terça-feira, 17 de novembro de 2009

"A capacidade de ver e ouvir diminuiu muito." (Julio Bressane)


Entrevista com Júlio Bressane


O


 Caroline Pires*
  especial para o blog




 Qual a sua perspectiva do cinema nacional atual?

 Minha perspectiva não mudou muito. Eu continuo achando muita dificuldade em fazer filmes. A política de cinema nacional é a política do cinema no mundo inteiro, são negócios. E eu te digo uma coisa, eu não poderia te responder porque eu não sei como está o cinema nacional atual, eu estou afastado disso. A criação de filmes absorve muito mais do que essa política de cinema. O cinema que eu faço considero como um cinema de desapareceu. Eu não consigo falar de um cinema que é feito por uma política que eu não participo.

Você acha que o cinema de arte é desvalorizado no Brasil e no mundo?

 O cinema de arte desapareceu no Brasil e no mundo. O que se discute é o naufrágio do espectador, os filmes naufragaram. O cinema e a cultura é no mundo inteiro mantido pelo Estado. O público naufragou ele não quer mais, está interessado em outra coisa. Eu sempre fiz um cinema pensando nele como ferramenta que auto transformação. Considero o cinema uma exigência muito grande e um esforço radical de auto transformação. Esse cinema vai existir para sempre, porque essas conquista e esses esforços existem individualmente e um dia vão ser coletivas.


Agora, o cinema como experimento no sentido de cinema de linguagem… esse cinema desapareceu e isso aconteceu porque não tem mais público para ele. Hoje o que se tem é uma grande tirania e o público está enfraquecido para resistir. A capacidade de ver e ouvir diminuiu muito. É difícil se enxergar e pensar quando você está sentindo. Hoje está se fazendo um trajeto de mediocrização generalizada de tudo porque o dinheiro está de tal maneira organizado que essa questão da concentração da auto transformação e do autoconhecimento está fora das preocupações. Hoje a preocupação é a do salário escravo. O tempo que você tem que é dedicado ao trabalho e com esse dinheiro você vai gastar como consumo de coisas que são impostas ao seu gosto. E entre essas coisas não estão as controvérsias, nem os paradoxos, isso é aplainado. Toda a promessa hoje é uma promessa de coisas imediatas e sensações imediatas. Não tem mais o gosto nem o prazer e nem mais sabe como prolongar esse prazer. O gozo é uma coisa necessária mas é um momento de extinção, o problema está em você prolongar esse momento do gozo, você fazer com que essa tensão se multiplique e se estenda o máximo possível. Essa preparação e essa resistência como fonte de prazer está perdida.

Então como que você trabalha nos seus filmes, apesar dessa descrença e desilusão do cinema?

 Eu faço filme por necessidade, desde os 11 anos de idade. Todo trabalho de criação você faz para si, a idéia mesmo psicológica de fazer para o outro é uma tolice, porque não tem possibilidade de você saber o que seja o outro para fazer no gosto dele. E essa é uma das razões do naufrágio do espectador: fazer filme para o público. Eu faço filmes e invento maneira de fazer filmes com qualidade. Essa tem sido a minha permanecia no cinema.

E o que você diz sobre festivais como o Festcine?

 Eu nunca estive aqui, mais qualquer iniciativa que promover festivais é importante e deve ser bem vinda como uma maneira de divulgar filmes. É preciso sempre saber o que se pode fazer com isso. É preciso mais do que um festival, mais do que o Estado, o filme precisa voltar a dar ênfase na formação, na criação do cineasta, essa é a questão. O cinema desapareceu também porque desapareceu essa figura difícil de se construir que é o cineasta, que talvez não exista e não tenha existido.
O cinema é um organismo intelectual que atravessa as linguagens, as artes, a história, a música, a dança a filosofia, a física, a química, a poesia, o cinema se faz quando atravessa isso, são nesses cruzamentos que o cinema de faz. O cinema é a principio uma disciplina de grande alcance, e se ela ultrapassa toda a vida você precisa juntar um número de experiência e um esforço de concentração. É preciso uma coisa que hoje não tem mais: tempo. Hoje se tem uma revogação do tempo, a vitória é a vitória da sociedade do trabalho. Na luta pela coisa sagrada que era a ociosidade, a luta em torno do ócio ganha o negócio  e não o sacerdócio que é a sagração do ócio.


* Caroline Pires é jornalista. Realizou monografia sobre "Cinema e jornalismo". Entrevista com Julio Bressane feita durante o Festcine. 


11 Comentários

Pedro disse...

Pessoal, esse Júlio Bressane é muito especial. Ele disse para o povo que estava no Goiânia Ouro:"tenham paciência e tolerância com o meu filme". O filme dele, a "Erva do Rato" é muito bacana e transgressivo. Ficamos, eu, Milordi e Alemão, sem saber o que dizer depois do filme. Comemos uma pizza na Cento e Dez (podia se chamar centro e quarenta) e matamos a charada. O Bressane não é para interpretar somente. É para sentir o verdadeiro cinema.

Caroline, sua entrevista é do aço (frase nova do Milordi). Muito massa mesmo. Você não ficou louca na frente dele?

Valeria disse...

Não conheço esse cineasta e seus filmes. Mas li e vou relatar a frase dele: "Hoje se tem uma revogação do tempo, a vitória é a vitória da sociedade do trabalho. Na luta pela coisa sagrada que era a ociosidade, a luta em torno do ócio ganha o negócio e não o sacerdócio que é a sagração do ócio".

Isso é a pura verdade. Precisamos de descanso e paz.

Caroline Pires disse...

Eu cheguei de mansinho no saguão do Goiânia Ouro. Olhei para o rumo da cantina e vi um homem comprando água, pensei "É o Júlio Bressane", cheguei perto e disse "Boa noite, você é o Júlio Bressane?", ele olhou e disse "Sim". A partir daí fiquei um pouco no piloto automático... hehehe

Não conheço muito seus filmes mas sabia da sua importância no cinema nacional. Eu praticamente não fiz interferências, deixei ele falar... falar... Me incomodei um pouco com "o público está enfraquecido para resistir", mas fiquei calada e continuei ouvindo.

Pedro, acho que não fiquei "louca" porque conheço pouca coisa, ainda bem neh? Jornalista "louca" na hora de entrevistar por admirar demais não ia dar certo... hehehe. Mas confesso que me interessei e vou buscar conhecer melhor.
Foi uma entrevista que vou lembrar um bom tempo.

Pedro disse...

Caroline,
Mas ele foi gentil? Ou meio "desligado"? Ele me pareceu impaciente e ficou irritado com a música brega americana na premiação do Festcine.

Ou ele faz "tipo"? Ligue para o Lisandro e ele disse que Bressane é "daquele jeito mesmo".

Rodrigo Cássio disse...

Essa entrevista deve ser lida e relida várias vezes.

Bressane é gênio. Disse tudo o que deve ser dito sobre o cinema contemporâneo; da atrofia da sensibilidade ao desaparecimento do cineasta como autor.

Carol, meus parabéns pela bela entrevista!

Caroline Pires disse...

Pedro, vc é fã mesmo neh?
Achei o Bressane muito sério e concentrado. Ele parece estar em uma realidade paralela com um olhar que vaga buscando alguma coisa que lhe satisfaça. Não faz o tipo "simpático e sorridente", mas é educado.
Deve ser muito dificil para um cineasta com a experiência dele afirmar que os filmes e o público naufragaram...

Rodrigo vc tem toda razão... é um texto para ler e reler!

Expedito da UEG disse...

Bressane e seus amigos, Caetano Veloso incluido, são chatos. Essa geração morreu e ainda não sabe disso.
Ele generaliza e parece que o cinema é dele. É uma boa entrevista para ler só uma vez.

Anônimo disse...

Linda entrevista, Carol, parabens!

Tem um cara Richard Sennett que diz (em O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade) que hoje ninguém mais quer ler poesias, só querem escrever poesias.
Vai muito de encontro com o que o Bressane diz que "A capacidade de ver e ouvir diminuiu muito".
Gostei tb qdo ele disse que faz cinema por Necessidade.
Quero sim ler e reler a entrevista!!

P.S.: O Pedro realmente é fã mesmo!Rs...

Eduardo Rodrigues disse...

As idéias do Julio Bressane são ótimas. Pessoalmente, no entanto, assim como os cineastas Lirio Ferreira e Sergio Bianchi, eles são a extrema arrogância. No fundo, são caras magoados que querem o reconhecimento de quem eles odeiam, ou seja, a indústria do cinema e a "sociedade do consumo". Tanto mal humor. E foram bem recebidos aqui em Goiânia. Fiquei espantado com a falta de educação e esnobismo desses caras.

Luiz Alfredo disse...

"Na luta pela coisa sagrada que era a ociosidade, na luta em torno do ócio ganha o negócio e não o sacerdócio, que é a sagração do ócio."

Porreta o Lucio
Pensamento perfeito para nossos dias

Mas pelo menos, hoje é sexta feira
podemos sonhar que temos todo o tempo que for preciso
para viver na melodia

até chegar a noite de domingo ...

Adriano disse...

Expedito e Eduardo: vocês leram o título do post?

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