domingo, 20 de setembro de 2009

A qualificação do olhar no cinema



 A qualificação do olhar no cinema




Lisandro Nogueira*
 


O filme Ninho vazio, do argentino Daniel Burman, é uma autêntica “aula” de qualificação do olhar. Penso que filmes devem ser vistos para divertir. Mas o que vemos neles presta-se, principalmente, a cultivar o espírito.


A vida é bela e trágica, com suas surpreendentes e intensas alegrias e inevitáveis e irreversíveis perdas. Como dizia Jean Cocteau, a vida é “um trem expresso que caminha para a morte”. Mas, antes de ela chegar, há mil possibilidades de viver certas intensidades deliciosas. Uma dessas intensidades é a experiência estética: apreciar e contemplar a criação artística.


O cinema nos dá essa possibilidade. O cinema moderno, a partir dos anos 40, em oposição ao cinema clássico hollywoodiano, sempre foi um campo fértil para o surgimento de obras propícias à experiência estética.


O cinema moderno tem características que o fazem diferir bastante dos filmes de estrutura narrativa clássica – principalmente do cinema clássico hollywoodiano. As quatro mais destacadas são a idéia de um cinema autoral, o baixo orçamento, a renovação da linguagem cinematográfica e o trabalho de direção.


O cinema de autor é precioso, porque destoa do cinema industrial e toma um caminho oposto ao deste. Naquele, busca-se para o diretor um lugar semelhante ao que têm o escritor na literatura e o pintor na pintura. Além de buscar o singular da obra, aquilo que é único, original – o que faz do cinema uma arte.


A autoria


A idéia de autoria no cinema não é, pois, coisa pequena. É ela que fornece substância para o cinema incluir-se no sistema tradicional das artes. Até hoje a autoria no cinema é objeto de controvérsias. Aceita-se muito mais a noção de “política dos autores” (os franceses da Nouvelle Vague dos anos 50/60 que revolucionaram o esquema da produção cinematográfica) do que a de autoria propriamente, nos termos da literatura e da pintura.


Entretanto, é pouco provável que alguém, hoje, ouse negar o estatuto de autor a Bergman, Glauber Rocha, Orson Welles, John Ford, Buñuel. A visão de mundo particular de um filme como O discreto charme da burguesia (de Buñuel) ou O homem que matou o facínora (de Ford) autoriza-nos a afirmar que o filme pode, sim, equivaler a uma obra da literatura ou da pintura. O mais importante, porém, é a constatação do estilo próprio, desenvolvido em uma linguagem diferente da escrita e dos códigos das outras manifestações artísticas. Não há como negar a singularidade do cinema nesse quesito.


Um componente do cinema de autor são as temáticas recorrentes. Na obra de Hitchcock, a culpa é um tema recorrente; nos filmes de Buñuel, a crítica à igreja católica e a fina ironia em relação aos costumes burgueses; em Glauber Rocha, as alegorias magníficas sobre a Revolução são recorrentes. Visão particular de mundo, estilo próprio e temáticas recorrentes formam os pilares da autoria.


A outra característica do cinema moderno, o baixo orçamento, ajudou a gerar um cinema oposto ao cinema clássico industrial. Sem muitos recursos, o cinema foi para as ruas: buscou temas do cotidiano (o neo-realismo italiano); outro, a Nouvelle Vague, abusou da criatividade, sem as amarras do grande produtor e sua vigilância contábil; e o Cinema Novo brasileiro criou a estética da fome, com recursos parcos e apelos à independência na criação de estilos próprios.


Assim, com orçamento escasso e visão particular de mundo, outro cinema, distinto do clássico, foi formulado. A renovação da linguagem foi radical, embora haja dialogado, aqui e ali, com a estrutura clássica narrativa (um exemplo: Ladrões de bicicletas, de Vittorio de Sica). Hoje, com a diversidade de temas, estilos e visões de mundo, o cinema contemporâneo dá prosseguimento à linha ousada do cinema moderno e proporciona obras cinematográficas significativas e experiências estéticas fecundas.


Ninho vazio e o moderno


Em cartaz em Goiânia, Ninho vazio (El nido vacio, 2008), de Daniel Burman, corrobora a continuidade de um cinema moderno: procura afirmar uma visão de mundo particular, propõe um estilo próprio e recorre a temas como a família e a dissolução/conciliação de laços afetivos. Não é obviamente um cinema moderno radical e está mais próximo de um tom ameno, em relação aos cânones. Mesmo assim, distancia-se de um cinema meramente linear, afeito à narrativa prenhe de lugares-comuns, de montagem rápida.


A temática recorrente de Burman, a família e seu deslocamento no mundo moderno, é realçada para mostrar, de forma abrangente, as vicissitudes de um processo extremamente doloroso. Aqui impõe-se o estilo próprio do autor, ao não se render ao sentimentalismo nem às convenções totais de um cinema clássico narrativo. O tratamento que Burman dá à família em crise é singular; não é a reconstrução de uma família nostálgica o que se procura, mas sim o lugar da morte, em sentido metafórico, dos desejos e dos laços que ajudam a manter outras filiações afetivas.


O estilo de Burman também remete ao moderno. Em alguns momentos “perdemos” o eixo da verossimilhança (a verdade da semelhança: aquilo que nos faz acreditar que o que vemos é o real reproduzido) e o filme nos lança para além do “olhar domesticado”. Há um desconforto e uma desestabilização do lugar perene do espectador mal-acostumado à cômoda linearidade do cinema americano.


Mas ele não chega a ser tão extremo como nos filmes mais ousados do cinema moderno.
O ritmo lento é o que mais afeta a domesticação e isso influi na sentença, entre interrogativa e exclamativa, comum na fala do espectador desavisado: “este é um filme de arte?!” ou mesmo “é um filme de crítico?!”. Ninho vazio caminha devagar, a câmera claudica, para criar sensações de vazio e de uma possível desorientação após a saída dos filhos. Não há o que fazer com a irreversibilidade do tempo e o casal pressente a morte de uma teia de significados não mais possíveis de amparo e consistência.


Ninho vazio tem também outra característica básica do cinema moderno. A narrativa não se contenta em narrar somente as cenas externas. Como assinala Ricardo Musse, o filme procurar captar o fluxo de consciência: “estados e movimentos interiores, subjetivos: pensamentos, sentimentos, temores, fantasias etc. Esse relato pode ser associado tanto ao mundo onírico (com os deslocamentos e condensações apresentados por Freud na Interpretação dos sonhos), como ao da criação artística (afinal, trata-se do esboço de um livro) ou ainda das associações livres que se praticam no divã de um psicanalista”.


Ninho vazio dá continuidade à linha perene do cinema moderno. Cinema instigante, que “desampara” o espectador e coloca-o no mundo incômodo e criativo das interrogações, além de contribuir para qualificar seu olhar. Afinal, qualificar o olhar significa criar, insurgir-se, brincar com a dúvida e contemplar as oscilações da vida. Oscilações naturais: algumas, trágicas; outras, magníficas.


• Lisandro Nogueira é professor de cinema na Facomb-UFG.
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7 Comentários

Lisandro Nogueira disse...

Caros amigos,

Quando o filme "Ninho vazio" foi lançado nos cinemas, em fevereiro, escrevi o texto - publicado aqui no blog e em O Popular.

O filme foi lançado em DVD e publico o texto novamente. Gostei imensamente de Ninho vazio: moderno, singelo e bem humorado.

Orlando, seu primo disse...

Lisandro,

peguei o filme ontem em DVD. É bom mas confunde um pouco. O Jean-claude tem razão pois os argentinos são melhores cineastas que os brasileiros.

Si disse...

Olá Professor... vale pedir resenha aqui no blog? Se puder eu gostaria de ver algo sobre o filme que ainda está em cartaz nos cinemas UP - Altas Aventuras.

OBRIGADA.
=)

Lisandro disse...

Bom dia! Si,

No momento não há nenhum texto previsto sobre esse filme. Bom, se você viu e chamou a sua atenção, que tal escrever sobre ele?

Carol Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carol Gomes disse...

Boa tarde Prof. Lisando,

Gostei muito do seu texto, realmente maravilhosa a leitura do filme.
Então, a perspectiva não retilínia da produção me fez pensar um pouco na discussão do 'Cidade dos Sonhos do Lynch', a questão que apontastes da verossimilhança, sendo que Lynch parece um tanto mais frenético, agressivo, eu diria. Acho que o diretor conseguiu com tamanha sutilidade colocar a questão que me parece inaugurada lá na Poética de Aristóteles, além de ter gostado mais ainda porque a construção suave me lembrou Kieslowski.
Agradeço pelo 'belo' texto.
Abraços,
Carol

Lisandro disse...

Boa noite! Carol Gomes,
O cinema moderno é muito bom. São obras densas e outras bem simples. É um cinema de investigação em relação ao próprio ato de construir histórias com imagem em movimento.

Gosto também de Lynch. Penso que devemos ver esses filmes com tranquilidade, como contemplação e vivendo uma boa experiência estética.

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