SEXO É TERRENO SAGRADO
Lisa França*
Na escassez de bons filmes que se abateu sobre Goiânia nos últimos dias, destaca-se Desejo e Perigo, de Ang Lee, que, apesar de recomendado e premiadíssimo, inclusive com o Leão de Ouro de Veneza, em 2007, ficou relegado a um único horário, tanto na semana de estreia como nas seguintes. É uma pena, porque embora não seja um filme para multidões, a não ser talvez por suas belíssimas cenas de sexo, mas que certamente causarão mal-estar porque o filme é duro, amoral e não tem final feliz, embora seja profundamente ético, cuja mensagem não poderia ser mais bela. Relembra-nos que sexo é do âmbito do sagrado. Não dá para desprezar, negligenciar, vulgarizar.
Usar o sexo para outro fim que não a experiência amorosa mais radical costuma trazer consequências inesperadas e dolorosas. Retirar do sexo a junção entre corpo e afeto, negligenciar a profunda intimidade entre dois corpos que se amam “neste retorno à mãe”, como se expressa Roland Barthes no seu Fragmentos de um Discurso Amoroso: “Nesse incesto renovado, tudo fica então suspenso: o tempo, a lei, o interdito: nada se esgota, nada se quer: todos os desejos são abolidos porque parecem definitivamente satisfeitos.”
Todas as culturas reconhecem o lugar mítico do sexo. Todas as culturas têm rituais de celebração para a união sexual entre duas pessoas apaixonadas. Retirar do sexo seu destino mítico de celebração da vida traz consequências individuais e sociais. As culturas que não se organizaram na ritualização do sexo, que não criaram seus interditos, não permaneceram na história. E é em momentos de desolação, de miséria, de falta de perspectiva, como a do cenário do filme, uma China ocupada pela violência do exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial, que as pessoas mais encontram nas paixões amorosas um lugar para o resgate da esperança, do prazer e da alegria de estar vivo, porque o encontro entre dois corpos que se amam é, antes de tudo, um assombro, uma admiração.
O enredo pungente tem conotações autobiográficas da autora do conto em que o filme é inspirado, a chinesa Eileen Chang, cujo primeiro marido foi colaborador do exército japonês durante a ocupação da China em 1942. A história fala de muitas questões: do idealismo juvenil, das paixões e fraquezas humanas, do exercício do poder, da traição. E o filme tem seus méritos próprios, o cuidado com o figurino, a iluminação, a fotografia primorosa. Poderia render outras análises e reflexões. Vale a pena conferir.
* Lisa França é professora do curso de Comunicação da UFG
* Texto publicado no jornal O Popular em 8 de agosto,
7 Comentários
"...sexo é do âmbito do sagrado. Não dá para desprezar, negligenciar, vulgarizar."
Não senti isso vendo o filme.
As cenas de sexo são lindas, só isso. Talvez o mais profundo sentimento do filme seja a amizade e o amor, sexo é sexo.
Sexo é do âmbito do profano. Desprezar não dá, claro.
Sexo cabe na amizade, no carinho, no afeto... Sexo cabe onde a gente pensa que não cabe. Cabe no amor radical e no amor normal também.
Achei o texto muito bem escrito e cumpre seu objetivo. Mas há um tom no artigo de reserva, de pudor, de afastamento ante o sexo maravilhoso.
Sou adepta do budismo e vi no filme um elogio ao sexo, não ao "sexo sagrado". Acho até que não existe o "sexo sagrado".
Entretanto, o texto chama a atenção para um filme especial e nos convida a pensar sobre essas questões.
O filme é lindo, sufoca, mas é nos deixa em estado de graça. O texto também é bom. Vou ver mais uma vez.
Ang Lee parece ter verdadeira obsessão pelos aspectos técnicos do filme. Mais uma vez, o diretor parece se cercar de grandes profissionais de fotografia, maquiagem e casting. Nada lhe escapa e a reconstituição de uma China da década de 40 é irretocável. Além da técnica, Ang Lee tem criado estilo quando o filme em questão procura aprofundar-se em dramas, enlaces amorosos conjugais ou familiares. Seu ritmo lento de conduzir as cenas dá ao espectador folga suficiente para apreciar os detalhes, das atuações primorosas que conduz com zelo ao ritmo de cada seqüência. Em Desejo e Perigo não é diferente.
E para fortalecer esse meu ponto de vista, de que esse filme não apenas conta com seus méritos próprios, mas, sobretudo, serve como exemplo de estilo do diretor, é possível traçar um paralelo com um outro filme de Lee, Brokeback Mountain. Ambas as histórias narram a conjunção improvável de duas pessoas que, por motivos diversos, encontram no amor e no sexo o condão de esperança capaz de salvar suas vidas exíguas e, paradoxalmente, o derradeiro ato, aquele que os condena a uma pena capital. O sexo surge inicialmente como mero artifício para um fim qualquer (alívio libidinoso ou como arma de sedução), mas, no decurso dos fatos, o sexo revela algo improvável, inimaginável de ocorrer naquelas circunstâncias: revela o amor. E em ambos os filmes é um amor mais do que inconveniente. É um amor que não deveria existir, pois dissolve todas as verdades, idéias e objetivos que se tinha em relação à vida.
Estes filmes brilham justamente por mostrar como cada personagem passa a lidar com o inesperado, com aquilo que mexe com suas convicções mais basilares. E nesse sentido que faço eco ao texto da Lisa França quando diz que “usar o sexo para outro fim que não a experiência amorosa mais radical costuma trazer consequências inesperadas e dolorosas”. É certo que a jovem chinesa, personagem principal deste filme, sentenciou o destino de todos aqueles que comungavam um objetivo com ela. Mas o fez em nome de um amor voraz, capaz de arrebata-la impiedosamente da razão, tornando-a um ser de apenas paixão.
Renato,
boa tarde, não te conheço. Seu texto é correto, exato e sensível. Ang Lee é tudo isso que você falou: amor, paixão e afeto numa mistura expledidamente realizada no cinema.
Ang Lee é aquele do Hulk, né? Ali ele morreu pra mim, não vejo mais. Não tenho mais idade pra dar segunda chance (ou terceira, vide O Tigre e O Dragão). No caso, prefiro um Vila Nova x Atlético.
Ricardo,
você não gosta do cineasta? Você não acha que ele têm pontos positivos?
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