Antibiografia
Maria Rita Kehl*
Não, Antonio Prata, não é questão de arrependimento pelo que não fiz. As experiências perdidas constituem uma rede de lembranças legítimas. Pode até ser que o vivido mesmo, pão pão, queijo queijo, ocupe uma parte bem reduzida de nossas memórias. Penso que existe um acervo de saudades lotado de imagens do que se viveu só através de relatos alheios, da literatura e da imaginação. É possível ter saudades, por exemplo, da infância da sua avó, se ela te contou episódios com graça, imaginação e alguma nostalgia. Algumas cenas contadas por ela passam a te pertencer também.
As saudades do que eu queria ter feito e não fiz se constroem de trás pra frente. É depois, só depois, que você se dá conta de que prestou atenção ao que acontecia à sua direita e não percebeu algo muito mais interessante que se passava à esquerda. Ou vice-versa. Claro, existem também as escolhas. Nesse caso, penso que se eu quisesse mesmo, mesmo, fazer x em vez de y, teria feito. Essa coleção de vacilos escreve uma história. No horizonte virtual das possibilidades que foram deixadas pra trás deve haver um duplo meu, vivendo a vida que foi dos outros.
Não morei fora do Brasil, como tantos companheiros de geração. Nem com bolsa de estudos, nem lavando pratos on the road. Ficou na memória o aceno de Paris no postal mandado pela amiga que saiu da nossa moradia comunitária para estudar lá. Por alguma razão sentimental, achava interessantíssima a vida que tinha aqui, apesar do sufoco militar. Também não estive presa. Não lamento, é óbvio, mas tiro o chapéu para os que levaram a luta a tal extremo. Minha modesta militância contra a ditadura não foi considerada perigosa. Mas para mim, foi formadora: um terço, digamos, do que aprendi de importante nesta vida devo ao convívio com os colegas jornalistas e editores dos tabloides em que trabalhei.
Não fui mochileira exemplar, apesar de ter feito a peregrinação obrigatória pelas praias (em média, decepcionantes) do Nordeste. Mas não me encorajei a conhecer Machu Picchu, por exemplo, no tempo em que era obrigatória a viagem no teto do trem da morte lotado, com direito a dor de barriga por beber água de torneira.
Tinha uma vaga noção da importância do que acontecia muito perto de mim. O acaso decidiu o que vi e o que não vi, o que aproveitei e o que perdi. Não vi o show Opinião, de meu amigo 30 anos mais tarde Augusto Boal. Será que não? Então por que não me esqueço de Carcará, cantado por Maria Bethânia, desafiadora, com seu corpo de menino? Nem de Zé Keti - "podem me prender, podem me bater..."? E se também perdi Arena Conta Zumbi, como posso contar, digo, cantar, até hoje, o espetáculo quase todo? Quase me esqueço de que passei várias férias no Rio sem saber que existia o Zicartola. Esse não existe mais nem pra remédio. Mas sei tudo de Cartola, de cor. Perdi Pobre Menina Rica do Vinícius de Morais, e ouvi o disco até gastar. De Morte e Vida Severina, unanimidade nos anos 60, decorei todos os trechos do poema musicados pelo Chico Buarque.
Não recebi o impacto dos primeiros filmes de Glauber Rocha, nem do Godard dos anos 60. Mas não me entrego não - em matéria de filmes e livros, tudo se recupera. Viva os livros e filmes que não li nem vi. Por conta deles estou salva do tédio, até morrer.
A lista das coisas perdidas não tem fim. Só as canções eu não deixei passar. As canções me salvaram de ficar fora do mundo. Estavam todas no ar, trazidas pelo vento diretamente para minha memória musical. Respirei as canções, sonhei canções, entendi o Brasil desde o primeiro samba, porque existem as canções. Vivi sempre a condição dessa cidadania dupla, uma vida no chão, outra no plano das canções que recobrem o mundo ou, pelo menos, o país em que nasci. As canções ampliaram o meu tempo, transcenderam o presente e, numa gambiarra genial, juntaram um monte de pontas soltas desde antes de eu nascer até.
As canções: já que não virei cantora - opa: eis aí um arrependimento sincero! -, espero quem sabe um dia escrever alguma coisa à altura delas.
As saudades do que eu queria ter feito e não fiz se constroem de trás pra frente. É depois, só depois, que você se dá conta de que prestou atenção ao que acontecia à sua direita e não percebeu algo muito mais interessante que se passava à esquerda. Ou vice-versa. Claro, existem também as escolhas. Nesse caso, penso que se eu quisesse mesmo, mesmo, fazer x em vez de y, teria feito. Essa coleção de vacilos escreve uma história. No horizonte virtual das possibilidades que foram deixadas pra trás deve haver um duplo meu, vivendo a vida que foi dos outros.
Não morei fora do Brasil, como tantos companheiros de geração. Nem com bolsa de estudos, nem lavando pratos on the road. Ficou na memória o aceno de Paris no postal mandado pela amiga que saiu da nossa moradia comunitária para estudar lá. Por alguma razão sentimental, achava interessantíssima a vida que tinha aqui, apesar do sufoco militar. Também não estive presa. Não lamento, é óbvio, mas tiro o chapéu para os que levaram a luta a tal extremo. Minha modesta militância contra a ditadura não foi considerada perigosa. Mas para mim, foi formadora: um terço, digamos, do que aprendi de importante nesta vida devo ao convívio com os colegas jornalistas e editores dos tabloides em que trabalhei.
Não fui mochileira exemplar, apesar de ter feito a peregrinação obrigatória pelas praias (em média, decepcionantes) do Nordeste. Mas não me encorajei a conhecer Machu Picchu, por exemplo, no tempo em que era obrigatória a viagem no teto do trem da morte lotado, com direito a dor de barriga por beber água de torneira.
Tinha uma vaga noção da importância do que acontecia muito perto de mim. O acaso decidiu o que vi e o que não vi, o que aproveitei e o que perdi. Não vi o show Opinião, de meu amigo 30 anos mais tarde Augusto Boal. Será que não? Então por que não me esqueço de Carcará, cantado por Maria Bethânia, desafiadora, com seu corpo de menino? Nem de Zé Keti - "podem me prender, podem me bater..."? E se também perdi Arena Conta Zumbi, como posso contar, digo, cantar, até hoje, o espetáculo quase todo? Quase me esqueço de que passei várias férias no Rio sem saber que existia o Zicartola. Esse não existe mais nem pra remédio. Mas sei tudo de Cartola, de cor. Perdi Pobre Menina Rica do Vinícius de Morais, e ouvi o disco até gastar. De Morte e Vida Severina, unanimidade nos anos 60, decorei todos os trechos do poema musicados pelo Chico Buarque.
Não recebi o impacto dos primeiros filmes de Glauber Rocha, nem do Godard dos anos 60. Mas não me entrego não - em matéria de filmes e livros, tudo se recupera. Viva os livros e filmes que não li nem vi. Por conta deles estou salva do tédio, até morrer.
A lista das coisas perdidas não tem fim. Só as canções eu não deixei passar. As canções me salvaram de ficar fora do mundo. Estavam todas no ar, trazidas pelo vento diretamente para minha memória musical. Respirei as canções, sonhei canções, entendi o Brasil desde o primeiro samba, porque existem as canções. Vivi sempre a condição dessa cidadania dupla, uma vida no chão, outra no plano das canções que recobrem o mundo ou, pelo menos, o país em que nasci. As canções ampliaram o meu tempo, transcenderam o presente e, numa gambiarra genial, juntaram um monte de pontas soltas desde antes de eu nascer até.
As canções: já que não virei cantora - opa: eis aí um arrependimento sincero! -, espero quem sabe um dia escrever alguma coisa à altura delas.
* publicado em 20 de fev. no Estadão.
4 Comentários
Os amigos estavam aqui em casa, ontem à noite, quando recebemos a notícia da morte do Hélio Nunes, nosso velho amigo. Que tristeza!! Aí li o texto da Maria Rita, logo pela manhã. Ela diz: "a lista de coisas perdidas não tem fim". Memórias, saudades...o tempo voa. Vai em paz, meu amigo Hélio.
Eu vou discordar um pouco da escritora Maria Rita. A "antibiografia" é uma biografia sensata lá fundo das coisas. Ou não? E como ela escreve bem. Escrever bem é uma arte. E nisso, Maria Rita, é muito competente.
Pura epifania esse texto, de uma beleza!
essa parte: "em matéria de filmes e livros, tudo se recupera. Viva os livros e filmes que não li nem vi. Por conta deles estou salva do tédio, até morrer."
acho que mta gente queria falar, escrever, gritar, tatuar isso...eu pensava assim e nem sabia.
Revelador!
Lisandro, abraço aconchegante no coração.
Polly,
Concordo totalmente com você. O tédio não mata ninguém quando você tem a companhia dos livros, filmes, músicas, histórias. Eu li uma vez um texto dela aqui no blog do Lisandro. Chama-se "Não perca tempo". Ela diz que podemos conviver com o sofrimento porque temos a possibilidade de vivenciar a experiência com a estética. Será que o Lisandro já foi ou é apaixonado pela Maria Rita Kehl? Fica sempre essa impressão. Se for, todos nós também somos de alguma forma.
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