(começou a mostra de filmes no Cine-UFG)
Daniel Christino*
Em mais de uma oportunidade, Bergman deixou claro que seu processo criativo derivava de suas experiências mais pessoais. Sua obra é quase sempre um desdobramento de sua interioridade. Quando Através do Espelho ganhou a Palma de Ouro em Cannes, Bergman ganhou completa autonomia criativa na Svensk Filmindustri. No excelente documentário de Marie Nyreröd, A Ilha de Bergman, ele relata a sensação de solidão que tal autonomia provocara. Ele não mais precisava prestar contas a ninguém, porém, ao mesmo tempo, não recebia críticas ou era obrigado a justificar posições estéticas. A solidão era uma elemento essencial de sua arte.
Dentre os temas absolutamente pessoais que atravessam a filmografia do diretor sueco, a tensão entre fé e razão, entre Deus e a finitude, ocupa um lugar bastante pronunciado. Bergman era filho de pastor luterano e foi criado à luz de um ethos bastante rígido e disciplinador. Deste conflito pessoal que mistura tão intensamente a figura de Deus à autoridade paterna, surgiram os três filmes que a fortuna crítica apelidou de trilogia da fé: Através do Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio. Em muitos aspectos a trilogia se apresenta como um percurso íntimo que vai desde a crença no amor cristão até o vislumbre de um mundo condenado à liberdade absoluta.
Em Através do Espelho uma família acompanha, às vezes com curiosidade, às vezes com verdadeiro horror, a progressão inexorável da doença mental de um de seus membros. Bergman, cuja formação acadêmica em teatro transparece em todos os seus filmes, principalmente na cuidadosa mise-en-scène e no denso trabalho de atuação, compõe um quadro de progressiva desolação existencial. O desespero se avoluma, aos poucos, a medida em que a personagem principal vai desaparecendo em seus delírios. Aqui aparece, pela primeira vez na trilogia, uma imagem recorrente de Deus como uma horrenda aranha. Em meio à devastação existencial, numa bela cena final entre pai e filho, a noção do amor cristão retorna como possível solução, embora não seja abraçada com alegria. Isso, na verdade, é significativo: quando fala em Deus, Bergman muito dificilmente apela para a alegria. A grande exceção, claro, é O Sétimo Selo, de 1957, ou seja, alguns anos antes da trilogia.
Se Através do Espelho caminha para um ceticismo resignado, em Luz de Inverno já não resta esperança. Novamente a figura do pai é espelhada num pastor luterano em plena crise de fé. Sua congregação, antes cheia de fiéis, resume-se a uns poucos e bravos remanescentes. Crianças cochilam durante a celebração. Bergman filma o culto como se estivesse filmando um teatro, deixando propositadamente transparecer o elemento ficcional da comunhão e a ação do pastor é a mesma de um autômato cumprindo rotinas pré-determinadas.
Também aqui a noção de um Deus aracnídeo aparece para caracterizar a relação do pastor com Deus. Nem o amor, representado pela figura de uma professora primária, consegue atravessar o desespero de um mundo abandonado por Deus. A cena na qual o pastor nega seu amor pela professora é absurdamente cruel. Contra a paisagem gélida e branca, a solidão é algo que se pode quase pegar com as mãos.
Já em O Silêncio, Bergman procura retratar um mundo no qual a ideia de Deus já não vigora. O foco narrativo concentra-se nas figuras de duas irmãs e um menino, perdidos num imenso hotel virtualmente deserto. Ao contrário dos outros dois filmes, nos quais há uma estrutura narrativa bastante clara, O Silêncio parece mais uma colagem de situações relativas, principalmente, à sexualidade. Bergman parece dizer que uma vez livre de Deus, a humanidade desloca seu centro de gravidade para o corpo e, nele, especificamente para o sexo. O tema de homossexualidade é bastante explorado, principalmente na relação entre as duas irmãs, embora de maneira graficamente discreta. Em certo sentido, tanto no que se refere ao tema quanto no que se refere ao modo de filmar, O Silêncio se aproxima bastante de Persona.
Mas Bergman não é um diretor proselitista, ou seja, ele não faz propaganda de suas certezas. Seu modo de filmar a tensão entre fé e descrença vê sua própria história pessoal com certa beleza e acídia. Embora na trilogia ele se afaste da visão benévola da existência contida em O Sétimo Selo – até mesmo da existência mediada pela arte – ainda assim a superação do Deus aracnídeo, que concebe suas teias para que o homem se debata sem esperança, nos abre o horizonte da existência humana como a única e possível morada do belo. Uma beleza acessível apenas na solidão. Em outras palavras, o mundo destituído de Deus ainda pode ser belo. Belo e solitário.
Daniel Christino é doutor em Comunicação e professor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG; publicado no jornal O Popular em 19 de março.
Dentre os temas absolutamente pessoais que atravessam a filmografia do diretor sueco, a tensão entre fé e razão, entre Deus e a finitude, ocupa um lugar bastante pronunciado. Bergman era filho de pastor luterano e foi criado à luz de um ethos bastante rígido e disciplinador. Deste conflito pessoal que mistura tão intensamente a figura de Deus à autoridade paterna, surgiram os três filmes que a fortuna crítica apelidou de trilogia da fé: Através do Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio. Em muitos aspectos a trilogia se apresenta como um percurso íntimo que vai desde a crença no amor cristão até o vislumbre de um mundo condenado à liberdade absoluta.
Em Através do Espelho uma família acompanha, às vezes com curiosidade, às vezes com verdadeiro horror, a progressão inexorável da doença mental de um de seus membros. Bergman, cuja formação acadêmica em teatro transparece em todos os seus filmes, principalmente na cuidadosa mise-en-scène e no denso trabalho de atuação, compõe um quadro de progressiva desolação existencial. O desespero se avoluma, aos poucos, a medida em que a personagem principal vai desaparecendo em seus delírios. Aqui aparece, pela primeira vez na trilogia, uma imagem recorrente de Deus como uma horrenda aranha. Em meio à devastação existencial, numa bela cena final entre pai e filho, a noção do amor cristão retorna como possível solução, embora não seja abraçada com alegria. Isso, na verdade, é significativo: quando fala em Deus, Bergman muito dificilmente apela para a alegria. A grande exceção, claro, é O Sétimo Selo, de 1957, ou seja, alguns anos antes da trilogia.
Se Através do Espelho caminha para um ceticismo resignado, em Luz de Inverno já não resta esperança. Novamente a figura do pai é espelhada num pastor luterano em plena crise de fé. Sua congregação, antes cheia de fiéis, resume-se a uns poucos e bravos remanescentes. Crianças cochilam durante a celebração. Bergman filma o culto como se estivesse filmando um teatro, deixando propositadamente transparecer o elemento ficcional da comunhão e a ação do pastor é a mesma de um autômato cumprindo rotinas pré-determinadas.
Também aqui a noção de um Deus aracnídeo aparece para caracterizar a relação do pastor com Deus. Nem o amor, representado pela figura de uma professora primária, consegue atravessar o desespero de um mundo abandonado por Deus. A cena na qual o pastor nega seu amor pela professora é absurdamente cruel. Contra a paisagem gélida e branca, a solidão é algo que se pode quase pegar com as mãos.
Já em O Silêncio, Bergman procura retratar um mundo no qual a ideia de Deus já não vigora. O foco narrativo concentra-se nas figuras de duas irmãs e um menino, perdidos num imenso hotel virtualmente deserto. Ao contrário dos outros dois filmes, nos quais há uma estrutura narrativa bastante clara, O Silêncio parece mais uma colagem de situações relativas, principalmente, à sexualidade. Bergman parece dizer que uma vez livre de Deus, a humanidade desloca seu centro de gravidade para o corpo e, nele, especificamente para o sexo. O tema de homossexualidade é bastante explorado, principalmente na relação entre as duas irmãs, embora de maneira graficamente discreta. Em certo sentido, tanto no que se refere ao tema quanto no que se refere ao modo de filmar, O Silêncio se aproxima bastante de Persona.
Mas Bergman não é um diretor proselitista, ou seja, ele não faz propaganda de suas certezas. Seu modo de filmar a tensão entre fé e descrença vê sua própria história pessoal com certa beleza e acídia. Embora na trilogia ele se afaste da visão benévola da existência contida em O Sétimo Selo – até mesmo da existência mediada pela arte – ainda assim a superação do Deus aracnídeo, que concebe suas teias para que o homem se debata sem esperança, nos abre o horizonte da existência humana como a única e possível morada do belo. Uma beleza acessível apenas na solidão. Em outras palavras, o mundo destituído de Deus ainda pode ser belo. Belo e solitário.
Daniel Christino é doutor em Comunicação e professor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da UFG; publicado no jornal O Popular em 19 de março.
12 Comentários
Cine-UFG: sessões às 12 e 17:30h - informações: 8415 0834.
Daniel Christino é fera no texto. Patricia gostou demais do texto e levou agora para a escola. Vou ver os dois filmes de hoje e conversar com Daniel.
Pedro, adoro seus comentários e qdo vc coloca a Patricia fica mto legal, as vezes acho q ela nem existe...
rs!!
Sobre o texto do Daniel, nunca tinha pensado na solidão de Bergman e seus filmes, acho q confundia solidão com tensão, dureza (no sentido de imobilidade, paralisia)
Já na não-propaganda-de-seus-filmes, isso é o que me encanta nele.
Muito bom o texto do Daniel Christino!!!
Abraços,
Polly
OLA MEU AMIGO LISANDRO, GOSTO MUITO DA SUAS CRITICAS.
E O SEGUINTE. INFORMA PROS EDITORES DO JORNAL QUE O SEU TWITTER ESTA APARECENDO ERRADO, E A 3 VEZ (QUE EU NOTO) QUE ELE APARECE COMO SE FOSSE UM EMAIL: LISANDRON@TWITTER.COM
DIGA PRA ELES QUE O CERTO É TWITTER.COM/LISANDRON
OK?
BOA TARDE, SEU AMIGO E FAN, KENNEDY JUNIOR. DA CAPITAL MESMO.
Ei, Polly, o Lisandro me deixa colocar o nome da Patricia. Ela me ajuda a editar o blog e também é o meu amor. Meu tio é simpático com a participacao da Patricia. Ele envia os textos aí eu e ela partimos para o trabalho. Amor é amor. Mas não gosto quando ela fica querendo editar fotos de atores famosos. Ciúme, né Polly.
Kennedy, vou falar para o Lisandro conversar com o pessoal da TV. Eu também já notei isso.
Pedro.
ta certo,Pedro
Rs...
(ri muito, sr. auxilio luxuoso!)
Essa mostra do Bergman surgiu depois q lembrei da importância crucial dele, hoje. Cecilinha tinha me chamado a atenção para o cinema moderno, em janeiro, no rio de janeiro. Lembrou de 1996 qdo. fizemos a última mostra dele no Cine Cultura. Muitos amigos estavam lá e eu disse, naquela época, que fazíamos mostras para os amigos e o público e os alunos.
Eu disse para Cecilinha: devemos continuar insistindo na formação, mesmo com o mundo ficando careta e jogando todos nós no pragmatismo. Aí ela lembrou de Bergman e da beleza universal de seus filmes. Não acho q. se deve dar tanta importância para o fato dele ser sueco. Seus filmes são universais. Meu amigo Pierre, recluso, fala: "É da maior importãncia fazer, de vez em quando, uma mostra de Bergman". Ele disse isso tomando Açai na rua 15, no centro.
Toda vez q. Pierre fala de política eu começo a rir e ver tanta importância na "política". Será q os filmes de Bergman são políticos?
Então essa mostra é dedicada tb. ao Francisco Pierre e ao Júlio Cesar Costa (q., em 1985, enfrentando os arquitetos mais caretas - eu não sabia que arquiteto é conservador tanto assim em arte - nos deixou exibir filmes todos os finais de semana na melhor sala de Goiânia, naquela época).
Eu tb. fiquei com saudade de minha mãe: em 1984: "Onde você vai com esse pano tão grande?". O pano era a tela q. eu e Eudaldo Guimarães fizemos para exibir dois filmes do Bergman no auditório da OAB na av. Goiás.
Um beijo grande tb. para dona Olávia, da OAB. Na época disse: "passem filmes para esses advogados criarem melhor suas famílias". Eu ria tanto disso e tomava café com pão e manteiga na sala do presidente da Ordem dos Advogados, sentado na cadeira "imperial" dele.
Mas essa mostra é mesmo dedicada para Cecilinha - que toda Ipanema distante ama. E nós aqui também que lhe devemos tanta coisa, tanto afeto e q nos livrou do medo de ficarmos ignorantes para sempre.
Um agradecimento enorme, do tamanho da filosofia (q. ele tanto gosta) e do prazer enorme em dividir uma sala com ele na UFG, para o professor Daniel Christino - que foi meu aluno de História do Brasil,em 1981, no Colégio Agostiniano, na Praça do Avião - q. escreveu o texto primoroso acima. Lógico q. aluno supera professor - e deve sempre ser assim!!!!
Eu lembrei também, agora, ouvindo Caetano para ir dormir, da passagem minha e de Lourial Belém, em 1984, em Santa Rita do Araguaia, no Mato Grosso, exibindo filmes para os Sem Terra. Chegando na cidade uma pessoa (um contador?) nos perguntou se gostávamos de BErgman. É isso!! Ele é universal.
Lisandro nostálgico. Bacana.
Lisandro é ótimo professor, dos melhores na UFG. E, ao contrário do que ele fala, nunca consegui "superá-lo" em nada. Ele continua me ensinando coisas importantes no convívio diário com seu jeito de ser e sua inteligência.
O debate da sexta-feira foi ótimo. Eu, o Leon Rabelo e seu irmão, Carlos Afonso, todos grandes conhecedores de Bergman, conversamos com um público de cerca de 20 alunos - grande público para um sexta-feira à noite no Campus. Os alunos estavam interessados. Bergman continua não só universal, mas a-temporal também. Seu cinema tem o que dizer aos mais jovens.
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