domingo, 28 de fevereiro de 2010

"A fita branca" (em cartaz).

Anatomia do autoritarismo

A Fita Branca, em cartaz em Goiânia, fala da intolerância e do fascismo que habita em todos nós

 

Lisandro Nogueira*


Nos anos 80, ao estudar W. Reich e seu importante Psicologia de Massas do Fascismo, especulávamos sobre filmes que poderiam “ilustrar” as teses do discípulo de Freud sobre o surgimento do nazismo e do fascismo. Nele, Reich analisa as estruturas coletivas do caráter que impulsionam os sentimentos de ódio e abuso em relação ao Outro, além da necessidade primária do indivíduo de apoiar tiranos e supostos salvadores da pátria.

Recordo que O Triunfo da Vontade (Alemanha, 1935), dirigido por Leni Riefenstahl, era logo lembrado. Cenas fortes, ambiguidades, imagens dilacerantes e a emergência da velha pergunta: que motivos explicam tanta exaltação do povo alemão ao regime nacionalista de Hitler e tal sentimento de pertencimento?

Diante de A Fita Branca, de Michel Haneke (em cartaz em Goiânia), a velha pergunta ressurge, acompanhada de outras indagações. Em O Triunfo da Vontade, a exaltação e o apoio são vistos como algo “natural”. As imagens reforçam o sentimento de que pertencer ao regime era um estado de espírito alemão. Com Haneke, vemos a gênese do “apoio ao horror”, como afirmava Reich. Pela voz off do professor, da fotografia que revela corpos abusados, dos diálogos construídos em pleno acordo com interpretações teatrais não naturalistas, observamos e acompanhamos uma narrativa que esmiúça as sutilezas brutais do abuso e suas consequências desastrosas na vida das pessoas, no cotidiano das comunidades e nos rumos de um país.


A voz off, um procedimento aparentemente simples dentro de uma narrativa, pois “explica” as imagens, é uma das pontes entre nós e o que acontece no filme. Ela fornece pistas para uma compreensão. Confiando nela e em sua pretensa racionalidade, podemos afirmar apressadamente várias coisas.


É muito comum creditarmos a voz off ao diretor do filme, ao que ele pensa sobre os personagens, o tema e tudo o mais. Foi assim com Dogville. A voz off é o pensamento do diretor Lars Von Trier, afirmam alguns. Tanto naquele filme como em A Fita Branca, embora a voz off “explicativa” seja usada neles em sentidos diversos, não temos a “opinião do autor”. Não é ela que nos fornece a visão de mundo do diretor do filme, apesar de poder contribuir um pouco para isso. E foi o cinema moderno que estabeleceu novos parâmetros narrativos para essa voz, com o intuito de distanciá-la de seu uso no cinema clássico, tão didático e explicativo.


É com essa aparente voz off confiável, que Haneke nos instala na encruzilhada de dúvidas ao final da narrativa. O professor explica todos os horrores? Também ele faria parte da sustentação do manicômio naquela aldeia (a sequência em que “entrega” as crianças para os investigadores sugere isso)? Ele busca aquele amor por não querer o desastre velado e seus desdobramentos? O professor somos nós também, em nossas tentações autoritárias e egoístas?

Outro ponto importante é a fotografia. Filmar em preto e branco, em plena celebração do cinema digital e 3D, é uma espécie de atrevimento, legitimamente saudado. E se o filme é pesado, duro, pessimista, com o P&B a realçar essas características, oferece também momentos de poesia. Uma poesia seca, mas significativa.


O pastor está em seu escritório. Seu pássaro de estimação foi morto, com crueldade, e depositado sobre a sua escrivaninha. Ele havia “aconselhado” o filho a não prender as aves. Mas ele próprio o fazia. O menino entra no escritório. Em campo/ contracampo, o garoto oferece ao pai, com suprema generosidade, o seu pássaro. E diz: “Estou substituindo o Pepsi [o pássaro de estimação trucidado], porque o senhor está muito triste.” A luz enquadra os dois rostos e o negro engole todo o resto. O pai mantém uma postura ainda firme, mas desarmada, agora. A humilhação é absoluta e, aos poucos, a sombra vai tomando conta do rosto aniquilado daquele homem.


Outra sequência poética: a irmã conversa com o pequeno irmão. Há um plano de conjunto, mostrando os dois na cozinha. A única luz é a das duas janelas, isto é, naquele momento há a presença de um pouco de reflexão e de paz, mas, dentro daquela casa, há a predominância do medo. Eles conversam em campo/ contracampo: o olhar de um, depois o do outro. O menino indaga acerca da morte. Mais uma vez, a luz incide, liricamente, sobre os dois seres que conversam sobre a finitude. Em volta, a sombra negra, o manicômio (a casa, a aldeia), que massacra todos eles. Enquanto a irmã vai afirmando a inexorabilidade da morte, a luz fecha em seus olhos e temos a celebração efêmera da humanidade e da poesia.


Os atores não seguem, na interpretação, a praxe naturalista. O naturalismo, escola do século 19, apoia-se na construção das aparências para favorecer a comunicação rápida com o público. Essa forma de interpretação colabora mais com as estruturas narrativas de consolação (o melodrama, por exemplo), que buscam sempre reequilibrar os conflitos e fazer com que o espectador tenha uma identificação imediata com a história e o tema representado.


Como abordar um tema tão duro, como em A Fita Branca, com um estilo de interpretação calcado em uma “visão estática dos processos sociais/ comportamentais”? Haneke segue outro caminho. Os personagens são firmes, rígidos e, em quase toda a narrativa, não há espaço para experimentarmos a empatia. Nem as crianças dão colher de chá para o nosso olhar acostumado a meiguices e sorrisos de plena afinidade.


Há o vigor da interpretação teatral em comunhão com a fotografia. Esta também dispensa a nossa cumplicidade com a “boa fotografia”. Como não estamos familiarizados com interpretações não naturalistas e nos desabituamos de imagens em P&B, nas quais os atores aparecem “distantes” e “desumanos”, surge em nós, pelo menos de início, um sentimento de repulsa pela narrativa que não nos deixa adentrar e viver todos os sentimentos possíveis, fazendo a catarse corriqueira. Mas, aos poucos, somos tomados por uma experiência estética (ver o belo, refletir, usufruir) singular.


Observando a voz off, a fotografia e a interpretação, dentre outros, relativizo a fala de Haneke quando afirma que A Fita Branca não é sobre a gênese do nazismo. Em parte, tem razão. Seu filme é atemporal e serve para diagnósticos importantes, não só acerca dos alemães naquele período, mas, sobretudo, sobre os fascismos, fundamentalismos e autoritarismos incrustados em nossos vizinhos, partidos, empresas, igrejas. Em nós.

* publicado em O Popular em 28.02.2010.

6 Comentários

Maria Euci Carvalho disse...

Professor, como diria antigamente, estou contemplada. O artigo é importante para uma boa reflexão.

Eduardo disse...

Grande análise, professor. Fita Branca me impressionou muito. O que mais me marcou foi o fato de as pessoas dialogarem bastante, mas ser uma comunicação travada, muitas vezes unilateral, sem muita abertura. Sem contar que os diálogos são mais interessantes por aquilo que escondem do que por aquilo que mostram. O não-dito (o que mostra ser uma sociedade de tabus) casa bem com o não-mostrado. A análise dos diálogos do filme (e a forma como a câmera se comporta nestes diálogos) é uma chave interessante, penso.

Expedito Gomes (dos Correios) disse...

Esse filme me deixou com a pulga atrás da mente. Preciso ver mais vezes. Aquele professor realmente é um enigma.

Anônimo disse...

Para um filme magistral, uma análise lúcida e abrangente; Parabéns, Lisandro!
Laerte Ferreira

Ulisses disse...

Link pra baixar o filme...
Pra quem gosta...

http://depositfiles.com/files/5bxeire8u

Gostei do texto...

Anônimo disse...

Baixar o Filme - A Fita Branca - http://mcaf.ee/4lsy3

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