segunda-feira, 29 de março de 2010

"Ilha do Medo" (em cartaz)

COMENTÁRIO TRÁGICO SOBRE A ILHA DO MEDO


Rodrigo Cássio*


Quando, na tragédia de Sófocles, Édipo fura os próprios olhos e se retira da pólis, é posto em operação na estrutura do enredo trágico o momento impactante da aguda consciência de si. Uma consciência que, no entanto, não regenera o sujeito de maneira reconfortante, se por isso entendemos a evitação da dor ou a indiferença para com a objetividade do sofrimento. O que impera, ali, é a necessidade. Mais do que a morte, a autopunição é um passo indispensável para que o destino do herói se realize em consequência dos seus próprios infortúnios, isto é, da sua desavisada carência de virtude, observada pelo público no desposamento da mãe e na morte do pai, estes dois crimes de Édipo tão espantosamente assimilados pela teoria freudiana, e desde então simbolicamente remetidos à constituição de uma subjetividade normalizada.


Em Ilha do Medo, de Martin Scorsese, a figura da consciência de si é um móbile narrativo que deixa ver a tragédia como um embasamento forçoso, mas sem jamais render-se a ela, absolutamente. A consciência de Teddy Daniels, essa personagem ligeiramente edipiana de Scorsese, é associada à consciência que os espectadores possuem da própria verdade sobre o que o circunda. É sempre o perceber-se a si mesmo que centraliza as ações, e Daniels se transforma, para o espectador assim como na imagem que constrói de sua história pessoal, junto com a percepção das circunstâncias que levaram até o presente – a ação destila a verdade, estabelece o mundo, na medida em que nos inteiramos dela, projetando sobre o passado o seu poder consensual de nos dizer quem somos. Assim, sempre no plano da consciência, na primeira parte do filme, os equívocos do protagonista são também os equívocos do espectador, enredado em uma trama que se antecipa ao personagem e reafirma a importância dos acontecimentos no filme de estrutura clássica. Os acertos de Daniels, quando evidenciados pela segurança do discurso das outras personagens, na parte final do filme, instauram por sua vez a distância precisa em relação à falsidade do que antes era objeto de crença, expondo a verdade da narrativa, emudecida antes do ponto de virada.


Se o Édipo de Sófocles tinha seus pontos fracos visíveis, para o público, desde os primeiros diálogos da tragédia, Scorsese sonega ao espectador os pontos fracos de seu Daniels de traços edipianos, no mesmo passo em que a verdade da narrativa é sonegada na maior parte de Ilha do Medo. Recurso que confere brilho e encanto garantidos ao cinema hollywoodiano, esse domínio sobre o que o espectador pode ou não saber, protelando a construção definitiva da fábula, não deixa de denunciar a fragilidade dos egos que se envolvem no jogo: da personagem ao espectador, é antes o não-saber e a não-verdade que importam, no filme de Scorsese, e isso a despeito de uma consciência aguda de si. A arrogância pretensiosa de Édipo, que o individualiza e o habilita a agir punitivamente contra si mesmo, não encontra ressonâncias na caracterização do Daniels da primeira parte do filme. Os equívocos são dele, mas justificados pela doença e pelo embuste armado como uma estratégia de emergência pelas personagens coadjuvantes, numa teatralidade que se estrutura a fim de separar o próprio doente de sua verdade, até o ponto em que ele poderia, com a visada da saúde já normalizada, assenhorear-se dela (isto é, assenhorear-se de si próprio).


Se Édipo desposa a mãe e assassina o pai, o crime de Daniels é menos cruel, e também ele é justificável em face do que o levou a cometê-lo – a benevolência que temos, hoje, para com a vingança contra os criminosos, projeta o protagonista de Ilha do Medo no espaço restrito das ações indevidas que se justificam. A aparente justiça na atitude de quem rouba o ladrão ou mata o assassino, essa lógica do “assim se fez, assim se paga”, sinaliza para uma regressão da nossa visão de mundo, e nela se firma o flerte de Ilha do Medo com a tragédia, atenuando a culpa de Daniels.
Nesse sentido, a consciência de si, ainda quando reconciliada com o sujeito da ação, esclarecendo a fábula, não diminuiu em Daniels a sua proximidade com o espectador. A complacência dá o tom da tragédia despotencializada. A estrutura do enredo trágico permanece, mas inclusive o sacrifício final é desvirtuado da atitude que, entre os gregos, significava a reparação da virtude como grande meta. A consciência de si, manchada e incapaz, precisa agora livrar-se de si mesmo, e por isso a lobotomia é o destino que Daniels assume, com uma flagrante ambiguidade que, ironicamente, converte a sua fala final em um veredicto exemplar do espectador moderno: não podemos saber, de fato, se Daniels está fingindo ou não. Não sabemos, enfim, se ele recuperou a habilitação para a verdade de si, e finalmente a rejeita, ou se ele retornou ao estado anormal que conhecemos na primeira parte do filme.


A decisão pela lobotomia é vaga. Aceita-se o destino sem ousar interferir nele. A consciência suja dos sujeitos reduzidos a seres incapazes de apreender o mundo como um todo, assim como de agir conscientemente nele, conduz ao desfecho que nos satisfaz, a nós, os sem-virtude, sem-verdade, sem-sociedade (sem-pólis). A tragédia é um arremedo, débil e fugaz. Nada mais que isso.

* Filósofo e jornalista por formação, é doutorando em Filosofia  da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua também como crítico de cinema e curador.

12 Comentários

Fabrício Cordeiro disse...

Boa leitura, Rodrigo. Mas penso em "A Ilha do Medo" mais como uma (ótima) emulação de um Cinema de horror da década de 50 e 60, do qual o cineasta/professor/estudioso/pesquisador/ocaralhoaquatro Scorsese é fã. Só faltou ser em preto e branco.

Não que seja apenas isso. Scorsa é mestre em levar a dúvida até o fim, mesmo que tenha a revelação mais "óbvia".

Também lembra muito o "The Wicker Man" original.

@fabridoss

Rodrigo Cássio disse...

Olá Fabrício,
O filme tem mesmo referências ao cinema de gêneros, do terror ao noir, inclusive pelo tempo histórico da narrativa. Não considero um filme ruim, mas também não gostei muito.
Lá nos comentários do meu blog surgiu uma comparação com o Tarantino, em relação a esse diálogo com os gêneros industriais, que me parece um bom caminho de análise de Ilha do Medo - inclusive para mostrar a superioridade de um cinema como do Tarantino, nesse aspecto.
No meu texto, procuro falar de algo mais implícito, esse resquício de tragédia na história do protagonista, que, de certo modo, acaba denunciado as "fraquezas" do espírito da nossa época.
Abraços!

Unknown disse...

Rodrigo Cássio,

Mais uma vez, você conseguiu tirar meu fôlego com seu texto, e apontamentos. Gosto muito da maneira que você constroi o texto. È prazeroso de se ler.

Parabéns, pela defesa da dissestação de Mestrado. Eu quase fui te ver, pois tenho muito vontade de te conhecer e também de ver o trabalho que você desenvolveu no mestrado, entretanto, tinha uma atividade muito importante no período da tarde que não podia ser adiada.

Assim como te dei os parabéns pelo Doutorado, te dou agora pelo seu sucesso no Mestrado. Que Deus te abençõe muito sempre em sua jornada, e que te dê muita paz e sabedoria para enfrentar todos os desafios.

Admiro você mesmo sem te conhecer, de tanto a Ceiça e o Lisandro te elogiarem, das suas opiniões e daquilo que eu leio que você publica aqui e no Opopular.

Sucesso!!!

Abraços...

Tatiana

Unknown disse...

Lisandro,

A nova roupagem do blog ficou ainda mais a sua cara. Uma mudança mais que acertada.

A idéia do "Cineclube" foi muito bem bolada!
Acredito que envolveu perfeitamente a intenção do blog.

Abraços...

Tatiana

Fabrício Cordeiro disse...

Rodrigo,

acho que as emulações feitas por Tarantino e Scorsese se diferem, embora se reaproveitem de gêneros e mesmo de filmes específicos. No caso de Tarantino, me parece ser mais num tom de "homenagem" enquanto ele constrói seu próprio filme com peças de outros. Quanto a Scorsese, vejo antes emulação (como se realmente fosse um filme dos anos 50/60) e só depois homenagem.

Não que um seja melhor que o outro. No geral, acho Scorsese maior que Tarantino (mesmo porque Scorsa tem larga vantagem em número de filmes), muito embora prefira "Bastardos Inglórios" a "Ilha do Medo", considerando os últimos filmes de ambos.

@fabridoss

Anônimo disse...

[trazendo meu comentário do Vistos e Escritos pra cá:]

a frase final foi um tiro longo, você tentou matar a Tragédia ou só a tragédinha desse filme?

Ilha do Medo recaí sobre escolhas que me incomodam:
a redução da malha do enredo ao gargalo ou da totalização absoluta ou da individualização absoluta. são dois buracos negros que simplificam e destroem o emaranhado de possibilidades, destroem as “contradições” internas, ou melhor, as questões que surgem só no núcleo de uma configuração – e envolvidas por ela – e que engrandecem a obra.

isso acontece ao decidir-se pela totalização, botar toda a causa da ação no mundo; pior ainda, em conspirações superiores e invisíveis ["ó meu deus, os aliens dominam a terra" = exemplo de teoria da conspiração]. e também na individualização, botar a causa inteira na consciência de um ego (é tudo ilusão, você só estava sonhando ou delirando…).

Husserl botou a fenomenologia pra correr atrás da consciência, da instância mais pura onde as coisas aparecem para nós. e mesmo sendo um grande dualista, o que ele encontrou de mais essencial? não o objeto nem o eu, mas a relação entre eles.

se dividirmos o filme em 3 partes (1 – investigação, filme de detetive; 2 – conspirações; 3 - peripécia e loucura), a única que foge desses buracos negros é a 1ª parte… o Scorsese me grilou muito ao reduzir tudo que poderia ter sido, nos primeiros 20min.

Aron

Rodrigo Cássio disse...

Olá Tatiana,
Muito obrigado pela leitura atenta e, mais ainda, pelas palavras tão afetuosas. Seria ótimo se você tivesse ido em minha defesa - também gostaria de conhecê-la. Creio que não faltarão oportunidades para isso. Você é aluna da Facomb? Eu não sabia. Estou morando em Belo Horizonte, mas venho a Goiânia periodicamente. Não nos percamos um do outro.
Abraço grande!

Rodrigo Cássio disse...

Fabrício: sim, são dois cineastas bem diferentes. Esse é o mote do debate lançado lá no Vistos e Escritos pelo professor Marcelo Ribeiro. Da minha parte, gosto bem mais de Tarantino!

Aron: Quem sou eu pra "matar" a tragédia? rs Eu quis me referir apenas ao filme do Scorsese.

Você propôs, em seu comentário, uma leitura muito interessante do filme, de certo modo convergente com a minha. Seria legal se você desenvolvesse essa leitura em um texto sobre o filme. Não gostaria de escrevê-lo?

Abraços.

Unknown disse...

Rodrigo Cássio,

Não sou aluna da Facomb, me formei na PUC, em jornalismo. Conheci a Ceiça no Goiânia Mostra Curtas, e o Lisandro porque fui aluna ouvinte de uma matéria dele no semestre passado na UFG.
Sendo assim, pela minha afinidade com o cinema, a aproximação com ambos foi inevitável.

Abraços..

Tatiana

Marcelo R. S. Ribeiro disse...

Passando o comentário que fiz no Vistos e Escritos para cá:

<<
Rodrigo, seu “comentário trágico” é uma prova de que até mesmo filmes ruins são bons para pensar. Tudo isso que “Ilha do Medo” pode suscitar, em termos de reflexões sobre o sujeito, a consciência e a (im)possibilidade da tragédia na contemporaneidade, me parece contido por formas narrativas de uma redundância e obviedade que foram exasperantes para mim. Talvez seja isso: até mesmo em sua forma o filme fala da impossibilidade da profundidade (que sustenta qualquer tragédia, no movimento de desvelamento da consciência de si), num mundo em que a memória histórica e até mesmo a memória pessoal se reduzem a um acúmulo de superfícies, de imagens sem espessura, de encenações opacas. Nesse sentido, é curiosa a comparação entre Scorsese e Tarantino proposta por Paulo Santos Lima, na Revista Cinética (http://www.revistacinetica.com.br/shutterisland.htm): “Tarantino é devasso. Scorsese católico de fé.”, diz ele, pensando nas relações dos dois cineastas com a história e, particularmente, com a história do cinema. Em sua fidelidade católica a fórmulas do cinema hollywoodiano, Scorsese realiza um filme cujo potencial de questionamento (manifesto em seu conteúdo, em sua narrativa) permanece contido (e talvez comprometido) por sua estrutura (sua forma, suas fórmulas, sua narração). Como eu disse no twitter: narrativa profunda, narração superficial, vazia.
>>

Rodrigo Cássio disse...

Então eu vou passar pra cá também a minha resposta:

"Marcelo, às vezes acho que os filmes ruins, ou não tão bons, são tão interessantes como ponto de partida da reflexão quanto os grandes filmes. A partir daquilo que não aprovamos podemos entender melhor o nosso gosto, os nossos critérios. Já os filmes geniais nos desafiam, e em vez de somente provocar a nossa relação prévia com as obras, somos levados a transformá-la. As grandes obras, de certo modo, nos ultrapassam, e o pensamento corre atrás delas.

Eu não penso que “Ilha do Medo” seja um filme tão ruim, mas concordo com você sobre a falta de profundidade. Por exemplo: o holocausto e os manicômios são dois temas perdidos, sem densidade. E não adiantaria o argumento de que o filme não está interessado em discutir essas questões, porque, no mínimo, ele se serve delas - seja a fim de parecer engajado na discussão, seja porque já são mais que clichês aquelas imagens da barbárie nazista. O filme não acrescenta nada.

Nesse ponto, a comparação com o Tarantino também me agrada. Se “Bastardos Inglórios” nos trouxe certa imagem “devassa” do nazismo, sua abordagem é mais relevante que a de “Ilha do Medo”, justamente por causa da desconstrução de uma suposta profundidade do cinema de gêneros que encontramos referenciado, sem grandes virtudes formais, no filme do Scorsese. Eu diria, inclusive, que a frase do crítico da Cinética vale para muitos cineastas contemporâneos, se comparados ao Tarantino."

Lisandro disse...

Olá Marcelo Ribeiro, que bom vê-lo por aqui. Bom debate com Rodrigo Cássio e Fabricio. Um abraço, Lisandro

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