oportunidade de crescer com o nosso diálogo.
Oi Wertem,
Muito bom ter você como leitor. Também percebo nossas afinidades a partir dos comentários que você já deixou aqui no blog, assim como da sua arte, que eu já tive a oportunidade de ver. Não deixe de avisar quando estiver visitando Goiânia.
Grande abraço!
Olha Rodrigo, quando digo "ingênuo" não é no sentido de desqualificar nada. Apenas aponto, como já o fiz ao prof. Lisandro, quando das sua questão com o Ibama, uma certa tendência ao embasamento da realidade por um maniqueísmo simplório. O exemplo: assim como no problema do Ibama, você tb. usa argumentos universais para desancar um filme sucesso de público e tb. de crítica. Alguns críticos gostaram do filme, sim. Quando digo complexo me refiro a Edgar Morin: "os fenômenos hoje necessitam de abordagens múltiplas".
Não quero de forma alguma macular seu texto. Apenas me refiro ao maniqueísmo que não consegue ver a complexidade filme (tropa de elite), público e o sistema cultural que o recebeu de forma positiva.
No mais, prezo o seu texto elegante. Vejo que você fez um a zero com o voto do Wertem.
O professor Edigar, meu ex-professor de sociologia, tem toda a razão: o texto ficou bom mas maniqueísta, assim como o texto do prof. Lisandro (está no arquivo de março ou abril, aqui no blog) sobre o Ibama no caso da apreessão dos pássaros de um senhor perto da casa dele. Na época, nós do Ibama, ficamos decepcionados com a atitude do prof. Lisandro que não quis ver a complexidade da questão. Foi travado um longo debate, em alto nível, e demonstramos que o mundo e suas questões merecem mais acuidade na hora da interpretação.
Edigar e Lúcia,
Certamente o melhor a ser feito quando se trata de debater um texto é ir ao próprio texto. Em princípio, eu sequer diria que tenho argumentos universais, como o disse Edigar, mas apenas argumentos. Se alguém considerasse que meus argumentos são universais, eu entenderia que eles são bons (não tenho nada contra o universal, antes pelo contrário). Mas Edigar não pensa o mesmo, já que questiona os meus argumentos justamente por eles serem universais, de modo que ainda não entendo muito bem o sentido de sua crítica.
Talvez, a verdadeira diferença que Edigar aponta estaria entre argumentos "absolutos", que não suportam outras perspectivas, e argumentos que se abrem para as chamadas "abordagens múltiplas", ou, simplesmente, para outras perspectivas. Pois bem, eu novamente pediria para apontarem no meu texto as evidências que mostram o meu fechamento a outras perspectivas. Não creio que o encontrem, a não ser que confundam um posicionamento claro e resoluto sobre o filme (que eu realmente tenho) com um posicionamento soberbo e indisposto para com os que pensam diferente, o que não é o caso.
Se não debatermos o que diz o texto, não sairemos do lugar. E se debatermos o texto, será para confrontar perspectivas que são, necessariamente, diferentes. O que ressalto é que a diferença não é maniqueísmo, mesmo quando ela é incisiva e não se limita a um comedimento excessivo, como é praxe hoje em dia. Estou realmente curioso: onde está o maniqueísmo no meu texto?
O filme é ruim, direitista e fascista.
Mas estão falando dele.
No momento, falar bem ou mal do Tropa de Elite dá cartaz.
Não gostei do formato (forma) do filme mas o roteiro (conteúdo) é atual, sério e importante pelo menos para um começo de reflexão e debate.
Gostei do texto do Rodrigo e principalmente do compartilhamento do artigo de Reinaldo Azevedo.
Parabéns! Valeu!
Olá caros amigos,
Não penso que o artigo do Rodrigo Cássio seja "maniqueísta". Ele observa o movimento de um filme vigoroso dentro da circularidade da indústria cultural, anota seus problemas e faz sua crítica. Não há também nenhum "conceito universal" em detrimento de qualquer outro conceito.
Há no artigo um sentido forte de crítica e interpretação. Qual o problema em adotar um tom crítico?
Ao rastrear as questões que envolvem o filme e seus desdobramentos, Cássio enfatiza e problematiza o cinema brasileiro contemporâneo, em sua diversidade e tendência forte para o "espetáculo da violência".
Quanto a comparação com o debate que fizemos sobre o IBAMA, em março (o post pode ser lido no arquivo de março - lado direito do blog), não há motivo para comparação. Observo que a senhora Lúcia excede na comparação e ela é totalmente desnecessária.
O blog, como sempre, está aberto ao debate e a publicação de textos dos amigos e blogueiros.
Gosto da posição firme e esclarecida do prof. Edigar. Mas em relação ao texto do Cássio, vale a pena uma nova leitura para continuarmos o diálogo. Bom debate para todos nós!!
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